22/06/18

Voar Sem Asas - Capítulo XVI - Final

Imagem encontrada na net sem indicação do autor 

Laíssa incorporou no seu sonho o ribombar de um trovão gigantesco e o vibrar do chão e das paredes. Centenas, talvez milhares, de naves cobriam o céu.
Teria a elite descoberto os planos de revolta? Ela bem desconfiara que, com tanta gente envolvida, haveria fugas de informação.
A porta do apartamento foi arrombada. Guardas, de armas em punho e de rostos irreconhecíveis pela viseira escura dos seus capacetes, apoderaram-se de Orionte e entraram no quarto dela. Tinham vindo para os prender, ou para os matar?
Laíssa deu um grito. E acordou, banhada em suor. Num primeiro momento, ficou aliviada: apenas um pesadelo. Mas o trovejar mantinha-se, o apartamento vibrava, as persianas abanavam como loucas.
Levantou-se, foi até à janela do seu quinto andar e, depois de abrir a persiana, quedou-se aturdida perante uma chuva diluviana e ventos ciclónicos que arrancavam árvores pela raiz. Ao longe, o rio Auron aumentava assustadoramente o caudal, formando ondas altas.
 De repente, a terra começou a tremer. Laíssa agarrou-se ao parapeito, sem saber como reagir. Ao ver os primeiros prédios a desabarem, porém, percebeu que só lhe restava fugir. Calçou-se e, enquanto vestia um casacão por cima do pijama, dirigiu-se ao quarto de Orionte, cambaleando, devido aos abalos.
O ancião continuava deitado, de olhos fechados. Não ouviria aquele barulho ensurdecedor, não sentiria os abanões? Laíssa impressionou-se com a sua palidez. Abanou-o pelos ombros, berrando o seu nome. Orionte não reagia. Estaria morto?
Os quadros, os livros e os outros objetos colocados nos móveis caíam ao chão, gavetas abriam-se. Era imperioso que saíssem dali e Laíssa não deixaria Orionte sozinho, sem saber se estava vivo ou morto. Carregá-lo-ia, por mais que lhe custasse. Puxou-lhe a roupa da cama para trás e preparava-se para o agarrar pela cintura, quando ele gritou:
- Não, Laíssa!
Tinha os olhos escancarados, raiados de sangue.
- Deixa-me! Resta-me pouco tempo de vida.
Orionte aproveitou a perplexidade dela para lhe passar uma pequena placa com um ecrã para a mão:
- Rafael deu-mo ontem. Chama-se “digi-phone” e permite-te comunicar com ele e Iosef. Só precisas de chamar os seus nomes…
De repente, o ancião levou as mãos à garganta, abafado, a lutar por cada lufada de ar. Pedaços do estuque das paredes e do teto começaram a cair, o prédio abanava cada vez mais, a chuva batia nas janelas com fúria nunca vista. Ouviam-se os gritos dos homens, vindos das escadas do prédio.
- Despacha-te - ordenou Orionte de voz rouca. - Pertences aos eleitos.
- Eleitos? Enlouqueceste? Não me deixes sozinha, neste fim do mundo!
- Vai! - O ancião fazia um esforço terrível para se fazer ouvir, no meio do barulho. - Vai ter com Iosef e Rafael! Tendes uma missão a cumprir, sois eleitos…
- Não fales assim, que não te entendo - replicou, entre lágrimas, enquanto o prédio ruía à sua volta.
Orionte agarrou-lhe os ombros e, de olhos escancarados, berrou, como em transe:
- Não matarás! Não matarás!
Largou-a, de repente. Estava morto.
Laíssa rompeu num pranto desesperado. O instinto de sobrevivência, porém, fê-la reunir todas as suas forças para largar Orionte e sair do apartamento.

