24/08/18

Janelas de Tempo - Capítulo 7

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Um enorme enjoo e uma tremenda dor de cabeça envolveram Júlio numa profunda angústia. Esta última não conseguia perceber de onde vinha tão de repente, tomando-o com mão firme e deixando-lhe o estômago embrulhado num nó que não se desfazia. Ao mesmo tempo, um calor brutal atordoou-o ainda mais. Sentia a cabeça a explodir e uma sede voraz e avassaladora, desenhou-lhe um ricto amargo no rosto. Sem abrir os olhos, moveu com dificuldade a língua sobre os lábios e descobriu-os gretados e a pelarem. Tentou mover o corpo mas nova e dilacerante dor tolheu-lhe os movimentos.
Nunca até então tinha sentido tão excruciante angústia, excepção feita à morte de Laura.
Finalmente, conseguiu apalpar o solo à volta mas não descerrou os olhos. Muito devagar sentiu areia que deixou escorrer lentamente por entre os dedos.
Também a areia lhe fazia lembrar Laura. Não esta, mas a fria do alvorecer na praia. Ambos gostavam de despertares matinais e de pisar a areia virgem de pessoas, onde apenas as gaivotas se atreviam a poisar. A frescura que pisavam tinha sobre eles um efeito mágico, despertando-lhes o calor do corpo e a vontade de se amarem. Desde a morte de Laura que não voltara a pôr os pés num areal.
Talvez fosse por isso que aquela angústia viera assombrá-lo e parti-lo por dentro, tanto como o calor o gretava por fora. Muito a custo, tentou entreabrir as pálpebras mas até esse pequeno esforço o tolheu. Parecia que ambas pesavam como pedras e sentia mesmo que se tinham, de algum modo, cerrado para sempre.

Nova tentativa deu origem a duas pequenas frestas que mal divisavam o terreno à sua volta. Um pouco mais e enxergou mais areia. Ligeiras sombras tremulavam na sua frente. A areia era escaldante e não lhe conseguia ver fim. Não estava por certo numa praia. Não ouvia qualquer rebentação ou suave murmúrio do mar e o cheiro a maresia apenas existia nas suas memórias.
Pior do que tudo, Júlio constatou que não se lembrava de ter saído da máquina. Achava de mau agouro esta realidade e à angústia e dor existentes, veio juntar-se o temor que começava a sentir.
Tentou ser racional e não se deixar levar por devaneios sentimentais e mais memórias dolorosas. Precisava saber onde estava.
Novamente estendeu as mãos e descerrou mais os olhos. E de repente, ao calor escaldante juntou-se um frio rápido e acutilante que o fendeu por dentro como um punhal. Perto da sua mão um enorme escorpião negro preparava-se para o picar. A primeira constatação é de que estava num deserto, algures pelo mundo. Naquele momento o seu corpo disse-lhe,  primeiro para se levantar e fugir, o que nas presentes circunstâncias não seria viável, depois para se imobilizar ainda mais, o que também não lhe dava garantias e finalmente para acabar ali a viagem comunicando ao chip a sua vontade de fugir dali.
Tomou rapidamente a última opção pronto para se livrar da situação. Abriu os olhos e nada aconteceu. Voltou a repetir o pensamento e verificou aterrorizado que estava no mesmo sítio. O escorpião tinha avançado mais uns centímetros, lenta mas previsivelmente.
Pensou que devia preparar-se para morrer. Possivelmente de uma morte dolorosa, isto se a sede e o sol não o matassem antes. Alguma coisa lhe dissera que a máquina avariaria numa qualquer viagem e ali estava a prova.
Não se podia mexer para verificar o dente com os dedos e a língua era um pedaço de madeira seca colada à boca. A muito custo lá conseguiu tocar no dente, no que lhe pareceu um esforço hercúleo. Sentiu o chip e nada lhe pareceu alterado. A avaria devia ser mais grave.
Fez nova tentativa à espera de um milagre mas aquela mostrou-se inglória. Abriu mais os olhos e viu o escorpião muito perto preparado para atacar. Nesse momento, uma lâmina refulgente desceu rapidamente silvando junto dele e cortando o animal.
Ainda mal refeito de tudo Júlio divisou uma túnica árabe de um branco que lhe feria os olhos e um rosto por baixo de um ghutra cingido por um igal dourado. Mas o que mais o confundiu no seu salvador, foram os desconcertantes olhos de um azul metálico que o fitavam. Tentou reagir mas uma escuridão caiu sobre ele  quando o corpo cedeu devido a tantas emoções.

