Fotografia: Grégor Carlos Marcondes |
Antonio equilibrava-se como podia em
cima da velha bicicleta, enquanto olhava espantado o clarão de um relâmpago que
cortava o céu logo acima de sua cabeça. Pôde sentir o estrondo balançar as
rodas. O que mais havia lhe
impressionado era a velocidade com que o tempo mudara. Em questão de minutos, nuvens
negras carregadas de energia se avizinharam prenunciando um grande temporal. Ele estava longe de casa, mas ainda colocava
fé em suas pernas que pedalavam cada vez mais rápido, apesar de cansadas.
Pensava que, com sorte, chegaria antes da tempestade. Porém, a expectativa é a
melhor antessala para frustração e não demorou muito para as primeiras gotas se
desprenderem e molharem a camisa puída de Antonio. Eram gotas pesadas e
geladas, que pareciam atingir quase os ossos.
Pedalou mais uma quadra até avistar o
bar do Seu Sabino. Os dois se conheciam desde a adolescência e às vezes Antonio
visitava o lugar apenas para colocar alguns papos em dia e falar de futebol. Agora
o bar seria um bom refúgio contra a tempestade. Sem hesitar, prendeu a
bicicleta a um poste que ficava na frente e adentrou claudicante o
estabelecimento. Suas pernas realmente já não eram mais as mesmas e sentia isso
no cansaso que pesava em cada milímetro de seus músculos e articulações.
Cumprimentou o rapaz que atendia o
balcão e logo foi informado que Sabino não estava por aquelas bandas no
momento. Pediu um copo de água para fazer frente à garganta que secara no
esforço dos pedais. De olhos fechados, sorveu um grande gole como se fosse sua
salvação, esvaziando todo o copo. Olhou
para fora pela janela mais próxima e viu a violência com que as gotas se
chocavam contra o vidro. O barulho de um trovão ecoou por todo o bar. Enquanto
a tempestade castigava o mundo lá fora,
Antonio acabou por agradecer por estar do lado de dentro. Esperaria até
as coisas se acalmarem um pouco. Já não estava tão longe de casa. Aproveitou
para olhar ao redor e vislumbrou apenas uma figura além do atendente. Ao lado
oposto do seu, com os cotovelos sobre o balcão envelhecido de madeira, uma
figura masculina bebia vagarosamente uma bebida cor de âmbar que, a julgar pela
aparência decadente do sujeito, devia ser algum tipo de conhaque de qualidade
duvidosa.
Antonio encarou aquela figura que
ostentava uma volumosa cabeleira branca, cujos fios pareciam ter mergulhado em
uma panela de oléo, dado seu estado de sebosidade. O rosto do sujeito, estava
parcialmente encoberto também por uma larga barba alva que parecia não ter sido
lavada desde que os fascistas chegaram ao poder. O mais curioso de tudo, é que
Antonio reconhia nos traços que restavam no rosto daquele homem alguma
lembrança. Depois de olhar por mais cinco minutos tinha certeza que conhecia
aqueles traços de algum lugar, porém em uma oportunidade melhor para aquela
face que agora definhava-se.
Entregue pela curiosidade, Antonio
decidiu se aproximar daquele miserável e sentiu, assim que chegou perto, que o
cheiro de latrina que o incomodava desde que adentrou o bar não vinha do
banheiro, que não ficava tão longe assim de onde estava sentado, mas sim
daquela criatura miserável. O cheiro de
urina, misturado com outros odores piores lhe afogou a boca do estomâgo. Mesmo
assim, continuou na sua investida e se sentou perto do sujeito que continuava
alheio a qualquer presença. Antonio
então decidiu que teria que executar uma abordagem rápida.
- Olá, desculpa mas acho que o conheço de
algum lugar. - Disse ele apressado.
O homem virou vagarosamente a cabeça
em sua direção e o encarou por uns instantes.
- Meu nome é Tomás e se você me
conhece só pode ser alguém desgraçado na vida. - Disse o homem, tomando mais um
gole do líquido âmbar.