Embora aquela visão o dilacerasse, Theo decidira-se pela escrita de um novo Tomo do livro Terra. Daria mais uma hipótese à raça humana, considerando, porém, que tal só seria possível evitando a revolução que Rafael e os seus seguidores planeavam. Teriam de matar, a fim de acabar com a elite tirânica, o que contrariava o Quinto Mandamento que ele próprio criara. Por várias vezes, Theo constatara que uma nova sociedade, fundada por humanos que haviam matado e causado sofrimento a outros humanos, mesmo sendo por uma boa causa, estava condenada ao falhanço. Por isso se decidira por uma catástrofe de proporções gigantescas, chamando novamente a si a responsabilidade de eliminar todos aqueles que achasse desnecessários, mesmo os inocentes.
Tudo isto o dilacerava, dando início ao sofrimento que tão bem conhecia, desde o tempo em que se materializara humano. Novamente sentia o crânio massacrado pela coroa de espinhos, o sangue a escorrer-lhe pelo rosto, os chicotes deixando-lhe as costas em carne viva, o desprezo e achincalhamento públicos, a sede, a fome, o desespero. Mas sabia que o pior estava para vir, quando sentisse os grossos pregos que, à força de martelo, lhe dilaceravam as mãos e os pés, tudo confluindo na dor indiscritível de agoniar pendurado numa cruz.
«Meu Pai, porque me abandonaste»?
Quantas vezes teria ainda de arcar com os pecados daquele mundo?

