03/09/18

Janelas de Tempo - Capítulo 8

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Ainda abraçado a Whisky, Júlio deu por si numa pequena clareira. Sentiu imediatamente o calor e os cheiros intensos e desconhecidos ainda antes de se conseguir focar no local onde “aterrara” desta vez. Olhando em volta só viu mato cerrado e umas árvores com troncos largos, enormes, com os ramos no alto, estranhas e invulgares, quase lhe pareceram alienígenas. Por momentos sentiu medo de que a máquina além de o ter transportado no tempo o tivesse transportado para um outro planeta. Mas, de repente, fez-se luz:
- Júlio, estás em Africa! São embondeiros.
– Whisky, meu amigo, estamos em África. - Quase gritou.
Firmando-se melhor nas pernas pensou que talvez fosse melhor agir com cautela e manter-se silencioso, não sabia em que época estava, mas fosse qual fosse, perigos não deviam faltar.
- Whisky vamos avançar com cuidado e caladinhos.
Homem e cão começaram a andar, avançando a custo no mato, ao fim de algum tempo, Júlio avistou o que lhe pareceu uma vereda, resolveu avançar e seguir aquele caminho, mas sempre vigilante. O calor era abrasador e sufocante. Em que zona de África estaria? Em que época? Talvez que explorando mais um pouco chegasse a alguma conclusão.
A Vereda era longa e começou a ver pegadas humanas, pelo menos ficou com a certeza de que o lugar era habitado e que mais cedo ou mais tarde encontraria uma aldeia ou vila. Caminhou silenciosamente durante o que lhe pareceu uma hora. De repente ouviu um barulho muito familiar, mas que lhe pareceu completamente deslocado naquele local, olhando para cima viu um caça e logo a seguir outro, começou a ouvir estrondos. Um atrás do outro. Estavam a bombardear algo, Júlio correu na direcção do som das explosões. Estas pararam e Júlio começou a avistar fumo e quase de imediato avistou uma pequena aldeia.
Decidiu desviar-se da vereda e esconder-se no mato e fez sinal a Whisky para se manter calado e quieto. Viu as pequenas casas de barro e telhados de colmo, em que algumas já ardiam e ouvia os gritos de aflição. Logo em seguida começou a ouvir o barulho de helicópteros, vi-os chegar, cinco, todos com a Cruz de Cristo, carregados de militares portugueses armados de G3 que saltavam dos helicópteros e seguiam em formação de ataque para a aldeia, sabia agora que tinha caído em plena guerra Colonial.
Viu os soldados irem de palhota em palhota e retirarem homens, mulheres, crianças e velhos para as reunirem no centro da aldeia. Ouviu o comandante português perguntar pelos turras: “Ou dizem onde estão os turras ou morrem todos aqui hoje! Um ancião, certamente o chefe da aldeia, disse:
- Não há turras aqui patrão, só nós.
O militar português insistiu:
- Há turras aqui e ou dizem quem são ou morrem todos aqui!
Júlio, apesar do calor, gelou. Abarcou aquele cenário: Mulheres choravam baixinho, as crianças choravam alto com o medo, os homens sem acreditarem que os fossem matar. Via os militares nervosos, com o dedo no gatilho da G3, os rostos tensos, as bocas cerradas, a raiva surda na cara de alguns.
O comandante falou mais uma vez, enquanto tirava a arma do coldre:
- É a última vez que pergunto: onde estão os turras? Vou contar até 3. 1… 2… - fez um silêncio por segundos que pareceram uma eternidade -… 3!
E disparou matando o ancião e gritou para os seus homens:
- Fogo à vontade. Matem todos!
Júlio queria fechar os olhos, mas não conseguia, viu tudo. Viu as crianças a morrer no colo das mães, viu as mães a caírem, ouviu os gritos de agonia e desespero, viu até alguns adolescentes a fugir, uns a caírem parados por balas e um ou dois que lhe pareceu que tinham conseguido fugir. Viu aquele massacre, seriam o quê? Talvez 100 pessoas, talvez mais. Viu o sangue vermelho a manchar o chão cor de pó. Ouviu os gemidos altos dos moribundos.
Viu, ouviu e sentiu todo aquele massacre de pessoas inocentes, estava paralisado de horror sem conseguir raciocinar.
Ouviu as ordens do comandante, viu os corpos a serem amontoados, a serem regados com gasolina, pegaram fogo a tudo, a pessoas e às palhotas.
Quando o cheiro a carne queimada chegou a Júlio, ele não aguentou mais, sem largar Whisky, pensou que queria sair dali e imediatamente se encontram os dois na máquina. Ainda horrorizado com as imagens que vira, carregou no botão.


