14/09/18

Janelas de Tempo - Capítulo 10

Portugal-Insular e Ultramarino (1939)

- Mama Sume! Traz aí mais três Cucas!...
- Eu não bebo mais…
- Bebes sim! Mancebo tem de saber beber. E aguentar!
- Ó Américo, diz-me lá então como fostes parar à França…
- Ora Quim, vim do Ultramar e não arranjava emprego de jeito…
- Vieste malandro, ou não te pagavam o que querias?
- E como tinha tirado a carta de pesados lá, falei com o meu cunhado, e ele arranjou-me emprego num camião.
- E agora?... Está melhor lá do que cá? Onde vives?
- É sempre melhor, e talvez arranje qualquer coisa no chantier… Vivo em Champigny-sur-Marne.
- Sozinho?
- Não. Com a minha irmã, o meu cunhado e os quatro filhos.
- Como o tempo passa… Fui para Angola uma semana depois do casamento, volto agora e ela já tem quatro filhos.
- Ela quando deu o salto já ia de cinco meses. Ia sendo uma tragédia… mas lá se safaram.
- E agora o mancebo quer conhecer os sobrinhos não é? Olha lá, ó Eduardo, tu já acabaste o sétimo ano?
- Não vou conseguir fazer todas as cadeiras, sr. Joaquim…
- Vais ser furriel!... Bem bom! Não tens de fuçar tanto o capim como eu. Vais assentar praça onde?
- Vou para o RI5, nas Caldas, fazer o CSM…
- Eu sei bem onde é o RI5…
- Depois, não sei.
- Ó meu menino, e depois, ala! Dou-te três maravilhosas escolhas por crescente de dificuldade, Angola, Moçambique, Guiné. Olha, ali o Abílio Mama Sume esteve na Guiné, e serviu com valentia.
- Ó Mama Sume!... Então as Cucas, menino?...
- Foi lá que ele ficou assim?...
- Então onde querias tu que tivesse sido, aqui, a servir iscas e verdes tintos? Tramou-se pá! Tramou-se e bem! Fomos colegas no CIOE e juramos que vínhamos inteiros; no Niassa fizemos esta tatuagem, vês aqui?! Ele tem uma igual… mas o sacana distraiu-se, aquilo é fodido sabes?...
- Foi acidente?
- Acidente uma porra! Aquilo é uma guerra, não é nenhum rally! Acidente… Não pá, o bom do Abílio ia da Aldeia Formosa para Gadamael numa coluna e saiu do Unimog para fumar um cigarro, quem tinha lumes era o ‘pica-minas’ e, já estás a ver… sítio certo, hora errada… o pobre do feijão verde pulverizou-se na bolanha, andaram depois a apanha-lo com uma pá; o tecnológico “apalpador” de minas era uma cana da Índia com uma ponta de aço, está a ver… a cana parecia um foguete a rodopiar, e a ponteira entrou-lhe pelo olho direito e desfez-lhe a bochecha… olha pá, se não fosse o heli estar perto… não tínhamos ali o Mamma Sume a servir… - Ó Mama Sume!... Porra! Então? - E esteve sempre consciente, sabes? E repetia sem parar… Mama Sume… Mama Sume… Mama Sume…
- Então este é que é o irmão do Américo?
- Obrigadinho, pousa aí… é… então tu não te lembras aqui do franganote? Olha caracóis. Ó Américo!, vem cá que o Abílio foi caçar caracóis à horta! Não sei como ele gosta desta badalhoquice, mas enfim. É como em France… Ó Américo!
- Pois… agora, sim… tu és irmão da Isaura que está lá para Paris… Sabes, eu estive trinta meses no Ultramar, vinte no mato, e a vida aqui continuou, por estranho que nos parecesse. Depois, regressamos com a mesma idade com que fomos, mas muito diferentes… pois… agora me lembro… tu saíste daqui para estudar no liceu…
- Pois foi, sr. Abílio, lembro-me bem do dia em que o senhor, mais o sr. Joaquim, se vieram despedir; os dois muito bem fardados, com as bichas reluzentes, botas muito bem engraxadas, boinas com umas fitinhas…
- Rangers!, Eduardo. Dois rangers!
- Eu sei, sr. Joaquim… toda a gente na rua, cumprimentos e votos de sorte, abraços e lágrimas, a camioneta à espera, o motorista zangado, que a freguesia lhe ralhava pelo atraso, o povo a retardar… vocês a ficarem na memória… e depois lembro-me da Milocas a escrever aerogramas, um atrás do outro…
- Ó rapaz, deixa-te lá dessas mariquices de senhor para cá e senhor para lá que tu já vais para a tropa, és um homem; e hás-de ser também valente!...
- Eu não vou, sr. Joaquim. Quer dizer… Joaquim.
- Eduardo! Isso é conversa entre nós. Ainda há muito que pensar, muito que pensar… Por enquanto não se fala nisso a ninguém. Desculpem amigos, mas o meu irmão parece que não sabe as consequências do que está a dizer. Tens de ter muita cautela Eduardo, as paredes têm ouvidos. Nem sabes no que te metes…
- Tu não quê, rapaz?!
- Joaquim… deixa o rapaz…
- Abílio! Tu sai-me da frente!
- Calma… calma…
- Tu já não és mancebo! Estás alistado! Agora, cumpre!
- Calma Dedo Torto, calma… o rapaz tem estudos, tem outro ver do Mundo…
- Mas qual calma qual porra nenhuma, qual outro ver do Mundo! Tu sabes o que nós passamos para defender aquele torrão português. Então ali o franganote, com os tais estudos não sabe que aquilo é Terra Portuguesa! Que nos querem roubar. Não sabe que os turras estão a ser mandados por essas potências que nos querem mal e não têm respeito pela História. A nossa História! Mas que merda é esta?! « Eu não vou, sr. Joaquim…» Esta agora!...
- Quim… ele é meu irmão… calma… estou a ver se o convenço a fazer a tropa até à mobilização para o Ultramar. No fundo, é essa a ideia dele, servir a Pátria, mas sem combater o que entende ser o direito que os pretos têm à sua terra…
- À sua terra, Américo?! Nossa terra, Américo! Nossa terra!
- De construírem os seus países, quem sabe, acredito nisso, serem nossos amigos. Falamos a mesma língua, Quim… têm muitos costumes nossos… muitos anos de convívio…
- Mas tu não vês que tudo isso cairá no esquecimento com o tempo e com a raiva que lhes vão meter naquelas cabeças… Aquilo é muito rico Mérico… se alguém vier a seguir vai dizer mal de nós, alimentar ódios, fazer cair no esquecimento tudo o que fizemos naquelas terras… com o tempo, e o tempo são duas gerações!, só restará a vil memória dos interesseiros…
- Talvez, Quim, talvez… Mas já lá vão dez anos de guerra… aquilo nunca mais acaba… e a juventude tem o direito a recusar combater numa guerra sem fim à vista…
