Fotografia: Horst Neumann |
- Não o matei, menina, juro que não fui eu.
- Não sou “menina”, sou a agente Sílvia. E
as provas falam todas contra si.
- Mas como, se não fui eu? Acha que tenho
cara de assassina, menina? Olhe bem para mim e diga!
- Em determinadas circunstâncias, D.
Adília, todos nós podemos transformar-nos em assassinos.
- Credo, a menina diz cada coisa…
- Agente Sílvia!
- Sra. agente, pronto! Desculpe, é de
estar transtornada. Quem diria que eu vinha parar à prisão? E sem cometer crime
nenhum.
- Confesse que o matou, D. Adília! Ao
saber que ele era homossexual, ficou furiosa. Pensava que era o amor da vida
dele e afinal…
- Não soube nada disso.
- Mas tinha na sua carteira o bilhete
anónimo, a denunciar a homossexualidade de Alípio Belmonte.
- Não sei de bilhete nenhum, menina.
Sílvia levantou-se, desesperada:
- Assim é que não vamos a lado nenhum, D.
Adília. E não é menina, é agente Sílvia!
Deixou a sala de interrogatórios, batendo
com a porta. Tinha a certeza de que a suspeita Adília lhe vinha com aquela lengalenga
por a achar suscetível de ser influenciada. Afinal, não passava de uma agente
estagiária, de apenas 24 anos. E nem a confissão a uma assassina amadora ela
conseguia arrancar!
Sentou-se à sua secretária e tornou a
suspirar. Iria ainda demorar, até que a levassem a sério, incluindo os próprios
colegas da Judiciária.
Porque insistia a D. Adília na sua
inocência? Assim que se soube a causa da morte de Alípio Belmonte, as
investigações centraram-se nas mulheres. Os homens optavam pela violência
física, com ou sem ajuda de uma arma. As mulheres preferiam o veneno. Na
verdade, Adília fora ainda mais esperta, ao usar algo inofensivo para a maior
parte das pessoas: misturara amendoins ralados na massa dos biscoitos
preferidos da vítima. Pouca gente sabia que Alípio Belmonte sofria de forte
alergia ao amendoim. Já anteriormente sofrera um choque anafilático e só a
pronta ajuda médica lhe salvara a vida. Adília, sua amante, que também lhe
limpava a casa (Sílvia perguntava-se o que se passava na cabeça de certas
mulheres), costumava fazer-lhe daqueles biscoitos, uma receita só dela, que ele
adorava. No dia fatal, fizera a limpeza na ausência dele, como de costume, e deixara-lhe
uma taça de biscoitos na sala. Mal chegara a casa, Alípio pegara num, mesmo
antes de despir o sobretudo e ainda com as chaves na mão. Logo sentiu a
garganta afunilar-se-lhe, a falta de ar. Estava sozinho, já passava da
meia-noite e saíra para o jardim, a fim de apanhar ar. E, por certo, igualmente
na esperança de que alguém o visse, na sua aflição. Mas, típico de um choque
anafilático, a tensão arterial baixou de forma dramática, enquanto aumentava a
frequência cardíaca. Alípio perdera os sentidos. Sem ajuda, morrera numa
questão de minutos.
As outras mulheres suspeitas foram sendo postas
de lado, mesmo considerando a hipótese remota de elas conhecerem a receita. Alípio
desconfiaria de uma visita de cortesia de qualquer delas: Cristina, vítima de
plágio (existia inclusive uma gravação em que ela o ameaçava matar); Clara, que
o odiava por ele a ter violado e enganar a sua irmã gémea; e Fernanda, que descobrira
Alípio ser um fingido e não suportava que o seu irmão continuasse a endeusá-lo.
Todas elas já não o contactavam há anos. Visitá-lo, de repente, com uma taça
cheia dos seus biscoitos preferidos, poria Alípio com a pulga atrás da orelha.
E, mesmo admitindo que alguma delas o tivesse visitado àquela hora e ele a
convidasse a entrar, como explicar o sobretudo vestido, a chave na mão?
