22/03/19

Ecos de Mentes - Capítulo 11

@Casimiro Teixeira 


Ivone


Na noite em que cheguei à pousada, dormi um sono inteiro, apesar das vozes do escuro. Não sei porquê, deixei de ouvir o intercomunicador e acordei com o estrondo da porta da frente a bater, pelas nove da manhã.
Tonta do descanso, abri a porta do quarto num impulso e lancei-me para fora. Ninguém a trancara. – Que estranho novo tratamento seria este? - Estaco, por um momento, iluminada pela ideia de que não há absolutamente justiça neste mundo. O meu lugar não podia ser aqui. Ainda não estou boa da cabeça. Nunca mais as boas discussões às mesas da enfermaria 9, com desenhos estratégicos esboçados à lufa-lufa só para despontar o riso, a emergência do diálogo. Sumiram-se as teimas, as apostas, as conjecturas sobre quem atingiria primeiro a meta da sanidade total. Voavam boatos todos os dias, pulando de boca em boca como gafanhotos verdes: “A Ivone está quase. A Ivone quase não é maluca.”
Ria-me com vontade e dava palmadas nas coxas, feliz por ver tantos amigos a apoiarem-me a passagem rumo ao estado dos sãos. Todavia, pensava, se quase não sou maluca, poderei eu sobreviver lá fora, meio sã? Certamente que seria descoberta, e todos os meus avanços teriam sido em vão. Depois, lamentei a brusca interrupção de tudo isto, ao observar o Doutor Pascal febrilmente às voltas com o meu processo. Houve um segundo, depois outro e por fim cortou-me a corrente do progresso com um carimbo. Exactamente como se se tratasse de um bicho asqueroso e cheio de patas vermelhas, ali na sua mão. – Qual será a sua ideia – pensei – não me quererá curar?
No auditório, o pandemónio atingiu o auge enquanto me levavam de arrasto até à ambulância descaracterizada. Há sempre tempo para mais nada, tirando a capacidade ilimitada de nos iludirmos, foi o que imaginei, descrente. Porque os sãos andam sempre famintos de qualquer coisa que não sabem o que é. Julguei que fosse esse o problema do Doutor Pascal. Não era, sei-o agora, e quero que fique bem vincada a sua desistência. Por isso a decidi descrever ao pormenor.
O percurso foi feito intermitente, entre a consciência e o fracasso. Valeu-me a companhia do meu fiel Jacob, aninhado num susto permanente no bolso da minha bata. Os dois auxiliares maciços que me ladeavam, nem deram pelos seus delicados bigodes a espreitarem aquele sonolento caminho de montanha. Vi mansos pinheirais cerrados até deixar de ver e novamente desperta, assumi que aquelas encostas rudes só poderiam rumar a precipícios. Era uma estrada má, rugosa, mas irisada de reflexos fotogénicos, com árvores só de um lado, pequenos montes de folhas secas e um rapaz muito loiro, de uma grande guedelha a conduzir ovelhas. Recordo-me de a ambulância ter feito uma paragem, logo, a distância há-de ter sido longa. Deram-me de comer e tudo. Uma sopa em uma malga de plástico e uma sandes. O meu querido Jacob lambuzou-se todo com aquele queijo de três dias. Como ele saltava de alegria o meu pequeno, e alisava os pelitos das migalhas com os seus dedinhos tão perfeitos. Quando acordei, era agora.
Ao atravessar o corredor que fazia um longo caminho de portas de quartos no segundo andar, levantou-se uma poeira espessa e vi uma rapariga de olhar distante, parada defronte a uma das janelas destapadas. Nunca me esquecerei daquele olhar, tinha só ódio e desespero aquele olhar, por isso o registo aqui também. O Sol mal lhe batia no rosto, esquivava-se dela, ou em efeito, contornava-a, parecendo todo absorvido pelos mosaicos de cerâmica amarela, embaciados por uma voluta leve de luz.
O mundo dos outros ficava lá fora, alastrando-se em gotículas metálicas de encontro ao chão, e, se exceptuar aquela rapariga, cujo ar profundamente desgostoso, tanto me assustou, o relato do início da minha segunda loucura, poderia terminar aqui mesmo, não fosse o caso de intimamente, estar segura de ser eu a única pessoa realmente insana, neste novo manicómio.
- Dormiste bem? – Perguntou-me a rapariga, saída à pressa do seu transe.
- Não me posso queixar, aliás, nem sei bem se devo. – Respondi.
- Deverias, mas não podes. É assim que as coisas são por aqui. – Explicou-me. – É assim que as coisas são pelo mundo todo.
Não pude deixar de reparar no ressentimento à flor da pele da rapariga e tive mais medo ainda.
O rato no meu ombro, adulto e responsável, teve um gesto de enfado e apontou-me a cabeça para as paredes. – Não havia um milímetro acolchoado, uma tira de ferro a barrar fosse o que fosse. As portadas de madeira das janelas, estavam agora todas abertas, como no dia da leitura do testamento, quando subi ao quarto e vi-o ainda deitado na nossa cama, vestido, com um pano branco manchado de sangue sobre o peito e o rosto meio barbeado. Dois homens passaram por mim, e entre eles carregavam, não muito incomodados, um móvel antigo da minha avó que seguiu pelas escadas abaixo. Espiaram-me de olhos arregalados como se fossem buscar à inverdade tudo aquilo que não era e que nunca fui. Naquele instante descobri a impossibilidade de ser além daquilo que me marcaram para ser. O gosto do mal mastiga-se vermelho e é como engolir fogo adocicado. Sou louca! – Concluí.
A rapariga, entretanto, eclipsara-se no meu distraimento. Decidi seguir o corredor até ao princípio das escadas. A minha impaciência perante o desleixo médico desta casa, que não seguia regra alguma, teve a consequência inesperada de me fazer despertar a curiosidade. Reparo haver uma planta quadrada incompleta de corredores semi-madeirados, semi-ladrilhados, meio por meio, todos claros e luzidios, inundados do Sol que alguém, muito cedo, se encarregou de libertar pelas janelas dentro. Senti um vazio no centro. A esta hora, já havia de estar devidamente medicada, pequeno-almoço em digestão e a caminho, senão imediatamente dentro de uma sala, de uma das enfermarias, para a purga verbal da manhã.
A escadaria acabava abruptamente depois de um cotovelo que desaguava para um saguão espaçoso. Por cima, sobre uma tapeçaria de cerdas longas, abria-se uma abóbada de berço de ferro e vidros coloridos. A luz aqui era mais bonita que no segundo andar. – Mas...que é isto? – Pensei – Que picada é esta que me magoa tanto a cabeça?
Jacob pergunta-me: “Não estás satisfeita?” – Pareceu depois ter um momento de reflexão. Baixou a pequena cabeça marron e abriu as patinhas num gesto de quem não me compreendia mais. Disse-lhe que não sabia o que se passava comigo. Talvez se tratasse de algum gás alucinogénio que libertassem na atmosfera, como forma de algum tratamento inovador. Cruzou as patas aborrecido, e começou a mastigar com um ar ausente. A sua boca era alabastro puro. Pareceu-me absolutamente adorável, até cuspir para o tapete. – Jacob! – Repreendi-o. – Isso não se faz.
De imediato retornou ao meu bolso.
A porta principal deste lugar era justamente ali, sob este manto excessivo de luz e cor e não havia enfermeiros ou auxiliares a barrarem-me os movimentos. Podia sair para o exterior sem escolta. Seria livre? Finalmente livre, sem meias medidas. Sã, por inteiro. Só alguém, num dia seco de imaginação é que poderia continuar a querer ver nuvens negras no correr daquele rastro de luminosidade.
Porém, e por muito que venham a pensar mal de mim, quero que saibam que sou uma nuvem de carácter especial. Evidentemente, de carne e osso e demência. Com dois olhos, duas pernas, um fígado e esta dorzinha de cabeça tão fina... “Estás a ser ridícula – insiste Jacob – abre essa porta e sai.” – No fim sorriu-me, de dentro do bolso. Eu sorri de volta, muito nervosa. É tal qual um elixir de sanidade o meu querido ratito, sempre a apontar-me as soluções para tudo.
Escancaro a porta e doeu-me um pouco aquele Sol tão cru no rosto. Adiante, em um relvado impossivelmente verde e bem tratado, um homem fazia flexões e cantarolava em acto contínuo. Mais além, outros dois passeavam por uma álea de magnólias. Em um banco, uma catraia parecia tocar piano no ar parado da manhã. Todos tiravam o que precisavam da existência e eu quase que perdi os sentidos. A minha perna esquerda rodou com um estalido seco e Jacob deixou de sorrir: “É normal – disse em voz alta, e a sua voz pareceu-me estranhamente alterada – já não te lembravas mais o que era não ser louca.”


