26/09/22

O Alípio Morreu - Capítulo 11 - Final

 

Fotografia: Horst Neumann

- Não o matei, menina, juro que não fui eu.

- Não sou “menina”, sou a agente Sílvia. E as provas falam todas contra si.

- Mas como, se não fui eu? Acha que tenho cara de assassina, menina? Olhe bem para mim e diga!

- Em determinadas circunstâncias, D. Adília, todos nós podemos transformar-nos em assassinos.

- Credo, a menina diz cada coisa…

- Agente Sílvia!

- Sra. agente, pronto! Desculpe, é de estar transtornada. Quem diria que eu vinha parar à prisão? E sem cometer crime nenhum.

- Confesse que o matou, D. Adília! Ao saber que ele era homossexual, ficou furiosa. Pensava que era o amor da vida dele e afinal…

- Não soube nada disso.

- Mas tinha na sua carteira o bilhete anónimo, a denunciar a homossexualidade de Alípio Belmonte.

- Não sei de bilhete nenhum, menina.

Sílvia levantou-se, desesperada:

- Assim é que não vamos a lado nenhum, D. Adília. E não é menina, é agente Sílvia!

Deixou a sala de interrogatórios, batendo com a porta. Tinha a certeza de que a suspeita Adília lhe vinha com aquela lengalenga por a achar suscetível de ser influenciada. Afinal, não passava de uma agente estagiária, de apenas 24 anos. E nem a confissão a uma assassina amadora ela conseguia arrancar!

Sentou-se à sua secretária e tornou a suspirar. Iria ainda demorar, até que a levassem a sério, incluindo os próprios colegas da Judiciária.

Porque insistia a D. Adília na sua inocência? Assim que se soube a causa da morte de Alípio Belmonte, as investigações centraram-se nas mulheres. Os homens optavam pela violência física, com ou sem ajuda de uma arma. As mulheres preferiam o veneno. Na verdade, Adília fora ainda mais esperta, ao usar algo inofensivo para a maior parte das pessoas: misturara amendoins ralados na massa dos biscoitos preferidos da vítima. Pouca gente sabia que Alípio Belmonte sofria de forte alergia ao amendoim. Já anteriormente sofrera um choque anafilático e só a pronta ajuda médica lhe salvara a vida. Adília, sua amante, que também lhe limpava a casa (Sílvia perguntava-se o que se passava na cabeça de certas mulheres), costumava fazer-lhe daqueles biscoitos, uma receita só dela, que ele adorava. No dia fatal, fizera a limpeza na ausência dele, como de costume, e deixara-lhe uma taça de biscoitos na sala. Mal chegara a casa, Alípio pegara num, mesmo antes de despir o sobretudo e ainda com as chaves na mão. Logo sentiu a garganta afunilar-se-lhe, a falta de ar. Estava sozinho, já passava da meia-noite e saíra para o jardim, a fim de apanhar ar. E, por certo, igualmente na esperança de que alguém o visse, na sua aflição. Mas, típico de um choque anafilático, a tensão arterial baixou de forma dramática, enquanto aumentava a frequência cardíaca. Alípio perdera os sentidos. Sem ajuda, morrera numa questão de minutos.

As outras mulheres suspeitas foram sendo postas de lado, mesmo considerando a hipótese remota de elas conhecerem a receita. Alípio desconfiaria de uma visita de cortesia de qualquer delas: Cristina, vítima de plágio (existia inclusive uma gravação em que ela o ameaçava matar); Clara, que o odiava por ele a ter violado e enganar a sua irmã gémea; e Fernanda, que descobrira Alípio ser um fingido e não suportava que o seu irmão continuasse a endeusá-lo. Todas elas já não o contactavam há anos. Visitá-lo, de repente, com uma taça cheia dos seus biscoitos preferidos, poria Alípio com a pulga atrás da orelha. E, mesmo admitindo que alguma delas o tivesse visitado àquela hora e ele a convidasse a entrar, como explicar o sobretudo vestido, a chave na mão?

