01/03/19

Ecos de Mentes - Capítulo 9

@Paco Garzón


Hoje o dia tem sido extenuante. Tanto para resolver nesta nova situação! No entanto, é um pouco como se tivesse feito uma transfusão e me sentisse renovada. Toda esta azáfama impede-me de pensar e de voltar a cair em estados dos quais quero distância e esquecimento.
Lá fora o vento começou a soprar com intensidade e não sei porquê, pela primeira vez desde que comecei a ler os cadernos, senti um calafrio e o cheiro a algo funesto e sombrio. Hoje abri o caderno do Vicente e no meio descobri várias madeixas de cabelo de cores diferentes, cuidadosamente coladas numa folha manchada em tons de ferrugem. Tremi, mas a curiosidade foi mais forte. Lentamente embrenhei-me numa escrita que pouco a pouco me foi deixando sufocada.


Vicente


Todos me subestimam. Que bom! Ninguém percebe o ridículo em que caem, todos convencidos da sua sapiência, não passando de meras moscas que atraio para a minha teia. Os meus olhos são janelas imperscrutáveis e só mostro mesmo o que quero. Sou um ator formidável e por muito que tentem, tudo o que conseguem é a ideia que criam na mente, sem fazerem a menor ideia de quem realmente sou. A pior é sem dúvida a Dra. Helena. Pergunto-me como é possível ter aquela profissão e deixar-se ludibriar completamente por mim. E quem diz por mim, diz por certo por outras pessoas.
Hoje no seu gabinete tentou escalpelizar-me com muita conversa e diversas técnicas que reconheci. Conheço-as bem e cheguei a utilizá-las com algumas das minhas vítimas. Atualmente nem necessito de tal. A personagem que criei faz todo o trabalho sem que tenha de me incomodar muito.
Mas vamos por partes. Sou um serial-killer com muito orgulho. Bem, não sei se é orgulho, mas é certamente a plena consciência de quem sou, do que sou e sempre serei.
Tive uma infância normal, nunca fui maltratado, era um aluno médio e fugi a todos os estereótipos. Tenho grande apreço pelos animais, mas os seres humanos parecem-me uma espécie execrável pela qual não nutro qualquer simpatia. Escusado será dizer que não me considero fazendo parte dela.
Quando vim para aqui pensava fazer um interregno na minha já longa lista de vítimas. Sentia que precisava de repousar a mente, de arquitetar novas formas de surpreender as criaturas incautas que se cruzam no meu caminho. Mas ultimamente sinto que preciso de fazer aquilo em que sou mestre. Já se passou algum tempo e tudo se conjuga para que eu possa ser plenamente quem sou.
Não mato por raiva, ou vingança, nem sequer por crueldade. Matar é uma arte que requer preparação, método e raciocínio. A paixão tolda a geometria das ações e leva a erros crassos. Não se chega à minha idade em liberdade e sem nada temer, sem planear antes de agir. E eu sou sem dúvida fã da planificação. Nada é ao acaso e por impulso. Seria terrível ter de depender de emoções abruptas e estar sujeito a paixões descontroladas. Tudo no meu universo é feito de linhas retas e propósitos definidos.
O meu casamento com a Beatriz faz naturalmente parte dos planos. A certa altura precisei de alguém que me fizesse passar por um déspota idiota, mas frouxo. Nem a Beatriz o percebe. Dança como uma marioneta nas minhas mãos. Julga que temos um acordo, sou o macho na sala e ela é-o no quarto. Pura ilusão! É assim que quero que seja para melhor tecer a minha teia. A minha aranha interna quer escolher a próxima vítima sem que esta se aperceba. Por enquanto a minha mulher faz falta. Depois será descartável. Meto-lhe nojo e não suporto tantas emoções espelhadas num rosto.
Tenho analisado cada um dos personagens que gravitam à minha volta. Alguns interessantes, mas todos sem a centelha necessária para se compararem a mim. Olho-os e disseco-os. As ninfomaníacas, os homossexuais, os egocentristas, os tímidos e explorados. Todos, de um ou outro modo, despejados aqui na busca de uma possível cura para o que os atormenta ou interfere com a vida de alguém.
No outro dia consegui trocar umas palavras com a Amélia. Ora aí estaria uma bela parceira de crime se não fosse uma apaixonada! Vai por certo conseguir matar alguém de um modo trapalhão e ser apanhada, isto por muito que ela pense que tem tudo sob controle. Não tem. As emoções vão fazê-la errar e toda a beleza do ato será destruída. Mas foi bom poder conversar com ela e saber das suas intenções mesmo que camufladas. Sentir-lhe os impulsos assassinos debaixo da frágil aparência, trouxe-me um pouco de êxtase e deixou-me prevenido. A paixão com que reage tornou fácil a abordagem que lhe fiz e acabou por dizer mais do que queria. Muito jovem para enganar um mestre.
Nenhum dos outros me desperta qualquer interesse. Não falo de amor ou de ódio. Nunca senti nada disso e agradeço que assim seja. De contrário, como poderia praticar a minha arte com a precisão matemática como o faço? Mas é curioso ver os jogos que praticam todos enredados em malhas apertadas sem se conseguirem libertar. O problema que vejo é que neste momento não me convém sair deste lugar. Logo, preciso escolher alguém dos que me rodeiam para exercer a minha arte.
Este ambiente é propício aos meus desejos. Escolhi-o criteriosamente. Tudo casa maravilhosamente comigo. Não com aquilo que aparento, mas comigo, com quem realmente sou, um esteta dedicado àquilo que verdadeiramente importa. O pessoal é esquivo, de olhos baixos, reduzidos a um mutismo imposto, que me agrada. A Ilda, a única portuguesa, parece tosca e violenta, mas é por isso facilmente manobrável. De resto, movo-me ao sabor dos humores flutuantes dos meus colegas de internamento. Estudei-os cuidadosamente e neste momento dificilmente algum me poderá surpreender.
Hoje estou a escrever no jardim. Há um banco meio escondido no meio das buganvílias e a leve brisa que corre agita as mechas de cabelo que guardo no meio do caderno. Foram cuidadosamente coladas para não se desprenderem e gosto de lhes tocar ao de leve. Foi há pouco tempo que comecei a colecionar estes pequenos troféus e ainda não sei porquê. Embora isto não me preocupe, não deixa de ser um desvio ao meu comportamento. Talvez pudesse falar disto com a Dra. Helena, mas pelo que vi dela, dificilmente conseguiria guardar segredo profissional. Da última vez, deixei uma pequena mancha de sangue na página, que, entretanto, se tornou num degradé de vermelhos, rosados e magenta. Faz-me lembrar uma pintura abstrata e tornou-se interessante o mistério de a decifrar.
A Anabela passou agora e fez-me fechar abruptamente o caderno. Esta chegou há pouco e já percebi que adora meter o nariz em tudo. Passa a vida de roda dos outros, numa intromissão que chega a ser despudorada. Não se insinua, mas esgaravata como um animal na busca de alimento. A sua curiosidade não me assusta, mas enxoto-a como se fosse uma mosca aborrecida. Não tenho paciência para a sua verborreia que em nada me é útil.
Preciso de me preparar para logo. Não posso deixar de dançar com a Beatriz a música que só eu oiço. Na realidade trata-se de algo que vou compondo. Tal como noutras coisas, sou versado em música e o alinhamento das notas numa partitura que a minha cabeça retém, é uma espécie de mapa que utilizo quando começo a pensar na próxima vítima.
É quinta-feira e falta pouco para ter a sinfonia completa.
As últimas notas foram escritas a evitar respirar o perfume da Beatriz no final da dança. O final será naturalmente tocado num pizzicato Bartók.