                                                                                             Fátima Ferreira



22 comentários:

  1. Parabéns Fátima Ferreira, por abordar este perído negro da nossa história. Infelizmente existiram imensas situações assim. Acho que os próprios militares agiam coagidos pelo medo do que os esperava.

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    1. Muito obrigada Natália. É, na verdade, um período negro na nossa história. Como em todas as guerras foram cometidas atrocidades por ambos os lados. Infelizmente, ainda é um assunto sobre o qual muitas pessoas se sentem incomodadas em debater.

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  2. Uma fase menos feliz da nossa história...

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    1. Sem dúvida. Mas é importante não a esquecer. A História tende a repetir-se.

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  3. Um capítulo triste, mas bom de se ler como os outros! :)
    --
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  4. Minha querida Fátimamiga

    Eu vivi, infelizmente, a guerra colonial em Angola e já escrevi bastante sobre ela e até publiquei um livro intitulado Morte na Picada. Por isso compreendo bem o que escreves - e bem, ou melhor, e muito bem.

    As situações dramáticas que todos os que por lá andaram foram inultrapassáveis e inolvidáveis. Basta que te diga que depois de uma emboscada me morreu um soldado nos braços esvaindo-se pois perdera uma perna com a explosão duma mina. Para um alferes miliciano que ainda por cima era da oposição - mas já tínhamos a Raquel e eu dois filhos - a dificuldade e o nojo ainda conseguiam ser maiores.

    Por isso dou-te sinceramente os meus parabéns. Fizeste-me viver, de novo, agruras que tanto me custaram mas que felizmente não me deixaram traumas.

    Qjs = queijinhos = beijinhos do teu novo amigo
    Henrique, o Leãozão

    AVISO

    Já se encontra na Nossa Travessa o episódio n.º 12 da saga É DIFÍCIL VIVER COM UM IRMÃO MONGOLÓIDE cujo título é Entre dois dias: um louco amor e um suicídio. Tenho de avisar que ele contem cenas eventualmente chocantes por serem eróticas que podem ferir pessoas púdicas ou mesmo falsas púdicas.

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  5. Obrigada pelas tuas palavras Henrique. Na minha opinião a melhor forma de homenagear quem morreu e sofreu traumas físicos e psicológicos naquela guerra, é relembrar o que aconteceu. Assim possámos aprender algo com a história. Beijinhos com amizade

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  6. Triste fato, muito desesperador.
    Desejo uma excelente semana, e um mês de setembro cheio de coisas boas.
    Um abraço!
    Escrevinhados da Vida

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  7. Minha querida amiga,
    Parabéns pelo teu capítulo, tão forte e sofrido! Estas coisas não se podem esquecer... foi mesmo uma linda homenagem. Há fatos na história que preferiríamos apagar, mas - é bom que se diga - nunca da mente. Para que possamos construir um futuro mais humano.
    Muitos Beijinhos, deseja-me sorte. Fizeste a tua parte com jeito a nos deixar lágrimas nos olhos.

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    1. Obrigada minha querida amiga pelas tuas generosas palavras. Boa inspiração para ti. Beijinhos

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  8. E tudo isto e muito mais aconteceu porque somos um povo de brandos costumes... Gostei muito da tua escrita que consegue transportar nos no tempo e no espaço. Beijinhos doces minha querida amiga...

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    1. Obrigada. Não existem povos de brandos costumes. Todos nós, humanos, temos dentro de nós o potencial para a violência e para a barbárie. Uns mais do que outros. Bjs

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  9. Quem dera pudéssemos todos carregar no botão para escapar desses horrores.

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  10. Oi! Gostei muito do blog, obrigado por seu comentário! Já estou seguindo :)

    O Planeta Alternativo

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  11. Isso ai,
    o importante é sempre seguir
    com a escrita.
    Grata por dividir conosco
    seus leitores.
    Bjins
    CatiahoAlc.

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  12. Quantas atrocidades se fazem nas guerras ....
    Parabéns pela forma intensa e sentida com que escreve.
    Beijinhos
    Maria
    Divagar Sobre Tudo um Pouco

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  13. Um horror estas atrocidades da guerra colonial. Muito bem narrado, mas muito inquietante…
    Uma boa semana.
    Beijos.

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