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O sol brilhava por entre as nuvens,
deixando a pele morna. O vento soprava suave, fazendo os abetos dançar uma
espécie de valsa, que roçava os altos portões de metal verde. Dois militares
com farda verde azeitona, e de espingarda automática ao ombro, tentavam ocultar
os bocejos próprios de um amanhecer de Primavera. Andavam, em linhas retas de
cerca de 50 metros, sendo observados ocasionalmente por um graduado que, pela
disposição, não parecia disposto a permitir-lhes qualquer falha. Era preciso
patrulhar, até os pés ganharem bolhas de cansaço.
De repente a calma daquela unidade
militar foi desfeita pelo surgimento inexplicável de um homem no meio da
praça de armas. Bastaram apenas alguns segundos para que ficasse
rodeado de militares assustados, mas ao mesmo tempo compenetrados nos seus
deveres castrenses de defesa, todos empunhando armas automáticas, e em posição
de fazer fogo pelo tempo que fosse preciso.
Um jovem alourado, de tez clara e
sardenta saiu a correr de um casarão militar alto. Desceu as escadas duas a
duas, e correu para ir falar com o graduado que, ainda minutos antes, se
limitava a observar dois patrulheiros a fazerem a rotina de todos os dias.
Percebia-se que tinha ascendente sobre o mesmo, já que falava quase aos gritos,
e o outro limitava-se a baixar os olhos.
Quando percebeu que dali não obtinha
quaisquer respostas, dirigiu-se até ao centro da praça de armas. Um dos
militares desfez a posição de tiro em que se encontrava, e saudou-o com uma
continência.
- O que se passa aqui? - Questionou o
militar mais graduado, enquanto se aproximava do estranho, que fumegava por
todos os lados, e estava deitado de barriga para cima, a olhar o céu, e sem se
mexer.
- Não sabemos meu capitão, respondeu o
sargento, que visivelmente se esforçava por encontrar as palavras certas,
enquanto ao mesmo tempo lançava um olhar hierarquicamente forte sobre os outros
militares que não se atreviam a desfazer a posição de tiro que tinham assumido,
todos por instinto.
- Seja quem for, esta pessoa não pode
continuar aqui. É um estranho, e tratem de o tirar daqui.
Mal acabou de dizer a última palavra,
reentrou a correr no casarão de onde tinha saído. Entrou no gabinete,
sentou-se, pegou no telefone, e secamente pediu ao telefonista.
- Se faz favor faça-me uma chamada para
Lisboa.
O jovem oficial transpirava, à medida
que sentia os primeiros raios de sol a entrarem pelas vidraças grossas do seu
gabinete. Quando o telefone tocou, foi rápido a levantá-lo:
- Passe-me ao major Otelo Saraiva de
Carvalho.
Segundos depois, de Lisboa, uma voz
grave falava:
- Pensei que tinha dito que só queria
ouvir algo da Escola Prática de Santarém quando vocês estivessem a sair daí.
Com quem estou a falar?
No pequeno gabinete em Santarém,
percebia-se a gravidade da situação.
- Capitão Salgueiro Maia, meu major.
Peço desculpa estar a incomodá-lo, ainda por cima quando o plano já está em
marcha. Mas é que surgiu um imprevisto.
Em poucos momentos, explicou o melhor
que soube. Estava um homem de aspeto andrajoso no meio da praça de armas da
Escola Prática. E faltavam poucos minutos para a hora combinada de saída da
coluna militar para Lisboa. Ninguém sabia como ele lá tinha entrado, nem se
seria um invasor. Um espião da polícia política.
- Meu jovem, o senhor não está a
perceber o que se está a passar, pois não? Olhe para o calendário que está à
sua frente, e diga-me que data vê.
O capitão respondeu, firmemente, mas com
a hesitação a crescer.
- 25 de abril de 1974, meu
tenente-coronel.
Seguiu-se um silêncio que feria os
ouvidos. Foi curto, mas impositivo.
- Então vire-se rapidamente, e resolva
isso. Daqui por meia hora no máximo, quero a coluna militar na rua!!! É hoje,
ou vamos todos para a prisão, ouviu? Os portugueses não podem esperar mais.
Aos gritos, de Lisboa, a ordem estava
dada:
- Sim, meu major.
O jovem Salgueiro Maia voltou
a correr para a praça de armas. O sol desabrochava como um pêssego maduro no
horizonte, incendiando os resquícios da noite com um vermelho fogo, que parecia
deixar no ar o perfume intenso de que aquele dia iria remodelar a história,
conforme todos a conheciam.
- Vamos lá a resolver isto rapidamente.
O capitão berrou uma ordem. Mandou
formar um círculo em redor do homem. Os cerca de 20 militares de Cavalaria
puseram-se novamente em posição de tiro com as armas automáticas.
Um barulho estranho, quase que saído da
barriga de uma baleia morta nos tempos idos do Mar do Norte, ecoou por toda a
unidade militar. O barulho parecia vir das profundezas da terra. Debaixo
do homem que permanecia inconsciente. Vestia uma touca de linho. Trazia
umas calças, aparentemente do mesmo material, rasgadas nos joelhos, e estava
descalço. Tinha uma cara cansada, mas um ar tranquilo.
