Fotografia: Sónia Ferreira |
Sónia - 5º Esq.
Como adoro ver o mar! Esta janela, já
desgasta com o tempo, combina com o meu estado de alma…
Aqui é o meu recanto para ouvir as ondas
aceleradas que rebentam, furiosamente, na areia fina da praia, sinto-me aliviada!
Parece que solto todo o negativismo que a minha vida acarreta desde que o meu
ex-marido partiu para a Inglaterra, com o seu primeiro amor da adolescência, e
desde que a minha Amiga Isabel faleceu com um infarto fulminante.
Por vezes, encontro-me a reviver o passado
e não consigo controlar as lágrimas que teimam em escorregar em fio até ao
parapeito da janela.
A minha relação com o meu marido há muito que
estava estagnada e apagada. Não havia reciprocidade de sentimentos da parte
dele. Apesar de eu saber, de antemão, que Daniel já não me amava como nos
primeiros anos, mantive este casamento de fachada em prol do meu filho.
Numa noite de tempestade, depois de o meu
filho adormecer, peguei nas chaves do meu carro e percorri várias ruas e ruelas
da cidade até que encontrei o carro vermelho estacionado, ilegalmente, junto a
um bar noturno. Tremi e rezei aos Anjos para que o Miguel continuasse a dormir
serenamente até eu chegar. Entrei no bar e vi-o entrelaçado com aquela mulher
alta, magra, de cabelos louros com uma maquiagem demasiado carregada no rosto.
Eles não me viram, todavia, naquele momento, percebi que a única solução para
este casamento desgastado era o divórcio.
Já dentro do carro tive um ataque de choro
acompanhado de soluços e de lágrimas salgadas que inundaram o meu rosto e
deslizavam em fio até ao volante.
Quando cheguei a casa desnorteada e com um
sentimento de pena de mim própria, fui até ao quarto de Miguel e aninhei-me ao
seu lado enquanto ele dormia tranquilamente.
Daniel chegou às 4h00 da manhã e, mais uma
vez, ficou no sofá a dormir o resto da noite.
De manhã cedo pedi à minha vizinha
Cristina se podia levar o Miguel para a escola com a sua filha Sara. Ela
prontamente ficou com o petiz, deu-me um abraço e segredou-me ao ouvido o
seguinte: “sê corajosa e põe um ponto final naquilo que já acabou há
muito…valoriza-te e não vivas como uma mendiga de sentimentos”. Com os olhos
rasos de água agradeci-lhe estas palavras que me confortaram o coração.
Miguel e Sara andavam na mesma escola e
eram da mesma turma. Ambos nutriam uma amizade tão pura e genuína que a
companhia um do outro era uma espécie de bênção. Cristina quando ia buscar a
Sara lá a casa foi-se apercebendo que a única alegria que morava naquele espaço
era o som dos risos das duas crianças que vinham do quarto de Miguel.
Entrei em casa e Daniel estava a tomar o
café à pressa para ir trabalhar. Segurei-lhe no braço, olhei-o fixamente nos
olhos e disse-lhe:
- Quero o divórcio. Vai viver a tua vida
com aquela mulher que acariciaste, ontem à noite, com tanta paixão. Peço-te que
saias de casa hoje e vamos resolver este assunto sem alarido pelo bem-estar do
nosso filho. Somos adultos e civilizados, portanto vamos tratar do divórcio de
forma amigável.
Daniel ficou em silêncio, pálido a olhar
para mim com um sentimento de compaixão. Entretanto, disse com a voz trémula:
- Perdoa-me… não te queria causar
sofrimento… logo venho buscar as minhas coisas…
- O.K., eu irei falar com o Miguel que os
pais já não sentem amor um pelo outro, contudo amá-lo-emos para sempre.
-Finalizei o curto diálogo com a voz firme e segura que estava a tomar a
atitude correta para acabar com cenas de um casamento em que eu era a única
protagonista…
Conversei abertamente com o meu filho e
ele compreendeu que o pai estaria ausente no dia-a-dia. Indubitavelmente que a
companhia da Sara o ajudou muito no processo do meu divórcio.