A única que poderia tocar à sua porta, sem
desconfiança da parte dele, seria a Tixa. Na verdade, ela permanecera uma das
principais suspeitas da PJ, junto com Adília, durante muito tempo. Até que se
encontrou o comprido sobretudo preto e o chapéu de abas largas na casa do
agente Adolfo, mais precisamente, no quarto de arrumações, onde Adília
costumava passar a ferro. A testemunha Grégor Macondes confirmara serem os
adereços da figura que andava a atormentar a vítima. Ele próprio a vira, perto
do cemitério, no dia do funeral.
Tudo batia certo: Adília tinha a chave de
casa de Alípio, a taça dos biscoitos acabados de fazer encontrava-se sobre a
mesa da sala, o bilhete anónimo a denunciá-lo como homossexual foi encontrado
na carteira dela, e, por fim, a fatiota.
Era tudo tão óbvio…
Pensando melhor, talvez fosse óbvio demais.
Ou era novamente a sua inexperiência a pregar-lhe uma partida?
Sílvia precisava do conselho de alguém
mais experiente e lembrou-se do agente Adolfo, o marido de Adília. Era dos
colegas mais simpáticos. E andava bastante deprimido. Ficaria com certeza
aliviado, se os dois juntos encontrassem o ponto fraco daquele esquema, livrando
a mulher da suspeita.
Adolfo não se encontrava no seu
escritório. Sílvia telefonou-lhe ao serão e combinaram tomar o pequeno-almoço
juntos, numa esplanada perto do edifício da PJ. Adolfo não queria discutir o
assunto no local de trabalho. Quando Adília se tornara na suspeita principal,
fora afastado da investigação.
- Passei a noite a matutar no caso - disse
Sílvia. - Há algo a incomodar-me. Acho que é a mistura de perfeição e
ingenuidade.
Adolfo olhou-a intrigado:
- Pode explicar melhor?
- O facto de usar o amendoim, que sabia
ser fatal para a vítima, denota raffinesse. Por outro lado, fazer os
biscoitos, cuja receita só ela conhece, não é ingénuo demais? Por que não usou
ela os amendoins ralados num puré, ou num molho de salada, ou mesmo numa
bebida? Poderia ter encenado uma refeição a dois. Isso alargaria o leque de
suspeitos, não acha?
Adolfo olhava-a surpreendido e interessado
ao mesmo tempo. Deixando o pequeno-almoço a meio, tirou os cigarros do bolso,
murmurando:
- Realmente… - E, encarando-a, com um
sorriso: - Acho que é um grande erro subestimá-la, Sílvia. Algo me diz que será
uma excelente investigadora.
Sílvia corou um pouco, lisonjeada.
Balbuciou:
- Obrigada. Força de vontade não me falta.
Adolfo acendeu um cigarro, inalou o fumo e
expeliu-o lentamente, reflexivo.
De repente, Sílvia sentiu o coração a
disparar. Levou a mão tremente à testa. Adolfo reparou na agitação, perguntou:
- Que se passa?
- Não sei, senti uma tontura. -
Levantou-se. - Desculpe, tenho de ir.
- Não é melhor ficar sentada e beber um pouco
de água?
- Não, eu… tenho uns comprimidos no
escritório que me podem ajudar. Desculpe.
Abalou, em direção ao edifício da
Judiciária. Antes de entrar, porém, foi a um quiosque comprar um maço de
cigarros e um isqueiro. Depois, dirigiu-se à cela onde se encontrava Adília, em
prisão preventiva. Tirou o maço da carteira, abriu-o e apontou-o na direção da detida,
dizendo:
- Fume um cigarro, por favor, D. Adília.
- O quê, menina? Não estou a entender.
- Fume, D. Adília! É importante.
- Mas eu nunca fumei na vida. Além disso,
não é proibido fazê-lo aqui?
- Deixe isso à minha responsabilidade.
Prove que nunca fumou! Quero ver.
Olhava-a tão agressiva, que Adília
replicou:
- A menina está a assustar-me, credo. Mas
pronto, se isso a vai acalmar… e vai ver que não tenho mesmo jeito para isto.