Laíssa juntou-se aos restantes habitantes do prédio, todos homens, na sua fuga. As escadas estavam ainda intactas, mas muitas paredes já tinham desmoronado. A chuva penetrava no edifício, batia-lhes no corpo, o vento soprava violento. Nem todos se conseguiam manter agarrados ao corrimão. Laíssa ouvia os gritos dos que eram levados pelas rajadas ciclónicas, via-os a voar como se fossem folhas no Outono.
Sem saber como, conseguiu chegar à rua, mas não havia tempo para suspiros de alívio. Era quase impossível andar, a visão miserável. Enxurradas levavam consigo pessoas e animais, o tremor de terra persistia, gente caía desamparada dos prédios que desmoronavam, ou ficava soterrada nos escombros.
Abrigou-se na soleira de uma porta ainda intacta, sem saber o que fazer. Lembrou-se do “digi-phone” que Orionte lhe tinha dado e que ela tinha posto no bolso do casacão. Agarrou nele, a tentar lembrar-se das instruções do ancião. «Só precisas de chamar por eles».
Embora lhe parecesse patético, pois nunca tinha usado aparelhos daqueles, pôs o “digi-phone” à sua frente e berrou por Iosef. Depois de algumas interferências no ecrã, viu-lhe o rosto.
- Iosef, meu amor - exclamou, entre lágrimas. - Onde estás?
- Laíssa, graças a Deus! Espera um momento, enquanto te localizo!
- Vens buscar-me?
- Não posso. Rafael e eu estamos a tentar salvar o maior número de crianças possível. Mas dou-te já um itinerário. Espera!
- Itinerário? Que queres dizer?
- Tens de vir ter connosco ao edifício RT 505.
- Edifício quê? Estás louco? Eu não conheço nada aqui…
- Fica calma, Laíssa…
- Calma? O mundo desmorona à minha volta e pedes-me calma?
- É só mais um momento… Ah, cá estás! E aqui está o itinerário. Foi difícil programá-lo, pois o Auron aumenta de caudal a cada instante e já alagou muitas ruas, provocando enxurradas que não dão hipóteses de sobrevivência. Acabará por alagar a cidade inteira. Mas só precisas de seguir o itinerário que te envio, para lhes escapares… se conseguires fazer o percurso em 15 minutos. Estarei à entrada à tua espera. Despacha-te!
O rosto de Iosef desapareceu para dar lugar a um mapa. Uma seta indicava a posição dela, uma voz feminina fez-se ouvir: «a vinte metros, vire à direita».
Laíssa reuniu todas as suas forças para sair do local abrigado e iniciar a sua caminhada, contra o vento e a chuva. Naquela rua, a água corria já muito rápida, mas ela conseguiu atingir a esquina, que lhe deu acesso a uma ruela mais abrigada. Teve igualmente a impressão de que o tremor de terra tinha cessado. Foi seguindo as instruções do aparelho, até que deparou com uma grande avenida, muito fustigada pela tempestade. A água subia, a corrente ficava cada vez mais forte, Laíssa avançava a passo de caracol. A voz disse-lhe, naquele tom neutro de quem dá instruções para uma receita: «Acelere o passo! A avenida será dominada pelas águas em poucos minutos».
- Como posso acelerar, sua estúpida? O vento e a chuva não me deixam. Além disso, não vejo nada.
«Se não atingir as escadas dentro de dois minutos, diminuirá a sua hipótese de sobrevivência».
Entrou em pânico:
- Iosef! Ouves-me, Iosef?
O rosto dele surgiu:
- Laíssa! Deixa-me ver onde te encontras… Despacha-te, estás em grande perigo!
- Não consigo…
- Consegues, pois! Tu és uma eleita! Acredita! Tem Fé!
A água já lhe chegava à cintura, com uma corrente incrível. Laíssa avançava agarrada aos puxadores de algumas portas que se mantinham de pé. Pessoas levadas pela enxurrada passavam por ela, algumas aos gritos, outras já mortas.
«Restam-lhe trinta segundos».
Alcançou as escadas, um acesso pedonal a uma rua num nível mais elevado. Laíssa agarrou-se ao corrimão, mas demorou uma eternidade a vencer três degraus. Não via como conseguiria chegar ao fim.
«Os dois minutos esgotaram-se. Tem apenas 10% de probabilidade de sobrevivência».
Com a força do desespero, cerrou os dentes e almejou alcançar os degraus ainda livres da corrente assassina. Atingiu a rua desejada e caiu esgotada, a respirar às golfadas.
- Laíssa! Responde, Laíssa!
- Iosef, não posso mais…
- Despacha-te, restam-te quatro minutos para atingires o edifício RT 505! As águas atingirão igualmente as ruas de nível mais elevado.
Mais uma vez arranjou forças sem saber onde. Livrou-se do casacão, que se tornara um peso inútil, e avançou, encharcada até aos ossos, o pijama colado ao corpo, seguindo as instruções do “digi-phone” na sua mão.
- Laíssa! Já cá devias estar. A enxurrada não tarda a surgir.
- Estou quase…
Dobrou mais uma esquina e Iosef viu-a. Foi ao seu encontro a fim de a ajudar a vencer os últimos metros contra a chuva e o vento ciclónico.
- O Rafael está à nossa espera com a nave para nos levar à plataforma.
- À plataforma?
- No edifício RT 505 encontra-se a única plataforma que permite a aterragem e a descolagem de naves Jumbo, nesta cidade de ruas apertadas e prédios altos. Mas temos de nos despachar. As crianças estão sozinhas e, em breve, começará um terramoto ainda mais forte.
- Como sabes?
Iosef não respondeu. Tinham chegado à entrada do edifício e embarcaram, sem demora, na pequena nave. Rafael descolou, a fim de atingir a plataforma a 150 metros de altura. Depois de recuperar o ar, Laíssa perguntou:
- Onde estão as crianças?
- Esperam na nave Jumbo.
- Sozinhas? Não há adultos? E o meu pai, Thays, Eduína…
Os homens não responderam. Rafael limitou-se a pilotar a nave, enquanto Iosef desviava o olhar, porém, sem conseguir disfarçar a dor. Laíssa agarrou-lhe as vestes:
- Diz-me! Morreram todos?
Iosef encarou-a:
- Tenho muita pena, mas tivemos de nos concentrar nas crianças, cumprindo a palavra.
- A palavra? Que palavra?
- A palavra escrita. Assim está escrito.
- Que queres dizer, Iosef? - Berrou Laíssa. - Não estou a entender nada…
- Não há tempo para discussões - admoestou Rafael. - Começou o novo terramoto, a plataforma não aguentará muito tempo.
Tinham aterrado mesmo ao lado da nave Jumbo, de outro modo, não resistiriam às rajadas ciclónicas, já que a plataforma abanava igualmente devido ao tremor de terra.
- Depressa! Depressa!
Mal entraram, Rafael dirigiu-se à sala de comando, enquanto Laíssa e Iosef se dedicavam às cerca de sessenta crianças assustadas. Os adolescentes que se encontravam no seu meio ajudaram os dois adultos a apertar os cintos de segurança das mais pequenas. Depois, sentaram-se nos seus lugares, Thyara agarrada ao pai, entre ele e Laíssa, que apertava Míryo contra si.
Rafael lutava contra as dificuldades na descolagem. Uma nave Jumbo devia ser pilotada por três pessoas, duas, no mínimo. Acabou por descolar aos solavancos e aos abanões, mesmo a tempo de deixar a plataforma que começava a desmoronar.
Rafael via-se aflito para estabilizar o aparelho, um joguete nas garras do ciclone. As crianças gritavam e choravam, Iosef e Laíssa tentavam acalmá-las, sem poderem sair dos seus lugares e escondendo a própria angústia. Com Míryo junto ao peito, Laíssa viu, pela janela, como os prédios mais altos da Grande Cidade colapsavam e eram engolidos por enormes valas abertas pelo terramoto. Antes de a nave romper a parede de nuvens escuras, ainda teve tempo de ver um tsunami colossal a engolir as ruínas.
Acima das nuvens, a nave estabilizou. Puderam desapertar os cintos de segurança e deixar os seus lugares. Laíssa tinha inúmeras perguntas, mas urgia, primeiro, tratar das crianças, garantindo-lhes que o perigo tinha passado.
Assim que tudo estava calmo, Laíssa, que já se tinha secado e mudado de roupa, perguntou a Iosef:
- Para onde vamos?
- A lado nenhum. Ficaremos em órbita e regressaremos à Terra, assim que as catástrofes naturais tenham passado.
- Mas está tudo em ruínas…
- Aterraremos num local aprazível, uma enorme ilha que, depois da tempestade, apresentará um céu azul, um sol radioso e um mar calmo.
- Não me digas! E como sabem vocês da existência dessa ilha paradisíaca?
- Rafael tem as coordenadas… Estavam nas Escrituras.
- Nas Escrituras? - Chegara a altura de esclarecer as dúvidas. - Iosef, que conversa é essa de Escrituras, de palavra, de sermos eleitos?
Depois de respirar fundo, ele respondeu:
- O meu pai, Orionte, era um profeta.
- Profeta?
- Sim, uma pessoa próxima de Deus, capaz de comunicar com Ele. Tudo o que viveste hoje, estava previsto, escrito. Meu pai sabia que nós os três seríamos os únicos adultos a sobreviver, deu-nos instruções de como agir e as coordenadas da ilha onde devemos aterrar. Rafael, tu, eu e estas crianças somos os eleitos, os primeiros protagonistas do novo Tomo do livro Terra.

