26/04/22

Na Fragilidade do Barro - Capítulo 14

 

Fotografia: Grégor Carlos Marcondes

Antonio equilibrava-se como podia em cima da velha bicicleta, enquanto olhava espantado o clarão de um relâmpago que cortava o céu logo acima de sua cabeça. Pôde sentir o estrondo balançar as rodas.  O que mais havia lhe impressionado era a velocidade com que o tempo mudara. Em questão de minutos, nuvens negras carregadas de energia se avizinharam prenunciando um grande temporal.  Ele estava longe de casa, mas ainda colocava fé em suas pernas que pedalavam cada vez mais rápido, apesar de cansadas. Pensava que, com sorte, chegaria antes da tempestade. Porém, a expectativa é a melhor antessala para frustração e não demorou muito para as primeiras gotas se desprenderem e molharem a camisa puída de Antonio. Eram gotas pesadas e geladas, que pareciam atingir quase os ossos.

Pedalou mais uma quadra até avistar o bar do Seu Sabino. Os dois se conheciam desde a adolescência e às vezes Antonio visitava o lugar apenas para colocar alguns papos em dia e falar de futebol. Agora o bar seria um bom refúgio contra a tempestade. Sem hesitar, prendeu a bicicleta a um poste que ficava na frente e adentrou claudicante o estabelecimento. Suas pernas realmente já não eram mais as mesmas e sentia isso no cansaso que pesava em cada milímetro de seus músculos e articulações.

Cumprimentou o rapaz que atendia o balcão e logo foi informado que Sabino não estava por aquelas bandas no momento. Pediu um copo de água para fazer frente à garganta que secara no esforço dos pedais. De olhos fechados, sorveu um grande gole como se fosse sua salvação, esvaziando todo o copo.  Olhou para fora pela janela mais próxima e viu a violência com que as gotas se chocavam contra o vidro. O barulho de um trovão ecoou por todo o bar. Enquanto a tempestade castigava o mundo lá fora,  Antonio acabou por agradecer por estar do lado de dentro. Esperaria até as coisas se acalmarem um pouco. Já não estava tão longe de casa. Aproveitou para olhar ao redor e vislumbrou apenas uma figura além do atendente. Ao lado oposto do seu, com os cotovelos sobre o balcão envelhecido de madeira, uma figura masculina bebia vagarosamente uma bebida cor de âmbar que, a julgar pela aparência decadente do sujeito, devia ser algum tipo de conhaque de qualidade duvidosa.

Antonio encarou aquela figura que ostentava uma volumosa cabeleira branca, cujos fios pareciam ter mergulhado em uma panela de oléo, dado seu estado de sebosidade. O rosto do sujeito, estava parcialmente encoberto também por uma larga barba alva que parecia não ter sido lavada desde que os fascistas chegaram ao poder. O mais curioso de tudo, é que Antonio reconhia nos traços que restavam no rosto daquele homem alguma lembrança. Depois de olhar por mais cinco minutos tinha certeza que conhecia aqueles traços de algum lugar, porém em uma oportunidade melhor para aquela face que agora definhava-se.

Entregue pela curiosidade, Antonio decidiu se aproximar daquele miserável e sentiu, assim que chegou perto, que o cheiro de latrina que o incomodava desde que adentrou o bar não vinha do banheiro, que não ficava tão longe assim de onde estava sentado, mas sim daquela criatura miserável.  O cheiro de urina, misturado com outros odores piores lhe afogou a boca do estomâgo. Mesmo assim, continuou na sua investida e se sentou perto do sujeito que continuava alheio a qualquer presença.  Antonio então decidiu que teria que executar uma abordagem rápida.

 - Olá, desculpa mas acho que o conheço de algum lugar.  - Disse ele apressado.

O homem virou vagarosamente a cabeça em sua direção e o encarou por uns instantes.

