Por vezes, o tempo parece definhar
devagar, sem termo nem destino e sem qualquer propósito que não seja o de
manter tudo aparentemente no mesmo lugar, tornar as cores da tecelagem onde
existimos mais pronunciadas e o contorno de cada figura mais definido e o que
começamos por sentir como suspeita, amadurecer em certeza inegável.
Assim acontecia com Clara, agora já mulher.
Durante os breves anos da sua existência
sempre sentira que a sua vida havia sido orquestrada por outros que, embora
munidos pela boa vontade, tudo fizeram para a privar de qualquer dor, como se a
dor ou as contrariedades mundanas não fossem um meio para o crescimento.
Não ousava ser de todo ingrata, mas
pressentia que lhe guardavam segredos que tinha todo o direito de conhecer
porque também a si lhe diziam respeito. O pai fechado no seu habitual mutismo
sobre a sua vida passada não lhe dava o direito de conhecer os irmãos que ele
não perfilhara e, a verdade é que era uma filha única de um pai e muitas mães:
Adelaide, Manuela, Lurdes, Alice… um conjunto de anjos caídos que pareciam
orbitar à sua volta.
A sua juventude revoltava-se por se
libertar, por ir contra os seus desígnios, só porque sim, e impacientava-se ao
constatar que os seus próximos anos estavam já meticulosamente planeados:
acabar o secundário, ingressar o magistério primário e, no final da linha,
parecia-lhe, uma vaga no Colégio do Sagrado Coração de Maria onde Alice tinha
uma grande amiga.
E se pudesse trilhar o seu caminho? O que
faria ou que caminho escolheria? Não era tanto a dúvida que a vida que lhe
apresentavam não lhe agradasse, mas muito mais certeza da ausência de quaisquer
outras opções de escolha.
O Joaquim e os seus beijos sob o limoeiro eram
o seu ato de secreta rebelião.
Era um rapaz um pouco tonto, mas o que
demonstrava sentir por ela, enchia-lhe o coração de sonhos de uma vida que
existia para além da sua.
Não se imaginava, porém, como mulher
casada. Isso ela não lhe confessara nem que receava vir a ser mãe – lera numa
enciclopédia na biblioteca da escola as atrocidades pelas quais uma mulher
passava para dar à luz, por isso, esse sonho tão pouco romântico estava
descartado bem no interior da sua mente onde guardava todas a pequeninas
grandes decisões que ia tomando.
Também decidira tentar andar só com uma
muleta e depois apenas com uma bengala. Qualquer escada que se lhe apresentasse
na Faculdade poderia ser uma barreira para assistir a algumas aulas. Por isso,
sem que Lurdes se apercebesse, treinava todos os dias a subida até ao segundo
andar da enorme casa onde viviam, o que lhe havia valido fortes dores nas ancas
quando se deitava – era tudo por um propósito maior – quase estava também
inteiramente pensada a decisão de vir a ser advogada ou, mesmo juiz, entrar nos
movimentos estudantis de que lera em algumas publicações proibidas, lutar pela
liberdade e pela justiça tão maltratada por quem detém o poder no país.
Rosa
Lídia Santos
Uma mulher excitante, resolvida.
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