A única que poderia tocar à sua porta, sem desconfiança da parte dele, seria a Tixa. Na verdade, ela permanecera uma das principais suspeitas da PJ, junto com Adília, durante muito tempo. Até que se encontrou o comprido sobretudo preto e o chapéu de abas largas na casa do agente Adolfo, mais precisamente, no quarto de arrumações, onde Adília costumava passar a ferro. A testemunha Grégor Macondes confirmara serem os adereços da figura que andava a atormentar a vítima. Ele próprio a vira, perto do cemitério, no dia do funeral.

Tudo batia certo: Adília tinha a chave de casa de Alípio, a taça dos biscoitos acabados de fazer encontrava-se sobre a mesa da sala, o bilhete anónimo a denunciá-lo como homossexual foi encontrado na carteira dela, e, por fim, a fatiota.

Era tudo tão óbvio…

Pensando melhor, talvez fosse óbvio demais. Ou era novamente a sua inexperiência a pregar-lhe uma partida?

Sílvia precisava do conselho de alguém mais experiente e lembrou-se do agente Adolfo, o marido de Adília. Era dos colegas mais simpáticos. E andava bastante deprimido. Ficaria com certeza aliviado, se os dois juntos encontrassem o ponto fraco daquele esquema, livrando a mulher da suspeita.

Adolfo não se encontrava no seu escritório. Sílvia telefonou-lhe ao serão e combinaram tomar o pequeno-almoço juntos, numa esplanada perto do edifício da PJ. Adolfo não queria discutir o assunto no local de trabalho. Quando Adília se tornara na suspeita principal, fora afastado da investigação.

 

- Passei a noite a matutar no caso - disse Sílvia. - Há algo a incomodar-me. Acho que é a mistura de perfeição e ingenuidade.

Adolfo olhou-a intrigado:

- Pode explicar melhor?

- O facto de usar o amendoim, que sabia ser fatal para a vítima, denota raffinesse. Por outro lado, fazer os biscoitos, cuja receita só ela conhece, não é ingénuo demais? Por que não usou ela os amendoins ralados num puré, ou num molho de salada, ou mesmo numa bebida? Poderia ter encenado uma refeição a dois. Isso alargaria o leque de suspeitos, não acha?

Adolfo olhava-a surpreendido e interessado ao mesmo tempo. Deixando o pequeno-almoço a meio, tirou os cigarros do bolso, murmurando:

- Realmente… - E, encarando-a, com um sorriso: - Acho que é um grande erro subestimá-la, Sílvia. Algo me diz que será uma excelente investigadora.

Sílvia corou um pouco, lisonjeada. Balbuciou:

- Obrigada. Força de vontade não me falta.

Adolfo acendeu um cigarro, inalou o fumo e expeliu-o lentamente, reflexivo.

De repente, Sílvia sentiu o coração a disparar. Levou a mão tremente à testa. Adolfo reparou na agitação, perguntou:

- Que se passa?

- Não sei, senti uma tontura. - Levantou-se. - Desculpe, tenho de ir.

- Não é melhor ficar sentada e beber um pouco de água?

- Não, eu… tenho uns comprimidos no escritório que me podem ajudar. Desculpe.

Abalou, em direção ao edifício da Judiciária. Antes de entrar, porém, foi a um quiosque comprar um maço de cigarros e um isqueiro. Depois, dirigiu-se à cela onde se encontrava Adília, em prisão preventiva. Tirou o maço da carteira, abriu-o e apontou-o na direção da detida, dizendo:

- Fume um cigarro, por favor, D. Adília.

- O quê, menina? Não estou a entender.

- Fume, D. Adília! É importante.

- Mas eu nunca fumei na vida. Além disso, não é proibido fazê-lo aqui?

- Deixe isso à minha responsabilidade. Prove que nunca fumou! Quero ver.

Olhava-a tão agressiva, que Adília replicou:

- A menina está a assustar-me, credo. Mas pronto, se isso a vai acalmar… e vai ver que não tenho mesmo jeito para isto.