Pôs o cigarro na boca, Sílvia acendeu-lho
com o isqueiro. Mesmo sem inalar o fumo, Adília começou logo a tossir.
- Ai menina, que coisa horrível. Porque me
obriga a isto, valha-me Deus!
- Fume! Quero ter a certeza de que não
está a mentir. Dê mais uma passa, vamos!
Adília obedeceu e começou novamente a
tossir.
Sílvia ouviu passos apressados, no
corredor. Virou-se, na altura em que Adolfo entrava na cela, que ela deixara
aberta. Ele seguira-a.
- Mas que raio se passa aqui - perguntou
irritado.
Antes que Adília recuperasse da tosse e
dissesse algo, Sílvia pôs um ar inocente:
- Ora, só quis ser simpática com a sua
mulher. Disse-me sentir-se angustiada, aqui presa, apetecia-lhe um cigarro. E eu
fui comprar-lhos.
- Mas que disparate! A Adília nunca fumou
na vida.
- Não me diga, caro colega! A testemunha
Grégor Macondes foi perentória a afirmar ter visto um sopro de fumaça saindo da
boca da figura que atormentou os últimos dias de vida de Alípio Belmonte. Isto,
depois de o próprio Alípio lhe ter igualmente dito ver a criatura fumar.
Adolfo apontou-lhe os olhos escancarados.
Depois, lançou-se sobre ela, apertando-lhe o pescoço.
- Jesus, homem - guinchou Adília. -
Enlouqueceste? Deixa a rapariga em paz!
Tentou separá-los, mas, não conseguindo,
gritou por ajuda. Surgiram dois agentes que livraram Sílvia das garras de
Adolfo.
Enquanto tentavam acalmar o colega,
perguntando-lhe o que se passava com ele, Sílvia recuperou o ar e lançou:
- Confesse, agente Adolfo! Foi você que
matou o Alípio, não é verdade? Não adianta negar, tenho provas suficientes para
convencer qualquer juiz. Confesse! Foi você que fez os biscoitos, não foi?
Tinha a chave da casa do Alípio, foi lá pô-los, depois de saber a sua mulher
ter saído. E pôs o bilhete anónimo na carteira dela, no dia em que sabia que a
PJ a ia buscar.
Depois de um compasso de espera, Adolfo
berrou:
- Sim, fui eu, fui eu!
- Ai credo, homem!
- Não merecia outra coisa, aquele crápula.
Toda a gente sabia que era um bandido, um vigarista. Ainda por cima,
encornou-me. Acabaria na prisão, mas já se sabe como são demoradas estas
coisas. E eu estava cheio, cheio! Decidi livrar-me dos dois: matar o vigarista,
fazendo um favor ao mundo, e meter essa puta na cadeia. Dois coelhos duma
cajadada! - Acalmando-se, de repente, prosseguiu, quase num lamento: - E quase
consegui. Mas cometi dois grandes erros. O primeiro foi aproximar-me do
cemitério, permitindo que alguém me visse, além do morto. - Encarou Sílvia: - O
segundo foi ter perdido o controle, há momentos, e tentado esganá-la.
Virou-se para a mulher, novamente agitado:
- Foste bem enganada, sua estúpida! O Alípio
nunca gostou de ti, a sua verdadeira atração eram os homens. Além disso, era
pedófilo. Sabes porque te usava, sabes porque se esforçou por ganhar a tua
confiança? Para ter acesso às investigações que a Judiciária levava a cabo. Só
por isso tinha a chave de nossa casa. Para ir ao meu escritório vasculhar.
- Bem, - disse Sílvia, dirigida aos outros
dois colegas, - nada mais nos resta fazer do que prender o agente Adolfo, a fim
de o interrogar oficialmente.
Enquanto o guiavam para o compartimento
respetivo, Adolfo lamentou, abanando a cabeça:
- E eu, que nada percebo de cozinha,
pus-me a fazer o raio dos biscoitos. - Parou e desabafou, abatido: - Fazem
ideia do trabalho que isso me deu?
Cristina Torrão
Que golpe ardiloso, Agatha.
ResponderEliminarWell done!
Perfeito, Cristina!!!
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