Domingo
Há um cheiro a erva cortada no ar. Hoje matei.



          Margarida Piloto Garcia



26 comentários:

  1. Gostei e apreciei este belo texto!
    Bom fim de semana.
    Bjs

    ResponderEliminar
  2. Uma escrita poderosa e brilhante, que lembra a escrita dos escritores escandinavos de romances policiais, que eu tanto gosto.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ainda uma pergunta:

      A Ilda é a única portuguesa, que nacionalidade têm os outros personagens. Todos eles têm nomes bem portugueses.

      Eliminar
  3. Ematejoca obrigada pelas palavras. A Ilda é a única portuguesa do pessoal. De resto e tirando a Dra. Helena, as outras falam espanhol. Não esquecer o que foi escrito antes quando respondiam " no puedo hablar" " no entiendo", etc. Já os personagens principais são realmente portugueses.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não comecei a ler esta história desde o início, daí não ter lido "no puedo hablar" ou "no entendo". Muitíssimo obrigada pela a explicação.

      Eliminar
  4. Parabéns ☺ Mamã,está muito bom o teu conto e há tantos casos de pessoas que são como essas personagens. Continua a escrever mais contos.

    ResponderEliminar
  5. Vocês deixam-me a cabeça à roda.
    Boa semana

    ResponderEliminar
  6. Às vezes cabeça à roda é bom. Boa semana Pedro Coimbra

    ResponderEliminar
  7. Cada capítulo melhor que o outro! É raro ver tantos excelentes escritores reunidos! Boa semana, amigos.

    ResponderEliminar
  8. Cada vez gosto mais de ler as peripécias desta história cuja densidade se vai avolumando!
    Parabéns.
    Boa semana.

    ResponderEliminar
  9. Obrigada O Árabe. Somos todos diferentes e essa diversidade torna tudo mais interessante.

    ResponderEliminar
  10. Vicente, um personagem que desde o início deixava vislumbrar um certo mistério e que agora se revela. Para mim, de forma surpreendente e brilhante. Gostei muito, Margarida!

    ResponderEliminar
  11. Ponto, isto aqui tem muitos pontos!
    Dá boas leituras.
    Abraço.

    ResponderEliminar
  12. Obrigada Luísa. É um prazer participar nestas nossas estórias. Cada capítulo é um desafio e eu gosto disso.

    ResponderEliminar

Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!