Quando Júlio despertou de novo, a sensação  de calor sufocante e a extrema sede, tinham sido mitigadas. Encontrava-se deitado numa tenda e a dor de cabeça já não o atormentava. Olhou à sua volta para tentar localizar-se mas o seu raciocínio ainda não lhe permitia grandes voos. E nessa altura o seu salvador entrou e falou-lhe num inglês que o remeteu para as suas viagens a Inglaterra. Felizmente não tinha problema com o idioma e facilmente encetou conversa.
- Como se chama e de onde vem?
Júlio não sabia o que responder. Por momentos a língua entaramelou-se e nem um som conexo saiu. Depois mais calmo lá tentou responder sem grande precisão.
- Chamo-me Júlio e sou europeu.
A resposta pouco precisa e definida não pareceu satisfazer o homem. Entretanto Júlio tentava desesperadamente identificar o misterioso homem dos olhos azuis, bem como o local e época em que se encontrava. E foi nessa altura que um homem corpulento e de cenho cerrado entrou na tenda e trocou umas palavras com o desconhecido. De tudo o que foi dito Júlio apenas conseguiu perceber dois nomes: Faiçal e El Aurens.
Surpreendido mas entusiasmado verificou estar perante alguém que sempre tinha admirado: T.E. Lawrence, ou mais comummente Lawrence da Arábia.
- Onde estamos?
Lawrence apesar da pergunta lhe parecer estranha, respondeu-lhe:
- No deserto de Nefud, no reino de Hejaz, naturalmente.
- Estou confuso, deve ter sido do sol.
- Mas como veio ter a este sítio, no meio do deserto? O que faz?
Júlio não sabia o que responder porque as verdadeiras respostas nunca seriam simples, de modo que limitou-se a responder que era explorador e se tinha perdido.
Lawrence pareceu não acreditar mas esboçou um leve sorriso que poderia ser qualquer coisa. Indicou ao seu hóspede como poderia tratar da higiene e convidou-o em nome de Faiçal para o banquete da noite.
Subitamente, um novo sentimento de perda assolou-o. Onde estava Whisky? Atordoado com o calor do deserto e a ameaça do escorpião, tinha esquecido o cão.
- Onde está o meu cão? Onde está Whisky?
- Whisky? É um cão? - Respondeu-lhe Lawrence. Não vimos nenhum cão perto de si e duvido que sobrevivesse naquele ambiente.
Júlio baixou a cabeça atormentado. O aparecimento do animal em Lisboa, tinha-lhe trazido uma confiança e o agradável sentimento de que pertencia a algo. A solidão escondera-se dentro de si, talvez incomodada com o companheirismo que Whisky trouxera.
Durante a refeição tentara concentrar-se e viver todos os pormenores de modo a intensificar a sua experiência.
Achava curiosa a escolha do local e da época, ele que até agora andara sobretudo por Portugal. Mas talvez o chip também lhe adivinhasse um desejo antigo, o chip que lhe falhara antes e sem o qual não regressaria à máquina.

