28/01/22

Na Fragilidade do Barro - Capítulo 4

 

Fotografia: Albino Pereira 

Vor der Kaserne / Vor dem großen Tor

Steht 'ne Laterne / Und steht sie noch davor

Dort wollen wir uns wieder seh'n  /Bei der Laterne woll'n wir steh'n

Wie einst Lili Marleen / Wie einst Lili Marleen.

António tinha pelos seus pais o amor que se esperaria de um filho único, mas não o suficiente para lhes dar a alegria que mais queriam: que casasse com uma rapariga das redondezas, assumisse a loja da família e tivesse uma vida feliz, tranquila como a que eles viviam.

Na base alemã, em que trabalhava como pintor de carros, António tinha sabido de muitas histórias que lhe provocaram um profundo descrédito nas raparigas, em geral, mas particularmente nas da sua terra.  De forma despudorada, ofereciam-se aos germânicos que por ali trabalhavam, também eles uns quase proscritos da Alemanha próspera e distante. Ali, em terras do Portugal profundo, agiam como se fossem seres superiores. A constante subserviência dos locais dava-lhes essa falsa sensação, que depressa assumiam como real.

Para muitas das raparigas, um alemão (um alemanito, diziam elas) significava fugir a uma vida de miséria, labutando desde que os primeiros raios de sol apareciam até às badaladas salvíficas das Trindades, em troco de pouca coisa.

António namorava com uma telefonista da base, Justina. Ambos tinham salários astronómicos quando comparados com os dos seus compatriotas – tinha-lhes saído a sorte grande: era como se trabalhassem na Alemanha, como se tivessem emigrado, mas sem ter sido preciso sair da sua terra natal. Para se ter uma ideia, nenhum deles ganhava menos de 1.500 escudos por mês e o salário de um trabalhador rural, nessa altura, era de 100 escudos.

Mas a vida não acalma as inquietações nem os estados de insatisfação, que se vão renovando à medida que vão sendo satisfeitos. E Justina, como as suas amigas, também se deixou seduzir pelo encanto da novidade que os alemães traziam. António não quis acreditar no que lhe contaram os seus melhores amigos. Saiu com um olho negro, mas lutou pela honra da sua Justina – andava lá ela enrabichada pelo chefe da secção, um tal Kléber já entradote na idade e com uns olhos azuis que impressionavam pela frieza que transmitiam!  Quando a confrontou com esse boato, Justina acabou com o namoro e António deixou o bom emprego, passando a viver das economias que tinha posto de lado para a vida que sonhara construir com a Justina. Começou a ajudar o pai na taberna/mercearia não pelo dinheiro que dava, mas para se trazer ocupado.

Quando Ludwig Erhard (o economista, na altura, em funções no governo alemão) passou por Lisboa, os dirigentes da base rumaram à capital por dois dias e a “torre dos solteiros” nunca foi tão concorrida. Até Justina, contaram-lhe depois os seus amigos que continuavam a trabalhar na base, por lá fora vista.

Este desgosto amoroso ditou-lhe de forma permanente a sua postura na vida. As mulheres não lhes inspiravam confiança e servia-se delas e dos seus sonhos sem lhes devolver mais que promessas e momentos de amor carnal. E filhos.

De todos, preocupava-o em especial a Clarinha. Uma miúda, embora muito frágil, de bom coração e, sabe-se lá porquê ou como, com um sorriso constante que lhe irradiava o rosto. Era sagaz e António e Adelaide, a mãe, tudo fizeram para que ela estudasse e conseguisse quebrar as voltas ao destino a que Adelaide não escapara.

A aprovação da Clarinha no exame da quarta classe fora a melhor notícia que António recebera nos últimos meses. Esperava que a doutora Manuela já tivesse recebido os resultados das análises que tinham sido enviadas para um laboratório mais avançado, lá da capital. E que soubesse como curar a Clarinha. A doutora Manuela tinha-se divorciado de um oficial da base com quem vivia em Lisboa e agora regressara à terra, recuperando um casario de uma tia a quem pouco ligara em vida, mas que sucedera ser sua herdeira por ser a única parente viva. Pelo menos assim acreditavam.

Manuela tinha mantido o nome da casa que herdara: Casa das Tílias, escrito num belo conjunto de azulejos na parede que segurava o pesado portão da entrada. Manteve o nome embora não percebesse a razão de tal denominação pois não havia uma única tília nem no jardim nem sequer junto do regato. Teria sido uma vontade por cumprir da sua tia? Ai quem lhe dera ter conhecido melhor esta parente. Foi com esta vontade que Manuela começou, finalmente, a prestar atenção ao conteúdo dos gavetões dos móveis pesadões do salão principal bem como a querer saber o que continham as três arcas em madeira maciça, com fechaduras que lhe faziam lembrar os tempos medievais. Apesar desta curiosidade, Manuela não pode evitar um calafrio quando descobriu, na biblioteca, vários livros em alemão e uma série de discos, com sinais de muito uso, um ou outro da Edith Piaf mas quase todos da Marlene Dietrich.

 

                                                                            Albino Pereira

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