30/01/23

Estendais - Capítulo 9

 

Fotografia: Sónia Ferreira 

Sónia - 5º Esq.

 

Como adoro ver o mar! Esta janela, já desgasta com o tempo, combina com o meu estado de alma…

Aqui é o meu recanto para ouvir as ondas aceleradas que rebentam, furiosamente, na areia fina da praia, sinto-me aliviada! Parece que solto todo o negativismo que a minha vida acarreta desde que o meu ex-marido partiu para a Inglaterra, com o seu primeiro amor da adolescência, e desde que a minha Amiga Isabel faleceu com um infarto fulminante.

Por vezes, encontro-me a reviver o passado e não consigo controlar as lágrimas que teimam em escorregar em fio até ao parapeito da janela.

A minha relação com o meu marido há muito que estava estagnada e apagada. Não havia reciprocidade de sentimentos da parte dele. Apesar de eu saber, de antemão, que Daniel já não me amava como nos primeiros anos, mantive este casamento de fachada em prol do meu filho.

Numa noite de tempestade, depois de o meu filho adormecer, peguei nas chaves do meu carro e percorri várias ruas e ruelas da cidade até que encontrei o carro vermelho estacionado, ilegalmente, junto a um bar noturno. Tremi e rezei aos Anjos para que o Miguel continuasse a dormir serenamente até eu chegar. Entrei no bar e vi-o entrelaçado com aquela mulher alta, magra, de cabelos louros com uma maquiagem demasiado carregada no rosto. Eles não me viram, todavia, naquele momento, percebi que a única solução para este casamento desgastado era o divórcio.

Já dentro do carro tive um ataque de choro acompanhado de soluços e de lágrimas salgadas que inundaram o meu rosto e deslizavam em fio até ao volante.

Quando cheguei a casa desnorteada e com um sentimento de pena de mim própria, fui até ao quarto de Miguel e aninhei-me ao seu lado enquanto ele dormia tranquilamente.

Daniel chegou às 4h00 da manhã e, mais uma vez, ficou no sofá a dormir o resto da noite.

De manhã cedo pedi à minha vizinha Cristina se podia levar o Miguel para a escola com a sua filha Sara. Ela prontamente ficou com o petiz, deu-me um abraço e segredou-me ao ouvido o seguinte: “sê corajosa e põe um ponto final naquilo que já acabou há muito…valoriza-te e não vivas como uma mendiga de sentimentos”. Com os olhos rasos de água agradeci-lhe estas palavras que me confortaram o coração.

Miguel e Sara andavam na mesma escola e eram da mesma turma. Ambos nutriam uma amizade tão pura e genuína que a companhia um do outro era uma espécie de bênção. Cristina quando ia buscar a Sara lá a casa foi-se apercebendo que a única alegria que morava naquele espaço era o som dos risos das duas crianças que vinham do quarto de Miguel.

Entrei em casa e Daniel estava a tomar o café à pressa para ir trabalhar. Segurei-lhe no braço, olhei-o fixamente nos olhos e disse-lhe:

- Quero o divórcio. Vai viver a tua vida com aquela mulher que acariciaste, ontem à noite, com tanta paixão. Peço-te que saias de casa hoje e vamos resolver este assunto sem alarido pelo bem-estar do nosso filho. Somos adultos e civilizados, portanto vamos tratar do divórcio de forma amigável.

Daniel ficou em silêncio, pálido a olhar para mim com um sentimento de compaixão. Entretanto, disse com a voz trémula:

- Perdoa-me… não te queria causar sofrimento… logo venho buscar as minhas coisas…

- O.K., eu irei falar com o Miguel que os pais já não sentem amor um pelo outro, contudo amá-lo-emos para sempre. -Finalizei o curto diálogo com a voz firme e segura que estava a tomar a atitude correta para acabar com cenas de um casamento em que eu era a única protagonista…

Conversei abertamente com o meu filho e ele compreendeu que o pai estaria ausente no dia-a-dia. Indubitavelmente que a companhia da Sara o ajudou muito no processo do meu divórcio.

O divórcio foi consolidado.

Saí do Tribunal e fui até à praia e ali fiquei, sentada imóvel, a ouvir as ondas rebentarem e a olhar fixamente para linha do horizonte…

Relembrei um passado feliz quando eu, o Daniel e o nosso filho de seis meses deixamos a Guarda e viemos para esta cidade à procura de novas oportunidades para progredirmos profissionalmente.