Mais tarde, sozinho na tenda, Júlio não conseguia deixar de pensar se o que ouvira durante o jantar estaria certo. Teria percebido mal? Lawrence traduzira-lhe algumas coisas mas a maior parte era para ele incompreensível. Era-lhe impossível dormir sem ter mais certezas. Felizmente Lawrence entrou na tenda para falar com ele.
- Então, preparado?
- Preparado? Para quê?
- Para o que estivemos a falar com Faiçal, é claro.
- Bem, devo dizer que não percebi quase nada.
Lawrence esboçou de novo aquele meio sorriso misterioso que dava um brilho especial aos olhos azuis.
- Amanhã montará um camelo, porque os cavalos não chegam. Mas será uma grande honra para si acompanhar-nos.
- Amanhã? Acompanhar-vos onde? - E o coração de Júlio começou a disparar.
- Amanhã tomaremos Aqaba aos turcos. Durma bem e esteja preparado.
Lawrence deixou a tenda tão silenciosamente como entrara, deixando Júlio atónito e sem palavras. Lembrava-se bem daquela batalha por tudo o que lera e estudara mas tinha de confessar a si mesmo que o seu interesse era apenas científico, não o levando a desejar participar fisicamente nela.

Depois de minutos incontáveis sem conseguir dormir, resolveu colocar-se à porta da tenda olhando o céu sulcado de estrelas. Era um espectáculo tão belo que parou de respirar tentando guardar o momento. Apesar de todos os infortúnios, tinha de reconhecer que era um privilegiado. Tanto, até agora, lhe tinha sido dado a conhecer!
Épocas, acontecimentos, personagens da História. Sentia o peso do deserto como algo tangível, palpitando sob a noite escandalosamente estrelada.
Mas ir para a batalha, uma batalha sangrenta, em 1917 e montado num camelo sob as ordens de uma mole de gente desconhecida, afigurava-se-lhe uma loucura.
Mas com o chip e o GPS avariados, jamais sairia com vida dali. Pensativamente percebeu que afinal talvez não quisesse morrer.
Voltou para dentro da tenda, quando a alvorada começou a raiar e os preparativos das tribos se fizeram ouvir. Sentado, tentou de novo comunicar desesperadamente a sua vontade de sair dali, uma, duas, três vezes, acabando por desistir e achando que o melhor era aceitar o destino.

     Sem ânimo para mais e cansado da noite de insónia, começou a adormecer fechando devagar os olhos. Um latido vibrante e ansioso, chamou-o de volta. Abriu os olhos e sentiu as lambidelas meigas mas vivazes de Whisky. O pastor-alemão estava ainda mais magro mas parecia estar bem. Por onde teria andado não sabia mas afinal no meio de tantos mistérios por resolver, esse era apenas mais um. Encantado, abraçou o cão e desejou voltar à máquina.
E nesse instante o chip e o GPS funcionaram. Sabia que a avaria poderia voltar a acontecer e dessa vez sem resolução. Mas o que lhe importava agora era que voltara à máquina e não estava sozinho.
Júlio riu com uma alegria um pouco descontrolada, tal era o seu alívio, abraçou de novo Whisky e carregou no botão.


                                                                                        Margarida Piloto Garcia

           

7 comentários:

  1. Confesso que tive pena que a tecnologia funcionasse. Ainda gostava de ver o nosso Júlio e Auda abu Tayi na grande cavalgada (poderei chamar-lhe assim?) pelo deserto atacando Aqaba pelo lado improvável.
    Parabéns, Margarida Piloto Garcia. Saímos de Portugal. Muito bem.
    P. S. - Vou (re)ver o filme.

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    1. Obrigada.Estive tentada a ir um pouco mais longe. Logicamente quem entrou na tenda, o homem de cenho cerrado, era Auda.Tratando-se de factos da Historia teria de prolongar a pesquisa e o conto tambem se tornaria muito comprido.

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  2. Parabéns. Uma forma diferente de "voar" no tempo. Confesso que nunca me ocorreria colocar o JUlio a combater lá pelas Arábias. Gostei

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  3. Hoje até Lawrence da Arábia por aqui passou.
    Imaginação absolutamente delirante!!
    Bjs, boa semana

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  4. Parabéns pela imaginação e capacidade narrativa. Estou a seguir com imenso interesse…
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  5. Boa tarde, querida Margarida!
    Há angústias que nos detonam internamente, bem assim.
    Tenha dias felizes e abençoados!
    Bjm fraterno de paz e bem

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