21/09/18

Janelas de Tempo - Capítulo 11

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- Mãe, mãe, não me sinto nada bem. – Murmurava Júlio. - Mãe, onde estás tu? – Continuava, enquanto sentia todo o seu corpo embalado por uma força estranha. Parecia que todas as suas entranhas estavam a ser remexidas e era como se tivesse o estômago no lugar do cérebro. Mas que raio estava a acontecer? Só queria a sua mãe. E aquele vento, que trazia uma mistura de cheiros entre maresia, suor, cordames e putrefacção.
- “Hey you! Wake up!” – Ouve, num inglês que parecia saído dos filmes do tempo da Rainha Vitória. De repente, um pontapé nas costas acorda-o do torpor em que estava, sabia lá ele há quanto tempo. Abre os olhos e vê um homem com umas barbas desgrenhadas e meio desdentado, com uns olhos muito arregalados a olhar para ele. Ao seu lado, um mulato muito espantado, olhava também para ele, com um ar surpreso.
- Onde é que estou? – Balbuciou Júlio a muito custo, enquanto um novo solavanco o fez agarrar a barriga, e sem conseguir conter mais, vomitou um líquido esverdeado e ácido aos pés daqueles dois homens. Que enjoo tão grande e ao mesmo tempo uma fome estranha! Bom, realmente já nem se lembrava a última vez que tinha comido.
- “What? What he said?” – Diz o homem andrajoso.
O mulato esboçando um sorriso de alegria, baixa-se e tenta ajudar Júlio.
 – Oh que bom, fala Português! – Num tom açucarado, denotando a sua proveniência do Brasil.
De repente alguém grita lá ao fundo e o desgrenhado responde num grunhido.
– “Yeah, I’ll go in a minute.”
Olha novamente para Júlio e para o mulato que o tenta ajudar a levantar-se e encolhe os ombros, como querendo dizer eles que se entendam.
- Você está bem? – Pergunta o moço a Júlio.
- Sinto-me muito enjoado. Onde é que estou?
- É natural, estamos em alto mar e a corrente hoje está muito forte.
- Alto mar? – Oh meu Deus, ele que tinha tido sempre medo de andar de barco e que enjoava mesmo na travessia de um cacilheiro para a outra margem.
- Sim. Estamos a caminho de umas ilhas quaisquer. Quem é você? E como apareceu aqui no barco? Anda fugido? – Questionou o rapaz.
Fugido? Pois se calhar era um bom termo. Afinal o que é que ele andava a fazer de tempo em tempo? A fugir do seu próprio tempo. Aquele tempo interior que lhe provocava insónias e dores no peito e um vazio maior que o da sua barriga naquele momento.
- Não me lembro como vim aqui parar – optou por responder Júlio. Mas afinal em que ano estamos? E em que barco estamos? – Questionou Júlio, a custo ainda.
- Eu também ando fugido. - Disse o rapaz, sem responder logo às questões de Júlio. - Fugi dos meus senhores, quando o Beagle atracou na Bahia. Já não aguentava mais as chicotadas do capataz. - E nesse instante, a sua face ficou vermelha de um ódio que Júlio percebeu vir de dentro, de algo muito profundo.
- Beagle… esse nome não me é estranho. Já ouvi esse nome. – Diz confuso Júlio.
- É natural. Deve-o ter visto atracado antes de entrar aqui.
Mas Júlio sabia que não podia ser esse o motivo pois tinha aterrado naquele barco vindo directamente doutro tempo. Beagle…
- Quem é o comandante deste navio? – Pergunta.
- Não sei o nome dele porque não percebo a língua deles. Faço apenas o que me mandam, pelos gestos que fazem. – Disse o rapaz. - Mas a pessoa mais importante do barco é aquele senhorzinho ali ao fundo – apontando para um homem, bem-posto, que escrevia algo com muito entusiasmo num caderno.
A muito custo, Júlio olhou em frente e reconheceu uma imagem que já tinha visto num documentário da National Geographic. Aquele não era nem mais nem menos que Charles Darwin, o famoso naturalista, pai da teoria da evolução. Isso significava que tinha ido parar algures em 1800s.
- Em que ano estamos? – Perguntou Júlio.
- Ué, eu é que sei! Só sei quando o Sol se põe, e quando a Lua fica cheia. Não sei nada dessas coisas do senhor-branco. Como o senhorzinho se chama? – Perguntou ele. - O meu nome é Manuel. A minha mãe deu-me o nome do patrãozinho, que é o meu pai, embora sempre me tratou com panca da. Daí eu ter fugido quando este navio parou na Bahia. Escondi-me e só apareci quando vi que estávamos no mar. E tem sido uma vida bem melhor. O senhorzinho Charles embora eu não perceba o que ele diz, é bom para mim. Tenho ajudado a carregar caixotes em cada terra que paramos. Eles andam a trazer coisas e bichos do mato. Não sei para quê mas o senhor Charles passa todo o tempo que está no navio a ver nos caixotes a bichagem e também muita planta.
Nesse momento, e antes que Júlio pudesse responder, o navio Beagle levou mais um solavanco provocado por onda mais intempestiva e tornou a ver tudo a andar à roda.
Manuel segurou-o e amparou-o até a uns caixotes pousados no convés. De repente, Júlio lembrou-se de Whisky. Onde estaria o seu fiel amigo?
- Manuel, viste um cão aqui no navio? – Perguntou ansioso Júlio.
- Cão? Não! Um cão aqui no navio nunca vi. Vi muito bicho estranho mas cão nunca.
- “Manuel, come here!” – Gritou Darwin, lá do fundo.
- Tenho de ir ajudar o senhor Charles, deve querer ver mais algum bicho. Volto já. Não se mexa que o senhor está branco que nem parede de casa.
Júlio sentou-se mais direito encostado a um barril. Sentia ainda o corpo todo virado do avesso e suores frios, cada vez que o navio avançava mais mar adentro.
E agora, o que fazer? Estava preocupado com Whisky. Tinha-se habituado à presença daquele ser tão meigo e que era uma companhia tão fiel. Pensou em chamar a máquina, mas hesitou. Estava num dos navios mais importantes da História. Se continuasse ali podia viajar meio mundo e conhecer terras fantásticas, para além da sua imaginação. Talvez encontrasse um canto numa ilha deserta onde pudesse passar o resto dos seus dias, sem precisar de andar a saltitar mais. Mas e Whisky? Não, tinha de o ir procurar. Não podia ficar ali sem ele, e desejou ardentemente que, fosse lá o tempo onde fosse parar, desta vez os seus pés pisassem terra firme e sentisse de novo a lambidela no nariz do seu amigo.
O desejo foi tão forte que o chip se activou repentinamente e Júlio viu-se novamente dentro da máquina.
Manuel, quando voltou, ficou sem perceber o que tinha acontecido. Aquele homem estranho mas simpático foi-se, tal como veio, dissolvido na espuma do mar.


                                                                                      Carolina Lemos

6 comentários:

  1. Parabéns Carolina. Gostei muito desta abordagem e muito bem escrito. Ficamos com vontade de ler mais. Beijinhos

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  2. Um bom momento de leitura que eu gostei muito de ler !!! Bj

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  3. Adorei!! 🍀
    Por momentos viajei!
    Próxima paragem?!

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  4. É muito bom
    acompanhar essa sua ótima
    escrita.
    Encantada.
    Bjins
    CatiahoAlc./Reflexod'Alma
    do Blog Espelhando

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  5. Imaginação sem limites todas as semanas.
    Chapelada!
    Boa semana

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