O capitão Salgueiro Maia, como oficial
mais graduado, chegou-se à frente. Tirou a espingarda automática das mãos de um
dos sargentos, e apontou-a ao estranho homem. Pediu-lhe a identificação, e
perguntou-lhe se era um invasor estrangeiro. Advertiu-o para não tentar fazer
qualquer movimento brusco, pois seria logo preso ou, se necessário fosse,
abatido.
O inesperado invasor disse chamar-se
Júlio. Sim, o personagem principal desta história, que já tinha passado pelo
Portugal do dealbar da nacionalidade, e pela Lisboa trágica de 1755. Explicou
tudo isso, com uma voz trémula, de quem não esperava que acreditassem nele. E
não acreditaram. Foi o próprio capitão Salgueiro Maia que ordenou que o mesmo
fosse preso. Com uma escolta de dois militares, de espingardas em punho, foi
encaminhado para as celas do quartel militar. Estava uma revolução em curso, e
nada nem ninguém poderia perturbar aquele momento de viragem da história de
Portugal.
Foi por entre as grades do pequeno
cubículo onde o deixaram, que Júlio assistiu à saída de uma extensa coluna
militar. No caminho pelos corredores da instalação militar, percebeu que, acidentalmente,
estava a ser um intérprete do momento mais bonito da história de Portugal.
Reconheceu Salgueiro Maia. Sorriu, sozinho, com a hesitação do jovem capitão
que não sabia se as ordens a que estava sujeito iriam ser cumpridas com
sucesso. E, pela primeira vez desde que se tinha metido nesta aventura, não se
sentiu assustado. Sabia que tudo iria ter um fim. Um dia. Não sabia quando, nem
de que forma. Nem até se sairia vivo de todas estas atribulações. Sentia-se
desmaterializado da pessoa que já tinha sido. Agora, a única coisa que lhe
interessava era passar à próxima etapa. Saber onde a sorte o levaria. Pensou
que a máquina do tempo estaria em condições. Bastaria só ativar o botão que
trazia consigo a todo o momento, e ela recomeçaria a trabalhar.
O tempo foi passando, e de Lisboa vinham
as notícias que Júlio já sabia que iam acontecer. O capitão que ainda agora o
tinha mandado prender, tinha, ele próprio, dado voz de detenção ao presidente
do Conselho de Ministros. Nas ruas, o povo festejava o fim da ditadura. Ao
anoitecer, três militares vieram dar-lhe o jantar. De propósito entornou a taça
de sopa no chão, levando a um pequeno momento de distração dos que o mantinham
cativo. A porta da cela ficou aberta, e Júlio aproveitou para fugir.
Já era noite, e o quartel estava
iluminado por pequenos pontos amarelos, e que pareciam pirilampos. Escondeu-se
atrás de um blindado, apenas os minutos suficientes para ouvir dois militares a
dizerem um para o outro que o preso tinha escapado, e era preciso dar o alarme.
Assim que teve oportunidade, preparou
todos os sentidos para perceber que era altura de nova transição no espaço, e
no tempo. Um silvo agudo fê-lo acionar o botão, que o fez transpor para a
máquina do tempo. O inesperado de toda esta aventura continuava, ao virar da
próxima esquina.
Miguel
Curado
Parabéns. Uma grande reviravolta no tempo, que nos transpos para o 25 de abril. Uma excelente forma de dar a sequência. Que tempo nos reservara a Luisa? Aguardemos. Estou a gostar e a sentir-me pequenina nesta aventura. Um abraço
ResponderEliminarMuito obrigado.
ResponderEliminarExcelente prenda de aniversário
:)
Do começo do país para um recomeço que o país viveu com intensidade. Mais uma viagem no tempo a recordar-nos mais um marco importante da história de Portugal. Gostei, Miguel!
ResponderEliminarMuito bom e interessante, este texto!! Parabéns e boa continuação!
ResponderEliminarUm abraço prometido, ao luar...
Beijo e um excelente fim de semana!
Muito bom, Miguel, parabéns!! Esta história está cada vez mais interessante!!
ResponderEliminarEstá a ser mesmo interessante acompanhar a evolução do texto e contactar com diferentes perspetivas!
ResponderEliminarr: Muito obrigada :)
Que delicia de blogue!
ResponderEliminarVou ter de voltar várias vezes para pôr a leitura em dia...
Parabéns a todos.
Abraço.
Muito bom estou a gostar meu amigo.
ResponderEliminarUm abraço e bom fim-de-semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Interessante o conto!!!
ResponderEliminarVou estar atenta ao mesmo!
A máquina do tempo fazendo seu giro, interessante mesmo!
ResponderEliminarBom domingo!
Abraço!
Parabéns por mais este interessante capítulo! :)
ResponderEliminar--
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Sabe o que me fez lembrar?
ResponderEliminarInfelizmente a morte do meu avô materno, o gajo mais porreiro que conheci e que faleceu no dia 26 de Abril de 1974 sem se aperceber do que se estava a passar e que tanta alegria lhe teria dado.
Aquele abraço, boa semana
A máquina do tempo a colocar o protagonista na época em que nós todos acalentámos uma esperança única… Estou a gostar imenso.
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.
Estou a gostar!
ResponderEliminarBjxxx
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Muito cativante de se ler esta história, que li desde desde o início com muito interesse. Parabéns e boa continuação.
ResponderEliminarUma boa memória dos primeiros minutos do resto do tempo.
ResponderEliminarA reter a última frase: “O inesperado de toda esta aventura continuava, ao virar da próxima esquina.”
Parabéns, Miguel Curado, pela prosa e pela lembrança.