18/01/19

Ecos de Mentes - Capítulo 5

©Albino Pereira


Matilde 


Tenho alguma dificuldade em entender as pessoas. Não um certo tipo de pessoas mas todas em geral.
Acho que sou o que se poderia chamar um espírito antigo num corpo jovem. Tenho 17 anos, feitos no dia de Natal que acabou de acontecer. O velho ano ainda não se despediu, as azáfamas ainda se sentem na casa e, no entanto, nada de relevante se passou. Estou mais velha (será possível?), o Cristo voltou a nascer, o Pai Natal da Coca-Cola ressurgiu nas chaminés e varandas (exceto o da do segundo esquerdo, lá do meu prédio, que já descolorou dados os meses que leva na mesma posição, num ridicularizar inexplicável e insistente. Dizem que o senhor ficou assim mais descuidado desde que uma filha caiu na vida fácil e deixou de lhe ligar), os sinos ouviram-se de forma repetida e, para mim, irritante. Alguém sonhará o que é ter, em cada aniversário, este ataque de loucura coletiva, estes sorrisos falsos à conta de uma felicidade imposta pelo calendário?
Já não estou em casa desde o dia 27 de dezembro. Desde as 10h desse dia, mais precisamente. A carrinha lá estava à porta, à hora combinada, e trouxe-me para este centro de tratamento,
Este meu jeito de ser e de estar não me facilita a vida. Isto de ser a única ovelha negra entre centos de ovelhas imaculadamente brancas tem custos. Todos os olhares estão fixados em mim. A maior parte dos demais internados nesta “Casa de Repouso” têm a idade dos meus avós mais velhos, os paternos. Não consigo falar com eles, não há conversas possíveis. A única altura em que se poderia falar de alguma comunicação é quando me sento ao piano e deixo os sons saírem do meu íntimo para se espalharem pelo salão.
Não deixa de ser curioso observar os que me rodeiam. Poderia falar das espanholas mudas – acho que são espanholas pois só as ouço dizer “no podemos hablar”. Como o Diretor desta Comunidade Terapêutica é um tal Ramon Saavedra, que nunca vi, faz algum sentido. A psiquiatra que me prescreve as drogas, mal me ouvindo, chama-se Helena. Diria que se autorreceita e que abusa das drogas. Mas sobre isso poderia falar melhor o Gabriel – aquele culto do físico está bem sustentado em químicos e já o vi, mais do que uma vez, a sair do gabinete da doutora com ar muito suspeito. Não me parece que a relação seja meramente clínica. A mim não me enganam.
Uma residente bem gira é a Cláudia. Entradota na idade, é certo mas com um corpinho de fazer inveja a muitas que podiam ser suas filhas. No outro dia, pela esquina da porta entreaberta, apanhei-a a ver-se ao espelho, admirando-se, revirando-se… quase dava por mim, especada, não fosse eu tão ligeira a fechar a porta.
 Será que também teve diretivas para escrever um diário? Fará como eu, uns escritos para mostra à dra. Helena, a falar bem da vida, e outro para esconder, só para si? Terei que procurar, quando ela sair do quarto. Afinal darei bom uso à chave-mestra roubada à fogosa espanhola distraída nos seus rituais de higiene íntima prolongados.
Fico por aqui, hoje. Está a tardar o sono e não entendo “este meu cansaço” – dizia-me a tia avó Severina que algum dia me seria cobrada a afronta da minha mãe que me quis prantear Matilde, contra a insistência dela que falava de lendas antigas e que, sendo eu a quinta das suas filhas (não tenho irmãos) me deveria chamar Eva. Tenho que saber mais sobre isso. A quem poderei perguntar se a titi Severina já não está entre nós há mais de 5 anos?

                                                                                            Albino Pereira


9 comentários:

  1. Mais uma personagem interessante que nos leva a entender um pouquinho mais da história. Cheguei ao fim com vontade de conhecer melhor esta Matilde :)

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  2. Continuo a acompanhar
    Gostei
    Abraço

    Kique

    Hoje em Caminhos Percorridos - Filmes mais positivos que existem!!...

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  3. Nomes por índice alfabético?
    Ora aí está uma ideia bem original.

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  4. Mais um belo capítulo! Impressionante a integração entre os autores; boa semana!

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  5. E as pessoas, todas, são mesmo difíceis de entender, inclusive nós para nós mesmos muitas vezes. Um abraço.

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  6. “Este meu jeito de ser e de estar não me facilita a vida. Isto de ser a única ovelha negra entre centos de ovelhas imaculadamente brancas tem custos.”
    Enganas-te, Matilde, enganas-te… Não és negra, tens é outra cor…
    Parabéns, Albino Pereira

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