O divórcio foi consolidado.
Saí do Tribunal e fui até à praia e ali
fiquei, sentada imóvel, a ouvir as ondas rebentarem e a olhar fixamente para linha
do horizonte…
Relembrei um passado feliz quando eu, o
Daniel e o nosso filho de seis meses deixamos a Guarda e viemos para esta
cidade à procura de novas oportunidades para progredirmos profissionalmente.
A minha profissão de jornalista, restrita
à redação de notícias, passava o dia atrás do monitor de um computador num
diário de notícias da Guarda.
Víctor, o diretor do diário de notícias
valorizava muito o meu trabalho e um dia disse-me:
- Sónia tens capacidades de conseguires
ter uma carreira profissional de sucesso e mais estável financeiramente. Eu,
perplexa com esta afirmação, passei a mão pela cabeça, largando os cabelos
lentamente nos meus ombros e fiquei em silêncio por breves minutos.
- Tens que voar mais alto! - acrescentou o
Víctor num piscar de olhos.
- Sr. Víctor, nunca pensei em deixar de
ser sua colaboradora, pois o senhor é um excelente líder e um ser humano
extremamente generoso e compreensivo, quer para comigo, quer para os restantes
funcionários. - Rematei com toda a minha sinceridade sobre aquele Grande Homem.
- Tenho um amigo que é o dono de um jornal
localizado numa cidade portuária, lá mais para o norte e ele anda à procura de
uma boa redatora de notícias e tu és a pessoa com o perfil que ele pretende. -
Disse Víctor, dando-me uma pancadinha nas costas como se estivesse a motivar-me
para seguir em frente nesta oferta.
A
minha tia Ângela morava naquela cidade à beira mar, rodeada de gaivotas e de
pombos que enfeitavam aquele prédio antigo, mas belo e misterioso. O
apartamento era amplo e decorado com imensas rendas nas mesas e sofás. O gosto
da tia Ângela por miniaturas em barro e porcelana, outrora compradas na Loja
dos Trezentos, era exposto sobre os móveis, como se fosse uma proteção do pó
dos móveis.
Toda aquela decoração combinava com o
prédio, todavia eu não apreciava aquela imensidão de estátuas, estatuetas,
bibelots, etc... Prefiro móveis mais despidos e apenas com uma ou outra
decoração.
Eu e a minha família ficamos hospedados no
apartamento da tia Ângela que sempre nos tratou como mãe, sogra e avó.
Após o falecimento da minha tia, o
contrato de arrendamento passou para o meu nome.
Dentro da nave do passado, acordei e voltei
ao presente quando uma gaivota voou até os meus pés, como se fosse um aviso que
uma tempestade se avizinhava no céu. Levantei-me do chão, sacudi a areia e
pensei cá para mim: segue em frente de cabeça erguida que tens um filho para
criar…
O Daniel ligava uma vez por semana para o
filho. O tempo encarregou-se de me libertar de um sentimento de apego por
alguém que já se tinha desapegado há muito de mim.
Com o ordenado que ganho no Jornal dá para
pagar todas as despesas fixas e ainda sobra algum para depositar na conta
poupança e para uma ou outra extravagância…
Ao contrário da tia Ângela, eu tenho uma
coleção de sapatos no meu quarto que continua no quarto de hóspedes. O meu filho
afirma que o meu gosto exacerbado por sapatos dava para calçar todas as
mulheres desta cidade!
Quando a Tixa organiza alguma festa aqui
no prédio ou vai a algum evento ela vem cá acima e escolhe os sapatos que
combinam com a sua indumentária.
Até a Benevides já me pediu uns sapatos
vermelhos de salto bem alto para uma festa que, segundo boatos aqui no prédio,
o Euclides nem soube do tal evento. Ele parece que anda ocupado quase todas as
noites a fazer serviços de bricolage no sótão da Fernanda. Os vizinhos só veem
maldades, eu acho que o Euclides tem andado a colocar um estendal no sótão da
Fernanda. Julgo que ele preferiu fazer uma boa ação em ajudar a vizinha, ao
invés de ir a uma festa que nada tinha a ver com ele!
