14/11/22

Estendais - Introdução

 


Depois de tantos anos a ver aquele prédio como que à espera de uma morte anunciada, hoje, vislumbra-se alguma vida a desabrochar das suas entranhas. Pouco a pouco, as janelas vão acendendo, como pirilampos na fachada escurecida pela sujidade.

Já há algum tempo que corria o boato de que iria haver gente nova lá pelo bairro, mas todos se interrogavam que tipo de gente seria. Com certeza, não seriam os faustosos pseudo nobres para quem o edifício tinha sido construído, noutra época. Esses tinham-no votado ao abandono, sem pejo; ou melhor, sem tostão no bolso. Tinha revertido para a construtora, que ao que parecia nunca lhe tinha dado grande importância, até ao momento em que finalmente tinha decidido arrendá-lo a preços económicos.

Uma pena, diziam alguns velhos do restelo que achavam que gente pobre não merecia aqueles janelões de largas vistas sobre a cidade, defronte à praceta decorada por um lago de água esverdeada, circundado por uma meia dúzia de estatuetas desmembradas; e dos andares cimeiros, principalmente a partir do quinto, a panorâmica do mar, salpicado de navios de pequeno e grande porte, indiciando a localização de uma cidade marítima, que se recostava nas montanhas, apreciadas a partir dos varandins das traseiras do prédio.

 Boa decisão, diziam os outros mais progressistas que defendiam a igualdade para todos. Embora, ali não se tratasse de igualdade propriamente dita. Era mais uma segunda oportunidade dada aquele espaço que vinha servindo de abrigo a ratos e outros répteis e a um ou outro indigente que ardilosamente conseguia transpor os taipais que tinham sido colocados a proteger as entradas.

Do interior, diziam os poucos habitantes da zona que se lembravam de algum dia lá ter entrado, que era imponente: de corredores largos, com paredes e tectos decorados com altos relevos esculpidos por algum artista à procura de reconhecimento, pisos e escadarias marmoreados e até um elevador revestido de espelhos. Claro que tudo aquilo estaria agora em franca degradação, mas também não era isso que importava. O que importava e suscitava a curiosidade de todos era que tipo de gente era aquela? Quem seriam aqueles novos habitantes?

Pela manhã, o prédio despertou sob um cenário nunca visto: janelas abertas a cheirar a comida, estendais nas varandas que outrora haviam servido de palco às damas desfilando em roupões de seda e, de uma das janelas, soltavam-se as notas de uma canção tocada num antigo gira-discos.

Nas traseiras, também já se sentia o burburinho próprio dos lugares onde a vida se levanta; talvez vindo das vidraças partidas, porque ali a morte anunciada do espaço era ainda mais evidente. Tinha sido a zona das garagens e de alguns segredos nunca revelados, mas sobejamente insinuados; de tal modo que se tornaram mitos urbanos contados à boca pequena pelas redondezas. Era também ali que desembocavam as escadas de serviço, em ferro, que davam acesso às dezasseis cozinhas das mesmas dezasseis assoalhadas distribuídas pelos oito andares: duas por cada um.

E ainda havia o sótão, ao qual as escadas de serviço também davam acesso, que era um espaço exíguo, mas que tinha um varandim no telhado. Ali, tinha morado o casal que se dividia entre as funções de porteiros e a limpeza dos espaços comuns, no caso dela e os biscates de manutenção do prédio, no caso dele.

 

                                                                            Luísa Vaz Tavares

9 comentários:

  1. Boa introdução. Agora que os moradores comecem a habitar as suas casas. Esperamos as cusquices habituais entre os condóminos. Eu vou miando por aqui...

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    1. Obrigada, Angelina! Estou ansiosa para ver as peripécias que vêm por aí.

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  2. Gostei! Já me estou a imaginar a mirar o mar lá ao fundo.

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    1. O mar e outras coisas mais, com certeza,. Obrigada!

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  3. Uma introdução que dá margens à imaginação de todos e de tudo. Esperava um prédio ocupado e aparece-nos um prédio arrendado a preços comedidos. Quem será o benemérito? Excelente, Luisa. Gostei muito

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    1. Será benemérito ou olho para o negócio?... Já que não tinha outra maneira de rentabilizar o espaço.eheheh. Obrigada, Albertina!

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  4. Adorei! E estou plena de curiosidade...
    Abraço, Luisinha.

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    1. Também eu estou curiosa para saber o que por aí vem. Obrigada, Ana!

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  5. Excelente início... Está apresentado o prédio. Venham os moradores 👌

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