- Meu nome é Tomás e se você me conhece só pode ser alguém desgraçado na vida. - Disse o homem, tomando mais um gole do líquido âmbar.

- Tomás? - Repetiu Antonio em voz alta tentando lembrar. Depois de alguns segundos uma imagem surgiu de algum lugar de sua memória.

- Não pode ser, Tomás Almeida, o rei dos números? - Disse incrédulo. Tomás Almeida havia sido seu colega no colegial. Era o primeiro aluno entre as matérias de exatas, o que levou a alcunha de rei dos números. Além disso, sabia que Tomás Almeida havia se graduado e se tornado professor de matemática no mesmo Liceu anos depois. Mas o que mais recordava, era o fato de que Tomás era também um excelente violonista, que encatava as moças fazendo-lhes canções.

Depois de um longo silêncio, o sujeito respondeu:

- É acho que sou esse mesmo que você falou. Ou pelo menos fui um dia.

A confirmação chocou Antonio. Tomás era um dos moços mais vaidosos e elegantes com quem teve contato. Agora estava irreconhecível. Vestia trapos rasgados remendados com sacos de plástico. Sua aparência em si era devastadora. A pele estava pedregosa. A boca exibia parcos dentes podres que davam a impressão que caíriam a qualquer momento enquanto ele falava. Notou também que ele não tinha mais a mão esquerda. Então, sua memória também se lembrou do boato que Tomás estava morto e repetiu tal informação em voz alta quase de supetão.

- Morrido? Antes tivesse, mas não tive essa sorte. Sabe,  tem coisas piores que a morte. A própisto, qual é mesmo seu nome?

- Antonio. Estudamos no colegial e depois eu vi você algumas vezes na casa do Xavier. Desculpe não ter dito antes.

- Antonio? Acho que lembro vagamente de você. Minha memória está tão terrível quanto meus dentes.

- Tudo bem. Achei que tivesse morrido pelos boatos que chegaram até mim. Me contaram que o regime lhe pegou. - Antonio agora lembrava que Xavier lhe contou que Tomás havia sido pego pelos agentes do governo, enquanto propagava ideias contra o regime dentro da sala de aula.

- Realmente esses desgraçados me pegaram. Torturaram meu corpo e minha alma. Quando descobriram que eu gostava de tocar violão, arrancaram uma de minhas mãos. Chutaram meu corpo até as pernas deles cansarem. Me penduraram de cabeça para baixo. Foi por puro azar que sobrevivi a tudo isso e hoje estou aqui. Um fantasma com rosto de um desconhecido. - Tomás continuou seu relato, contudo, não parecia falar de uma maneira muito coesa e às vezes esquecia o que estava falando. Tudo isso entrou como uma faca comprida no peito de Antonio quando imaginou ser pego pelo Regime por causa dos panfletos. Deveria dar um basta nisso. Não queria que Clarinha tivesse um pai que não reconhecia mais nem o próprio rosto.

Os dois continuaram conversando por algum tempo até que Antonio percebeu que a tempestade cessara. Ele se despediu de Tomás amaldiçoando o destino daquele probre diabo.

Saiu do bar e quando chegou até o poste encontrou apenas os restos de uma corrente arrebentada.

- Quem diabos furta uma bicicleta durante uma tempestade dessas? - Urrou ele com raiva entre os dentes.

Teria que retornar caminhando. Por sorte não estava tão longe. Porém, já era noite e as ruas estavam tomadas de escuridão e silêncio. Podia ouvir seus próprios passos e sentiu a sensação de que alguém o observava. Parou por várias vezes para olhar ao redor, mas não enxergou nada além de trevas. Continou o caminho com o passo apressado. Quando chegou perto de uma árvore, parou para tomar fôlego. Então sentiu um cheiro estranho, mas conhecido. Um cheiro de abismo. Em seguida sentiu uma pancada na cabeça e tudo ficou ainda mais escuro...

 

                                                                                 Grégor Carlos Marcondes

 

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