15/03/19

Ecos de Mentes - Capítulo 10

@PrintingDeco

         Confesso que estou completamente estarrecida pelo que li no caderno de outrora. Aquelas revelações me tomaram de assalto, sem aviso prévio. Com elas vieram o mal estar e a ânsia. Mas confesso que nessa altura já não consigo mais parar de ler. Acredito estar agora mais preparada para o que sair dessas linhas tortas e borradas que, bem ou mal, têm sido o bálsamo para meu tédio dos últimos dias. Toda leitura tem sido uma viagem. Uma jornada atemporal por rostos que só sei o nome. Só espero que o próximo caderno me leve para um lugar mais confortável que o anterior.                                               


 Anabela


            Ainda estou me acostumando com esse lugar. A cama geme com qualquer movimento que faço e isso me irrita. O quarto não é grande nem pequeno e está sempre cheirando à agua sanitária. Penso quantas pessoas estiveram aqui antes de minha presença. A julgar pelo piso de linóleo desbotado e as paredes rabiscadas, acredito que várias. Às vezes, durante a noite, escuto o som metálico de uma gota pingando em alguma superfície dura. Quando estou muito agitada, conto quantas vezes ela cai. Isso me ajuda a pegar no sono. Minha única companhia nesse claustro - além de minhas paranoias - é uma flor de jasmim mais pálida que os pacientes desse lugar. Porém, esses me são muito mais interessantes. Por isso gosto de socializar quando estamos no salão maior ou passeando pelos jardins que cercam essa antiga construção.
             Não que eu goste das pessoas em si. Na verdade, gosto é de estuda-las. Analisa-las em todos seus detalhes e complexidades. O ser humano sempre me foi um grande quebra cabeças e quanto mais desvendo as pessoas, mais descubro sobre mim. E nesse lugar, onde o tempo parece suspenso e os dias infindáveis, o que teria eu melhor para fazer que por em prática minhas habilidades de jogar com a mente humana e tirar dela o pior e melhor de cada um?
            Muitos são os que aqui convivem, ainda que de forma transitória, há muitas pessoas interessantes nesse lugar. Ultimamente tenho aumentando a carga de diálogos com Dra. Helena. Ela é nomeadamente a psiquiatra daqui, mas muitas vezes me parece que ela precisa desse lugar tanto quanto seus pacientes precisam dos remédios que ela medica para eles. Não raras vezes, quando estamos em sua sala conversando reservadamente, ela fala mais do que escuta. Por eu ser a mais nova aqui, nossos encontros são mais frequentes. Da última vez que conversamos, deixou escapar que perdera uma irmã mais velha para o câncer, quando tinha apenas 12 anos de idade. Na época da doença seus pais se dedicavam inteiramente para a filha doente.
Não sei ao certo como esse fato afetou sua vida. Talvez ela tenha sentido uma inveja irracional pela irmã ganhar toda atenção e posteriormente, culpa por ter abrigado tal sentimento tão mesquinho e tão humano. É claro que isso é apenas especulação. Ainda não sei o suficiente sobre ela. Talvez ela esteja deixando transparecer isso apenas para me contornar e extrair alguma coisa de mim. Não posso confiar totalmente nela, afinal foi por causa de uma Helena que a Guerra de Tróia começou.
            Por falar em Tróia, temos aqui nosso próprio Ulisses. Bonito, alto, e com o corpo atlético de um herói homérico. Seu nome é Gabriel. Passa todo o tempo que pode na parte externa fazendo exercícios, da maneira que dá. Se não fosse pela timidez, diria que era um desses homens que ganha a vida na horizontal. Até tentei contato algumas vezes, sem sucesso. Parece ser do tipo que não gosta muito de socializar. Não forçarei. Conheço esse tipo. Quanto mais tentam entrar na sua intimidade, mais eles se fecham dentro de si mesmo.
            Ainda não conversei com todos meus colegas de penitência. Ontem, ou talvez tenha sido hoje mais cedo, vi um tal Vicente sentado no banco de fora escrevendo. Assim que percebeu minha presença fechou seu caderno de forma abrupta. De todos aqui, esse me parece o mais estranho e curioso. Com certeza um caso único. Para maioria dos olhares ele se mostra comum e um tanto enfadonho. Mas eles caem no engodo de subestima-lo. Porém, sei que ele esconde algo por trás daquele verniz superficial. Por certo que todos nós usamos, em maior ou menor grau, máscaras para nos relacionarmos com os outros e, não raras vezes, encarnamos outra “persona” quando assim o queremos. Eu mesma gosto de me parecer ingênua e muitas vezes boba, a fim de extrair das pessoas aquilo que só consigo quando essas estão com a guarda baixa. Também costumo parecer serena e tranquila, quando na verdade estou carregando uma bomba-relógio no coração.