- Tomás? - Repetiu Antonio em voz
alta tentando lembrar. Depois de alguns segundos uma imagem surgiu de algum
lugar de sua memória.
- Não pode ser, Tomás Almeida, o rei
dos números? - Disse incrédulo. Tomás Almeida havia sido seu colega no colegial.
Era o primeiro aluno entre as matérias de exatas, o que levou a alcunha de rei
dos números. Além disso, sabia que Tomás Almeida havia se graduado e se tornado
professor de matemática no mesmo Liceu anos depois. Mas o que mais recordava,
era o fato de que Tomás era também um excelente violonista, que encatava as
moças fazendo-lhes canções.
Depois de um longo silêncio, o sujeito
respondeu:
- É acho que sou esse mesmo que você
falou. Ou pelo menos fui um dia.
A confirmação chocou Antonio. Tomás
era um dos moços mais vaidosos e elegantes com quem teve contato. Agora estava
irreconhecível. Vestia trapos rasgados remendados com sacos de plástico. Sua
aparência em si era devastadora. A pele estava pedregosa. A boca exibia parcos
dentes podres que davam a impressão que caíriam a qualquer momento enquanto ele
falava. Notou também que ele não tinha mais a mão esquerda. Então, sua memória
também se lembrou do boato que Tomás estava morto e repetiu tal informação em
voz alta quase de supetão.
- Morrido? Antes tivesse, mas não
tive essa sorte. Sabe, tem coisas piores
que a morte. A própisto, qual é mesmo seu nome?
- Antonio. Estudamos no colegial e
depois eu vi você algumas vezes na casa do Xavier. Desculpe não ter dito antes.
- Antonio? Acho que lembro vagamente
de você. Minha memória está tão terrível quanto meus dentes.
- Tudo bem. Achei que tivesse morrido
pelos boatos que chegaram até mim. Me contaram que o regime lhe pegou. -
Antonio agora lembrava que Xavier lhe contou que Tomás havia sido pego pelos
agentes do governo, enquanto propagava ideias contra o regime dentro da sala de
aula.
- Realmente esses desgraçados me
pegaram. Torturaram meu corpo e minha alma. Quando descobriram que eu gostava
de tocar violão, arrancaram uma de minhas mãos. Chutaram meu corpo até as
pernas deles cansarem. Me penduraram de cabeça para baixo. Foi por puro azar
que sobrevivi a tudo isso e hoje estou aqui. Um fantasma com rosto de um
desconhecido. - Tomás continuou seu relato, contudo, não parecia falar de uma
maneira muito coesa e às vezes esquecia o que estava falando. Tudo isso entrou
como uma faca comprida no peito de Antonio quando imaginou ser pego pelo Regime
por causa dos panfletos. Deveria dar um basta nisso. Não queria que Clarinha
tivesse um pai que não reconhecia mais nem o próprio rosto.
Os dois continuaram conversando por
algum tempo até que Antonio percebeu que a tempestade cessara. Ele se despediu
de Tomás amaldiçoando o destino daquele probre diabo.
Saiu do bar e quando chegou até o
poste encontrou apenas os restos de uma corrente arrebentada.
- Quem diabos furta uma bicicleta durante
uma tempestade dessas? - Urrou ele com raiva entre os dentes.
Teria que retornar caminhando. Por sorte
não estava tão longe. Porém, já era noite e as ruas estavam tomadas de
escuridão e silêncio. Podia ouvir seus próprios passos e sentiu a sensação de
que alguém o observava. Parou por várias vezes para olhar ao redor, mas não
enxergou nada além de trevas. Continou o caminho com o passo apressado. Quando
chegou perto de uma árvore, parou para tomar fôlego. Então sentiu um cheiro
estranho, mas conhecido. Um cheiro de abismo. Em seguida sentiu uma pancada na
cabeça e tudo ficou ainda mais escuro...
Grégor Carlos Marcondes
O suspeito é demasiado óbvio...
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