Depois de tantos anos a ver aquele prédio
como que à espera de uma morte anunciada, hoje, vislumbra-se alguma vida a
desabrochar das suas entranhas. Pouco a pouco, as janelas vão acendendo, como pirilampos
na fachada escurecida pela sujidade.
Já há algum tempo que corria o boato de
que iria haver gente nova lá pelo bairro, mas todos se interrogavam que tipo de
gente seria. Com certeza, não seriam os faustosos pseudo nobres para quem o
edifício tinha sido construído, noutra época. Esses tinham-no votado ao
abandono, sem pejo; ou melhor, sem tostão no bolso. Tinha revertido para a
construtora, que ao que parecia nunca lhe tinha dado grande importância, até ao
momento em que finalmente tinha decidido arrendá-lo a preços económicos.
Uma pena, diziam alguns velhos do restelo
que achavam que gente pobre não merecia aqueles janelões de largas vistas sobre
a cidade, defronte à praceta decorada por um lago de água esverdeada, circundado
por uma meia dúzia de estatuetas desmembradas; e dos andares cimeiros,
principalmente a partir do quinto, a panorâmica do mar, salpicado de navios de
pequeno e grande porte, indiciando a localização de uma cidade marítima, que se
recostava nas montanhas, apreciadas a partir dos varandins das traseiras do
prédio.
Boa
decisão, diziam os outros mais progressistas que defendiam a igualdade para todos.
Embora, ali não se tratasse de igualdade propriamente dita. Era mais uma
segunda oportunidade dada aquele espaço que vinha servindo de abrigo a ratos e
outros répteis e a um ou outro indigente que ardilosamente conseguia transpor
os taipais que tinham sido colocados a proteger as entradas.
Do interior, diziam os poucos habitantes
da zona que se lembravam de algum dia lá ter entrado, que era imponente: de corredores
largos, com paredes e tectos decorados com altos relevos esculpidos por algum
artista à procura de reconhecimento, pisos e escadarias marmoreados e até um
elevador revestido de espelhos. Claro que tudo aquilo estaria agora em franca
degradação, mas também não era isso que importava. O que importava e suscitava
a curiosidade de todos era que tipo de gente era aquela? Quem seriam aqueles
novos habitantes?
Pela manhã, o prédio despertou sob um
cenário nunca visto: janelas abertas a cheirar a comida, estendais nas varandas
que outrora haviam servido de palco às damas desfilando em roupões de seda e,
de uma das janelas, soltavam-se as notas de uma canção tocada num antigo
gira-discos.
Nas traseiras, também já se sentia o
burburinho próprio dos lugares onde a vida se levanta; talvez vindo das
vidraças partidas, porque ali a morte anunciada do espaço era ainda mais
evidente. Tinha sido a zona das garagens e de alguns segredos nunca revelados,
mas sobejamente insinuados; de tal modo que se tornaram mitos urbanos contados
à boca pequena pelas redondezas. Era também ali que desembocavam as escadas de
serviço, em ferro, que davam acesso às dezasseis cozinhas das mesmas dezasseis assoalhadas
distribuídas pelos oito andares: duas por cada um.
E ainda havia o sótão, ao qual as escadas
de serviço também davam acesso, que era um espaço exíguo, mas que tinha um
varandim no telhado. Ali, tinha morado o casal que se dividia entre as funções
de porteiros e a limpeza dos espaços comuns, no caso dela e os biscates de
manutenção do prédio, no caso dele.
Luísa
Vaz Tavares
Boa introdução. Agora que os moradores comecem a habitar as suas casas. Esperamos as cusquices habituais entre os condóminos. Eu vou miando por aqui...
ResponderEliminarObrigada, Angelina! Estou ansiosa para ver as peripécias que vêm por aí.
EliminarGostei! Já me estou a imaginar a mirar o mar lá ao fundo.
ResponderEliminarO mar e outras coisas mais, com certeza,. Obrigada!
EliminarUma introdução que dá margens à imaginação de todos e de tudo. Esperava um prédio ocupado e aparece-nos um prédio arrendado a preços comedidos. Quem será o benemérito? Excelente, Luisa. Gostei muito
ResponderEliminarSerá benemérito ou olho para o negócio?... Já que não tinha outra maneira de rentabilizar o espaço.eheheh. Obrigada, Albertina!
EliminarAdorei! E estou plena de curiosidade...
ResponderEliminarAbraço, Luisinha.
Também eu estou curiosa para saber o que por aí vem. Obrigada, Ana!
EliminarExcelente início... Está apresentado o prédio. Venham os moradores 👌
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