Ocorre que, muitas pessoas - me incluo nessa categoria - descartam suas máscaras na próxima esquina. Todavia, outros as colocam embaixo do travesseiro antes de dormir, pois já não conseguem mais levantar sem elas no dia seguinte. Máscaras de estimações que já se amoldaram tão bem que se confundem com o próprio rosto. Vicente deve ter uma dessas. Um verdadeiro dissimulado. Um malabarista do engano e da fraude. Talvez na próxima conversa particular com a Dra. Helena ela possa me contar algo a mais sobre ele. Claro, se ela mesma não tiver sendo enganada por esse “Mandrake”.
            Continuando minha jornada de analise das pessoas que aqui deambulam, há mais uma criatura singular que merece algumas linhas desse caderno. Seu nome é Amélia e foi a que mais empatia despertou em mim e também a com quem mais diálogos desenvolvi. Não apenas porque Amélia era o nome de minha falecida avó materna.  É mais forte que isso. Enxergo nela pedaços de mim.  Mas afinal o que tenha para falar sobre minha colega? Primeiro de tudo, que ela tinha (ou tem) uma relação kafkiana com o pai e as poucas folhas que tenho nesse caderno não dariam conta de acolher toda a complexidade da trama. A verdade é que ele era injusto com Amélia. Ora ausente, ora presente como tirano. Passava o tempo todo enfurnado num escritório e quando estava em casa exigia dela coisas com muito rigor, não condizente com as coisas que oferecia a ela. Sua mãe por sua vez, vivia mergulhada no abismo que o casamento se tornara e descontara todas as suas frustrações na pobre garota, que introjetou em si todo tipo de discurso desabonador e pejorativo (você não serve para nada, é uma mosca morta, menina sem graça, entre outros que não me recordo agora). Não é de surpreender que ela tenha desenvolvido tamanha baixa estima e carregue nos ombros o peso da insegurança e da revolta.
            Então, mas onde entro nessa história? Assim como Amélia, cresci com ausência de um pai. Entretanto, meu caso é diferente. Papai faleceu quando eu ainda era criança, mais precisamente quando tinha apenas nove anos de idade. Acidente de avião. Dizem que ele não sofreu nada e eu acredito. Quem sofreu fomos nós (eu e mamãe). Meu pai me ensinara muito cedo o que era amor e também o que era saudade. O restante tive que aprender sozinha nas esquinas da vida. Por isso sei, para o bem ou para o mal, a falta que um pai pode fazer.
            Quanto a minha mãe, essa se tornou depressiva e taciturna. Estava cada vez mais distante de mim e do mundo. Sem conselhos ou sermões, sua presença se tornara apenas física. Assim, o destino ou quem exercia a função em seu lugar, tirou-me abruptamente meu pai e lentamente minha mãe e até hoje não sei qual dos dois fora mais doloroso. Por isso Amélia é minha favorita. Estamos unidas pela dor e por um irracional e involuntário sentimento de revolta que nos engole e consome com nossas forças.
            Bom, já é demasiado tarde e enquanto essas palavras escorrem de mim, escuto um barulho estranho vindo da parte de fora. Parece um gemido, curto e sombrio. Olho pela janela e vejo um vulto se deslocar rapidamente por entre as árvores e arbustos que a noite tenta esconder. Não consigo identificar quem é, mas parece ser o semblante de um homem. Pode ser Vicente ou qualquer outro. Pode ser meu pai ou o pai de Amélia. Acho que deixei de tomar meus remédios...                                   


                                                                     Grégor Carlos Marcondes



7 comentários:

  1. Seguindo...
    Mais um belo capitulo
    gostei de ler

    Kique

    Hoje em Caminhos Percorridos - Alimentos que reduzem a vontade de comer doces

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  2. Se é para tentar tanta imaginação aconselho que não volte a tomar os remédios.
    Boa semana

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  3. Bom dia, no silencio da noite, com muita atenção, certamente que consegue escutar a historia misteriosa desse quarto que não é grande nem pequeno, uma vez tentei analisar pessoas, depois de varias tentativas, conclui que não conseguia pelo facto, de não me ter analisado, quando conseguir auto-analisar totalmente, certamente que vou conseguir analisar os outros com certezas.
    Sua criatividade é enorme, a mesma faz com que a suas historia sejam interessantes e encantadoras.
    A minha criatividade, só dá, para lhe desejar feliz semana,
    AG

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  4. Olá!
    Obrigada pela sua visita, gostei de ler meditar e analizar.
    Excelente inspiração e criatividade. Gostei imensamente.
    Um abraço de paz e bem.
    Luisa

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  6. O final desse capítulo está cheio de suspense. Estou curioso para ver o que vai sair daí...
    Bjo
    Bom final de dia.

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