©Albino Pereira |
Matilde
Tenho alguma dificuldade
em entender as pessoas. Não um certo tipo de pessoas mas todas em geral.
Acho que sou o que se
poderia chamar um espírito antigo num corpo jovem. Tenho 17 anos, feitos no dia
de Natal que acabou de acontecer. O velho ano ainda não se despediu, as
azáfamas ainda se sentem na casa e, no entanto, nada de relevante se passou.
Estou mais velha (será possível?), o Cristo voltou a nascer, o Pai Natal da
Coca-Cola ressurgiu nas chaminés e varandas (exceto o da do segundo esquerdo,
lá do meu prédio, que já descolorou dados os meses que leva na mesma posição,
num ridicularizar inexplicável e insistente. Dizem que o senhor ficou assim
mais descuidado desde que uma filha caiu na vida fácil e deixou de lhe ligar),
os sinos ouviram-se de forma repetida e, para mim, irritante. Alguém sonhará o
que é ter, em cada aniversário, este ataque de loucura coletiva, estes sorrisos
falsos à conta de uma felicidade imposta pelo calendário?
Já não estou em casa
desde o dia 27 de dezembro. Desde as 10h desse dia, mais precisamente. A
carrinha lá estava à porta, à hora combinada, e trouxe-me para este centro de
tratamento,
Este meu jeito de ser e
de estar não me facilita a vida. Isto de ser a única ovelha negra entre centos
de ovelhas imaculadamente brancas tem custos. Todos os olhares estão fixados em
mim. A maior parte dos demais internados nesta “Casa de Repouso” têm a idade
dos meus avós mais velhos, os paternos. Não consigo falar com eles, não há
conversas possíveis. A única altura em que se poderia falar de alguma
comunicação é quando me sento ao piano e deixo os sons saírem do meu íntimo
para se espalharem pelo salão.
Não deixa de ser curioso
observar os que me rodeiam. Poderia falar das espanholas mudas – acho que são
espanholas pois só as ouço dizer “no podemos hablar”. Como o Diretor desta
Comunidade Terapêutica é um tal Ramon Saavedra, que nunca vi, faz algum
sentido. A psiquiatra que me prescreve as drogas, mal me ouvindo, chama-se
Helena. Diria que se autorreceita e que abusa das drogas. Mas sobre isso
poderia falar melhor o Gabriel – aquele culto do físico está bem sustentado em
químicos e já o vi, mais do que uma vez, a sair do gabinete da doutora com ar
muito suspeito. Não me parece que a relação seja meramente clínica. A mim não
me enganam.
Uma residente bem gira é
a Cláudia. Entradota na idade, é certo mas com um corpinho de fazer inveja a
muitas que podiam ser suas filhas. No outro dia, pela esquina da porta
entreaberta, apanhei-a a ver-se ao espelho, admirando-se, revirando-se… quase
dava por mim, especada, não fosse eu tão ligeira a fechar a porta.
Será que também teve diretivas para escrever
um diário? Fará como eu, uns escritos para mostra à dra. Helena, a falar bem da
vida, e outro para esconder, só para si? Terei que procurar, quando ela sair do
quarto. Afinal darei bom uso à chave-mestra roubada à fogosa espanhola
distraída nos seus rituais de higiene íntima prolongados.
Fico por aqui, hoje. Está
a tardar o sono e não entendo “este meu cansaço” – dizia-me a tia avó Severina
que algum dia me seria cobrada a afronta da minha mãe que me quis prantear
Matilde, contra a insistência dela que falava de lendas
antigas e que, sendo eu a quinta das suas filhas (não tenho irmãos) me deveria
chamar Eva. Tenho que saber mais sobre isso. A quem poderei perguntar se a titi
Severina já não está entre nós há mais de 5 anos?
Albino
Pereira
Gostei do que li meu amigo e aproveito para desejar um bom fim-de-semana.
ResponderEliminarAndarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Obrigado.
EliminarAbc
Mais uma personagem interessante que nos leva a entender um pouquinho mais da história. Cheguei ao fim com vontade de conhecer melhor esta Matilde :)
ResponderEliminarObrigado.
ResponderEliminarContinuo a acompanhar
ResponderEliminarGostei
Abraço
Kique
Hoje em Caminhos Percorridos - Filmes mais positivos que existem!!...
Nomes por índice alfabético?
ResponderEliminarOra aí está uma ideia bem original.
Mais um belo capítulo! Impressionante a integração entre os autores; boa semana!
ResponderEliminarE as pessoas, todas, são mesmo difíceis de entender, inclusive nós para nós mesmos muitas vezes. Um abraço.
ResponderEliminar“Este meu jeito de ser e de estar não me facilita a vida. Isto de ser a única ovelha negra entre centos de ovelhas imaculadamente brancas tem custos.”
ResponderEliminarEnganas-te, Matilde, enganas-te… Não és negra, tens é outra cor…
Parabéns, Albino Pereira