                                                                                 Casimiro Teixeira


9 comentários:

  1. Escrever um texto ou um conto que realmente encante dá muito trabalho e o Casimiro não se poupou a esforços.

    Bom fim-de-semana

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  2. Adorei toda a narrativa, prende do principio ao fim.
    Como se costuma dizer "de são e de louco todos temos um pouco", a questão é que nem todos conseguimos, ou não podemos, aproveitar como seria de esperar, a vida que passa tão velozmente por nós.
    Obrigado pela visita e presença no meu cantinho, também já estou seguindo.
    Bom fim de semana
    Beijinhos
    Maria
    Divagar Sobre Tudo um Pouco

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  3. Olá, bt!
    Estou passando p/agradecer a visita e aproveito p/parabenizar esse blog lindo. Parabéns e um ótimo FDS p/vcs

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  4. Confesso que já não recordo muito bem pormenores dos outros capítulos; sei que o último terminava de forma meio misteriosa e sei que há uma personagem que quer matar toda a gente, para, conforme lembro, ficar com um dos internados.
    De qualquer forma gostei bastante de mais este capítulo, com uma quase louca.
    É ténue a fronteira entre a loucura e a sanidade mental.
    Boa tarde de sábado.

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  5. Uma loucura de conto!!
    Aquele abraço, boa semana

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  6. Gostei imensamente! É um excelente do texto. Obrigada pela visita e presença na minha página.
    Um abraço de paz e bem.
    Luisa

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