Eu empresto os sapatos, pois tenho tantos
que o Miguel até agradece às vizinhas para ver se parte da coleção se perde!
Por vezes, quando chego a casa à noite
gosto de desfilar com sapatos.
No entanto, já me chegou aos ouvidos que o
vizinho David do 4º Esqº se queixou para o vizinho da frente, o Pedro.
Estes dois vizinhos têm um ar misterioso…
Quando estou na janela a contemplar o mar já me apercebi que o Pedro quando
passeia a sua cadela Tróia segue o percurso desconfiado de alguma coisa. Há
aqui algo de estranho com o (a) condutor(a) de um carro preto Mercedes que
circula por aqui, sempre às mesmas horas. Já fotografei a matrícula e
facultei-a ao meu colega de trabalho, o Sérgio que é perito na investigação
jornalística.
Eu e o Sérgio já fizemos uma pequena
investigação lá no Jornal sobre o Pedro. Descobrimos que este, no passado, teve
um romance com a famosa Filipa Arouca, porém esta puxou-lhe o tapete e o rapaz
foi obrigado a recomeçar a vida. A deslumbrante Filipa Arouca só tem beleza
exterior, quem a conhece verdadeiramente sabe que ela é muito ambiciosa e não
olha a meios para atingir os fins… é uma pessoa de má índole, ela seduz os
homens e, à posteriori, acusa-os de vários tipos de violência. Conseguimos
descobrir que até conseguiu o estatuto de vítima de violência doméstica junto
das Autoridades. Enfim, esta senhora é perigosa, sem escrúpulos e, para já,
continua a ser considerada vítima. Contudo, já está debaixo de olho da polícia,
uma vez que dois indivíduos apresentaram queixa e, segundo se consta, já existem
provas reais para que a esplendorosa Senhora da Televisão tenha os dias
contados nesse papel.
Já o David é bonito e tem um ar charmoso!
Encantou-me quando na festa de fim de ano aqui no prédio disse-me “ter coisas
materiais demais enlouquece a alma”! Fiquei apaixonada por esta expressão, logo
eu que tenho uma coleção absurda de sapatos! Esta afirmação fez-me refletir
sobre o dinheiro gasto, de uma forma leviana, em tantos sapatos quando, afinal,
só tenho dois pés…
Quando nos cruzamos nas escadas ou na
entrada do prédio, pareço uma adolescente tímida que o observa de relance para
que ele não se aperceba de um eventual sentimento que parece renascer no meu
coração…
Ele é simpático, porém não é de muitas
conversas…
Até já pensei em ir lá abaixo levar-lhe
umas bolachinhas de canela muito saborosas, uma receita antiga que herdei da
minha falecida tia.
Várias vezes que já me aproximei do 4º
Esq.º, com um frasquinho de bolachas, mas ainda não tive coragem de tocar à
campainha para lhe ofertar esta minha especialidade culinária.
Um dia destes, passo um batom, visto um vestido às flores que há muito que não uso e calço uns sapatos azuis cintilantes e, quiçá, ele repare em mim.
Sónia Ferreira
Ó vizinha, parabéns pela força e resiliência que demonstra possuir e lhe permitem enfrentar as situações mais difíceis, sem deixar que as mesmas lhe esfrangalhem a alma. Quanto à frase com que o charmoso David a encantou, “ter coisas materiais demais enlouquece a alma”, sugiro-lhe que a analise com mais atenção. Essa frase é uma metáfora que dissimula e confere um tom adocicado a uma outra que surge no seu seguimento, geralmente após receber a oferta das bolachinhas de canela, que é "ter uma coisa grande demais, enlouquece as gajas". Mas pronto, há quem jure que tamanho não é importante, e há quem despreze coisas pequenas, do mesmo modo que uns apreciam biblôts de porcelana e outros, sapatos de salto alto.
ResponderEliminarDe qualquer forma, tenha em conta os efeitos afrodisíacos da canela e não se espante se o rapaz começar a "aumentar", quando a(s) provar.
O pecado mora ao lado
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