- Foda-se Mérico! Tu também la andaste. Quanto tempo estiveste no AB5?
- Vinte e dois meses…
- Viveste em Nacala, conheceste Lourenço Marques, a Beira, Quelimane, Cabora Bassa… vocês na Força Aérea tinham uma ideia geral do panorama, largueza de vistas, tudo lá de cima; e então? Fica tudo para o turra?! É isso que tu queres?! Que tudo aquilo que o branco fez fique para os turras, é isso?!
- Não penses em “turras”, Quim. Feita a paz, não são mais turras, são quase “dos nossos”.
- Ora porra Mérico! Porra! Tu és mas é comunista! Comunista! Não me provoques!...
- Tenho que pensar como tu? Que conheces tu além destas berças e duma guerra particular? Quando foste mobilizado nunca tinhas saído daqui; depois, conheceste o Niassa, depois a tua guerra, e cá estás, de volta ao mesmo. Não lês, não viajas, não sabes. Por um acaso sabes o que foi o Maio de 68? Nem ouviste falar, pois não? Pois não. Essas notícias não chegavam a África… E falar, podes falar aqui, sem olhar sobre o ombro? Ou só sussurras não vá um bufo ouvir?... Vem comigo Quim, vem ver um Mundo novo. Tens o serviço militar cumprido, arranjo-te uma carta de chamada, não tens de ir a salto… Não te posso oferecer muito, aquilo é um bairro de lata, o maior da Europa, sabes? Europa… mas tu sabes lá o que é a, Europa… Chamam-lhe bidonville lá, é vida dura, mas havemos de lá sair, de conseguir vida. E ninguém vai preso por falar alto, sabes?... Ninguém vai preso por pensar.
- Olha, eu vou ali verter águas. Diz ao Abílio para se sentar aqui com a gente e chama o teu irmão que isto tem de ficar esclarecido hoje e aqui. Vou tentar ter calma, mas não me moam a cabeça.
- Que se passa com o Quim, entornou?
- Foi lá fora arejar as cervejas, está furioso por o meu irmão não querer ir para o Ultramar…
- Mérico… o Quim é bom moço, amigo do seu amigo e qualquer um de nós lhe pode confiar a vida… mas veio muito transtornado de lá. A mim, chama-me submisso… talvez seja… Sabes porque lhe chamavam o Dedo Torto?
- Falaram-me duma emboscada…
- Pois foi… nós éramos como unha e carne, mas depois, fomos cada um para seu lado. O Quim esteve em Zala, vinte meses… aquilo era a ante câmara do Inferno sabes? Um dia foram escoltar uma coluna de reabastecimentos que ia para Nambuangongo… numa parte da picada que fazia um “S”, era sempre quando fazia um “S”… foram emboscados. A flagelação foi tal, que muitos não saíram das berliets… ele, que já tinha saltado, acartou uma Breda às costas, berrou para o lado e pediu que o municiassem. Um cabo seguiu-o até uma elevaçãozita, e de lá seguraram a posição até gastarem os pentes todos. Consta-se que pediam para urinar no cano sempre que ele incandescia… Quando tudo terminou, o Quim desmaiou com o indicador no gatilho. Nunca mais o endireitou… Morreram ali uma dúzia, mas o Dedo Torto salvou meia centena…
- Mas ele não vê que é uma guerra que não se ganha?
- Não, Mérico. O ponto dele é outro. Como honrar quem tombou? Como manter o edificado? Como glorificar o trabalho feito? O ponto dele é que, quando sairmos, vão andar todos à bofetada e a destruir o que deixamos. Na ideia dele, isso sim, é um crime. E eu tenho de concordar com ele…
- Está ali fora um tipo sentado, alguém conhece?
- Um tipo?... Que tipo?...
- Sim; um gajo com um cão. É de cá? Espreita aí.
- Não. Não conheço…
- Se não é de cá, não é bufo. Será PIDE?
- Chut! Abílio!, vai chamar o Eduardo, rápido…
- Estará ali há muito?
- Deve estar… quando lhe apareci, tentou disfarçar… mas era tarde. Fez uma festa ao cão para me virar a cara. Deve ter ouvido a conversa toda…
Júlio conhecia aquelas verdades todas e o fim da história.
E também sabia o quanto a Metrópole desconhecia o Ultramar, e o quanto este a desdenhava. E que a única ligação entre o puto e as colónias, era a escola primária nas figuras dum mapa agarrado à parede e dum professor austero. A narrativa heróica!... Portugal do Minho a Timor… a História… «Uma treta… Para lá, só “a pedido”. E quem lá chega esquece rapidamente a miséria que deixou.
- Muitas Micas se transformaram em Donas Marias com uma viagem de barco -, disseram um dia. É mais difícil do que emigrar para França. Aconteceu com o meu pai. Imagine-se um indígena de Lisboa necessitar duma carta de chamada para ir viver para o Alentejo… tendo alguém de se responsabilizar pelo seu trabalho, pela sua estada, pela sua alimentação, pelo seu bom comportamento… Quase como quem se responsabiliza por um vadio… Do Minho a Timor… Uma treta…»
- Ó Eduardo, quando saíste aquele tipo já ali estava?
- Já, e o cão dormia. Salvamo-nos, ele sorriu, e eu segui.
Ainda pensou meter-se na discussão. Se a coisa corresse mal, tinha a defesa imediata do Whisky, e por último a da máquina. Quem sabe não, e ficaria.
Estava a ficar farto de desaparecimentos na sua vida. Depois de Laura e da sua fuga oferecida, tudo lhe aparecia agora em efémeros episódios como se vivesse de retrato em retrato. E nenhum era o dele.
Queria ir embora daquela aventura para que tinha sido empurrado. «E se eu ficasse?...»
Queria aparecer, estar, e ficar, num mundo que sentisse seu, mesmo não sendo. Era essa, agora, a sua contradição vital. «E se eu ficasse?...»
- Vamos falar com ele?
- E se for da PIDE?
- Ficamos a saber…
- Mas, e o Eduardo?
- Ora, que tem o Eduardo?! O Eduardo vai para a tropa, e acabou a conversa.
- E se ele ouviu a intenção? E se faz queixa? E se o leva já? E se ele nunca mais aparece?
- Isto é que está aqui uma porra, companheiros… Deixem-me pensar…
- É melhor ir falar com o gajo, se se puser com coisas leva duas bordoadas. Com a gente ninguém se mete!
- Ó Abílio, vai lá chamar o tipo se fazes o favor.
- Fugiram!... Nem homem, nem cão! Fui ali ao cabeço e só vi uma poeirita, como um rabo de vento…