Depois de, mais uma vez, aguentar toda a agonia e todo o sofrimento, Theo suspirou aliviado. O novo Tomo estava iniciado e os eleitos tinham agora o seu destino nas próprias mãos. Cabia a Rafael, Iosef e Laíssa, adultos corajosos e honestos, que nunca tinham sujado as mãos com sangue humano, educar as crianças, sem injustiças, invejas, nem violências desnecessárias. O seu próprio exemplo, a retidão do seu carácter e a sua capacidade de cumprir os Dez Mandamentos eram imprescindíveis, mais do que qualquer sermão.
Theo esperava que não tivesse de, novamente, sofrer as agruras da cruz.

À saída da nave, Laíssa foi surpreendida por uma pomba branca com um ramo de oliveira no bico.

                                                                                                            Cristina Torrão

12 comentários:

  1. Uma pomba branca! O eterno símbolo da Paz.
    Pois é assim!

    ResponderEliminar
  2. Que excelente forma de acabar este conto! :) Bom fim de semana.
    --
    O diário da Inês | Facebook | Instagram

    ResponderEliminar
  3. Cristina, que lindo final puseste!!!!!!!! Obrigada pela deliciosa leitura!!! Parabéns, querida, mil vezes!!! Tenho ainda mais orgulho de fazer parte deste grupo!

    ResponderEliminar
  4. A PAZ para finalizar um conto bem interessante!!!
    bj

    ResponderEliminar
  5. Gostei bastante. Parabéns.
    Espero que continuem a brindar-nos com mais contos.
    Bom fim-de-semana

    ResponderEliminar
  6. Great post, love it!
    Hope you can click on link at the end of my last post and if you want that we follow each other let me know :)
    http://beautyshapes3.blogspot.com/2018/06/elegant-romper-outfit-zaful-part-1.html

    ResponderEliminar
  7. Parabéns, Cristina. Serão sempre conturbados os tempos enquanto for conflituoso o Homem. Resta-nos essa pomba branca e a esperança de uma "Luz ao Mundo" num ramo de oliveira. Bonito.

    ResponderEliminar
  8. Uma postagem de respeito, Cristina. Parabéns, assim também imagino!
    Grande abraço,
    Jorge

    ResponderEliminar
  9. Continuo à acompanhar com bastante interesse esta muito bem escrita história.
    Um abraço e bom fim-de-semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    Livros-Autografados

    ResponderEliminar
  10. Imaginação a rodos do princípio até ao fim.
    Já pensaram concorrer com este conto a um concurso??
    Fica a sugestão.
    Boa semana

    ResponderEliminar
  11. Gostei do conto em que perdi parte, mas mesmo assim o que li me maravilhou pois os textos todos eram de excelente qualidade e forma e conteúdo, muito bem escrito. Parabéns! Gostei da simbologia final da pomba com o ramo de oliveira. Lindo! Grato pela partilha. Grande abraço. Laerte.

    ResponderEliminar

Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!