Pôs o cigarro na boca, Sílvia acendeu-lho com o isqueiro. Mesmo sem inalar o fumo, Adília começou logo a tossir.

- Ai menina, que coisa horrível. Porque me obriga a isto, valha-me Deus!

- Fume! Quero ter a certeza de que não está a mentir. Dê mais uma passa, vamos!

Adília obedeceu e começou novamente a tossir.

Sílvia ouviu passos apressados, no corredor. Virou-se, na altura em que Adolfo entrava na cela, que ela deixara aberta. Ele seguira-a.

- Mas que raio se passa aqui - perguntou irritado.

Antes que Adília recuperasse da tosse e dissesse algo, Sílvia pôs um ar inocente:

- Ora, só quis ser simpática com a sua mulher. Disse-me sentir-se angustiada, aqui presa, apetecia-lhe um cigarro. E eu fui comprar-lhos.

- Mas que disparate! A Adília nunca fumou na vida.

- Não me diga, caro colega! A testemunha Grégor Macondes foi perentória a afirmar ter visto um sopro de fumaça saindo da boca da figura que atormentou os últimos dias de vida de Alípio Belmonte. Isto, depois de o próprio Alípio lhe ter igualmente dito ver a criatura fumar.

Adolfo apontou-lhe os olhos escancarados. Depois, lançou-se sobre ela, apertando-lhe o pescoço.

- Jesus, homem - guinchou Adília. - Enlouqueceste? Deixa a rapariga em paz!

Tentou separá-los, mas, não conseguindo, gritou por ajuda. Surgiram dois agentes que livraram Sílvia das garras de Adolfo.

Enquanto tentavam acalmar o colega, perguntando-lhe o que se passava com ele, Sílvia recuperou o ar e lançou:

- Confesse, agente Adolfo! Foi você que matou o Alípio, não é verdade? Não adianta negar, tenho provas suficientes para convencer qualquer juiz. Confesse! Foi você que fez os biscoitos, não foi? Tinha a chave da casa do Alípio, foi lá pô-los, depois de saber a sua mulher ter saído. E pôs o bilhete anónimo na carteira dela, no dia em que sabia que a PJ a ia buscar.

Depois de um compasso de espera, Adolfo berrou:

- Sim, fui eu, fui eu!

- Ai credo, homem!

- Não merecia outra coisa, aquele crápula. Toda a gente sabia que era um bandido, um vigarista. Ainda por cima, encornou-me. Acabaria na prisão, mas já se sabe como são demoradas estas coisas. E eu estava cheio, cheio! Decidi livrar-me dos dois: matar o vigarista, fazendo um favor ao mundo, e meter essa puta na cadeia. Dois coelhos duma cajadada! - Acalmando-se, de repente, prosseguiu, quase num lamento: - E quase consegui. Mas cometi dois grandes erros. O primeiro foi aproximar-me do cemitério, permitindo que alguém me visse, além do morto. - Encarou Sílvia: - O segundo foi ter perdido o controle, há momentos, e tentado esganá-la.

Virou-se para a mulher, novamente agitado:

- Foste bem enganada, sua estúpida! O Alípio nunca gostou de ti, a sua verdadeira atração eram os homens. Além disso, era pedófilo. Sabes porque te usava, sabes porque se esforçou por ganhar a tua confiança? Para ter acesso às investigações que a Judiciária levava a cabo. Só por isso tinha a chave de nossa casa. Para ir ao meu escritório vasculhar.

- Bem, - disse Sílvia, dirigida aos outros dois colegas, - nada mais nos resta fazer do que prender o agente Adolfo, a fim de o interrogar oficialmente.

Enquanto o guiavam para o compartimento respetivo, Adolfo lamentou, abanando a cabeça:

- E eu, que nada percebo de cozinha, pus-me a fazer o raio dos biscoitos. - Parou e desabafou, abatido: - Fazem ideia do trabalho que isso me deu?

 

                                                                                  Cristina Torrão

 

2 comentários:

Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!