Fotografia: Albertina Vaz |
O tempo esconde sempre um pouco de
passado.
Uma chávena de chá em cima da mesa e uma
colher que, em círculos concêntricos se move lentamente, oculta o sorriso duma
mulher de olhar cansado que vagueia por um passado que lhe sabe bem.
Adelaide, de olhar sereno, recorda o tempo
lá longe quando, nas margens do rio, uma menina mulher enchia de sonoras
gargalhadas os olhos brilhantes onde o amor bailava e a paixão se sobrepunha. As
mãos entrelaçadas enchiam-se de desejo e de sonhos por cumprir.
Ele não era lindo, mas para ela
assemelhava-se a um deus descido do Olimpo; ele não era rico, mas manejava com
destreza as oportunidades que a vida lhe apresentava; ele não era um catedrático,
mas conhecia a cor de cada pétala de uma flor, de cada cheiro de um favo de
mel, de cada pedaço de terra enraizado na vila onde tinha nascido e onde queria
morrer.
Rondava-lhe a porta e ela espreitava-o pela
cortina descorada da janela do seu quarto. Depois corria, em passos
desconcertados, pelas ravinas da vila, em direção ao rio. Aí rebolava-se na
erva e sonhava com uma vida diferente, longe da terra que a tinha feito nascer,
mas perto dos olhos que a incendiavam de amor.
Sem quase se darem conta foram começando a
encontrar-se – sempre por acaso, claro – no adro da igreja, à porta da
mercearia onde ele ajudava o pai ou nas ruas estreitas por onde já ninguém
passava. E foram trocando sonhos e arquitetando futuros num tempo presente que
desejavam juntos.
Adelaide queria sair da vila, viajar,
conhecer outras terras e abraçar outros mundos que só conhecia dos livros da
escola e das palavras entusiasmadas da professora Adélia que ficava horas
infinitas a falar-lhe de mundos onde o mar se estendia num deslisar de ondas
até um infinito quase perfeito. Adelaide nunca tinha visto o mar. Queria tanto
despertar uma noite estendida na areia, com a boca a saber-lhe a sal e sentir a
areia a infiltrar-se no seu corpo.... queria tanto conhecer o mar!
António sabia-lhe do sonho e queria muito
ser capaz de o realizar, mas estava preso àquela terra onde tinha nascido e
onde era a única ajuda dum pai envelhecido e uma mãe com uma doença incurável,
presa a uma cama donde já há muito não saía.
E falava-lhe da beleza da sua vila sempre
que se encontravam junto ao rio para ouvir o deslizar da água, caindo em
borbulhões pela cascata e inundando o rio de um silêncio que se escutava sem se
ouvir e se sentia sem se experimentar.
Adelaide pensava nos olhos tristes da avó
velhinha que a tinha criado, desde que os pais emigraram para terras distantes.
Queria tanto voltar a vê-los e aproveitar para os conhecer.
E recordava as histórias que sempre lhe
ouvira contar, quando, à noite, o sol se punha para lá dos montes, inundando o
céu de cores brilhantes e as estrelas apareciam formando desenhos e
arquitetando histórias. E, de longe chagava-lhe a voz da sua avó, trémula e
insegura:
“Era uma vez um homem que contava as
estrelas. Ficava muito tempo a olhar para elas e a vê-las tremelicar. O homem
não era nem velho, nem novo. Era apenas um homem. E o homem dava nome a todas
as estrelas. E todas as estrelas o conheciam por homem. Nenhuma das estrelas
sabia o nome do homem, mas ele conhecia cada uma pelo seu nome.
Algumas vezes, quando o céu se enfrascava
de chuva, as estrelas gritavam: vai para casa, homem, olha que vai chover
muito. Mas o homem não ouvia as estrelas. Vi-as a brilhar ou a escurecerem. E,
quando as estrelas ficavam escuras, o homem dizia: é a vida! Foram-se. Talvez
voltem amanhã.
No dia seguinte, o homem voltava para
contar as estrelas. E elas lá estavam, brilhantes, como se o sol estivesse por
perto e a noite não tivesse descido. “Vai ali a Francisca – dizia o homem. Do
lado esquerdo, deve ser o Pedro. Um dia ainda os hei de juntar” – pensava o
homem. Mas o homem acabava sempre a noite a contar as estrelas. A ver se
faltava alguma, ou se alguma estava fora do seu lugar.
O homem era um sábio e queria que as
estrelas vivessem todas juntas. Queria que se abraçassem. Mas as estrelas
estavam lá em cima, muito longe. Até parecia que cada vez se afastavam mais
umas das outras.
Um dia, viram o homem a subir uma escada e
a escada parecia não ter fim. Quando o homem chegava ao último degrau logo
outro lance aparecia. E entortava para a esquerda. E virava para a direita. E
descia para um fosso sem fim. E subia novamente. Uma subida íngreme. Até que o
homem disse: estou para aqui às voltas com a vida e a vida troca-nos as voltas
e troca-nos as vontades. O melhor mesmo e procurar as estrelas, lá em baixo, do
outro lado da rua.
E foi assim que o homem deu voltas à vida
e fez da vida uma canção de embalar. Deixou de olhar o céu e passou a olhar à
sua volta. Foi aí que encontrou a liberdade e colheu a companhia. E teve a vida
de volta. Em noites de lua-cheia, sentava-se na soleira da porta e dizia à sua
companheira: Olha, lá em cima, são tantas as estrelas. Nunca as poderia contar.
E, num abraço apertado, traziam de volta
as voltas da vida e adormeciam, num sonho gostoso, dum homem que tinha uma
escada e queria subir às estrelas. E contá-las.”
Numa noite de lua cheia, os dois enlaçados
à beira do rio, como tantas vezes costumavam fazer, Adelaide contou a António a
história que lhe fazia recordar a avó. E foi nesse momento que trocaram o seu
primeiro beijo: suave e profundo, sereno e apaixonado. Com sabor a estrelas!
Albertina
Vaz
Este blog está recheado de bons escritores.
ResponderEliminarBelo conto! «O tempo esconde sempre um pouco de passado.» - E para quem a souber criar, muita fantasia também. A 2ª parte do conto, quanto a mim, merece ser acompanhada por este tema musical: https://www.youtube.com/watch?v=xbhCPt6PZIU
Bartolomeu, tens toda a razão! Stairway to Heaven, uma belíssima sinfonia dos tempos modernos, encaixa-se à perfeição a esta parte da história!
ResponderEliminarGostei da tua lembrança.
Estou a gostar cada vez mais do conto!
super poético!
ResponderEliminarObrigado a todos pelos vossos comentários. Realmente as minhas palavras fogem-me quase sempre para uma escrita poética. Espero que não tenha desfocado o tema proposto.
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