       José Bessa                 


16 comentários:

  1. Excelente José Bessa. Gostei tanto que li de um fôlego só.

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  2. Meu caro Bessamigo

    Não é excelente - é excelentíssimo!!!! :-)

    Um abração deste teu novo amigo
    Henrique, o Leãozão

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  3. Uma estrutura diferente, inédita entre as nossas publicações. E com um interessante tema. Gostei mesmo. Parabéns, Bessa-José Bessa

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    1. Obrigado, João Madeira. :)
      Estive indeciso quanto ao formato. O tema, é sempre actual...

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  4. Um excelente texto meu amigo e eu ainda estudei por aquele mapa.
    Um abraço e bom fim-de-semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    Livros-Autografados

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    1. Obrigado, Francisco Manuel Carrajola Oliveira. :)
      Foi o nosso mapa...
      Um abraço.

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  5. Narrativa a lembrar momentos difíceis da nossa História. Gostei.
    Uma boa semana.
    Beijos.

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  6. Curioso que hoje também publico algo desses tempos negros.
    Do livro da terceira classe do meu pai.
    Boa semana

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    1. Lembro-me desse poema na escola primária.
      Não sei se do livro, mas foi recitado na sala de aulas várias vezes.
      (na altura ainda não tinham inventado o "dizer"...)
      Bom fim-de-semana.

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  7. Olá José

    Gostei muito...

    Agora estou lendo os capítulos anteriores, pois cheguei ao seu blog por agora.

    Beijos
    Ani

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    1. Obrigado, Ani Braga. :)
      Grato por ler as nossas histórias.
      Beijos também.

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