A minha profissão de jornalista, restrita à redação de notícias, passava o dia atrás do monitor de um computador num diário de notícias da Guarda.

Víctor, o diretor do diário de notícias valorizava muito o meu trabalho e um dia disse-me:

- Sónia tens capacidades de conseguires ter uma carreira profissional de sucesso e mais estável financeiramente. Eu, perplexa com esta afirmação, passei a mão pela cabeça, largando os cabelos lentamente nos meus ombros e fiquei em silêncio por breves minutos.

- Tens que voar mais alto! - acrescentou o Víctor num piscar de olhos.

- Sr. Víctor, nunca pensei em deixar de ser sua colaboradora, pois o senhor é um excelente líder e um ser humano extremamente generoso e compreensivo, quer para comigo, quer para os restantes funcionários. - Rematei com toda a minha sinceridade sobre aquele Grande Homem.

- Tenho um amigo que é o dono de um jornal localizado numa cidade portuária, lá mais para o norte e ele anda à procura de uma boa redatora de notícias e tu és a pessoa com o perfil que ele pretende. - Disse Víctor, dando-me uma pancadinha nas costas como se estivesse a motivar-me para seguir em frente nesta oferta.

 A minha tia Ângela morava naquela cidade à beira mar, rodeada de gaivotas e de pombos que enfeitavam aquele prédio antigo, mas belo e misterioso. O apartamento era amplo e decorado com imensas rendas nas mesas e sofás. O gosto da tia Ângela por miniaturas em barro e porcelana, outrora compradas na Loja dos Trezentos, era exposto sobre os móveis, como se fosse uma proteção do pó dos móveis.

Toda aquela decoração combinava com o prédio, todavia eu não apreciava aquela imensidão de estátuas, estatuetas, bibelots, etc... Prefiro móveis mais despidos e apenas com uma ou outra decoração.

Eu e a minha família ficamos hospedados no apartamento da tia Ângela que sempre nos tratou como mãe, sogra e avó.

Após o falecimento da minha tia, o contrato de arrendamento passou para o meu nome.

Dentro da nave do passado, acordei e voltei ao presente quando uma gaivota voou até os meus pés, como se fosse um aviso que uma tempestade se avizinhava no céu. Levantei-me do chão, sacudi a areia e pensei cá para mim: segue em frente de cabeça erguida que tens um filho para criar…

O Daniel ligava uma vez por semana para o filho. O tempo encarregou-se de me libertar de um sentimento de apego por alguém que já se tinha desapegado há muito de mim.

Com o ordenado que ganho no Jornal dá para pagar todas as despesas fixas e ainda sobra algum para depositar na conta poupança e para uma ou outra extravagância…

Ao contrário da tia Ângela, eu tenho uma coleção de sapatos no meu quarto que continua no quarto de hóspedes. O meu filho afirma que o meu gosto exacerbado por sapatos dava para calçar todas as mulheres desta cidade!

Quando a Tixa organiza alguma festa aqui no prédio ou vai a algum evento ela vem cá acima e escolhe os sapatos que combinam com a sua indumentária.

Até a Benevides já me pediu uns sapatos vermelhos de salto bem alto para uma festa que, segundo boatos aqui no prédio, o Euclides nem soube do tal evento. Ele parece que anda ocupado quase todas as noites a fazer serviços de bricolage no sótão da Fernanda. Os vizinhos só veem maldades, eu acho que o Euclides tem andado a colocar um estendal no sótão da Fernanda. Julgo que ele preferiu fazer uma boa ação em ajudar a vizinha, ao invés de ir a uma festa que nada tinha a ver com ele!

Eu empresto os sapatos, pois tenho tantos que o Miguel até agradece às vizinhas para ver se parte da coleção se perde!

Por vezes, quando chego a casa à noite gosto de desfilar com sapatos.

No entanto, já me chegou aos ouvidos que o vizinho David do 4º Esqº se queixou para o vizinho da frente, o Pedro.

Estes dois vizinhos têm um ar misterioso… Quando estou na janela a contemplar o mar já me apercebi que o Pedro quando passeia a sua cadela Tróia segue o percurso desconfiado de alguma coisa. Há aqui algo de estranho com o (a) condutor(a) de um carro preto Mercedes que circula por aqui, sempre às mesmas horas. Já fotografei a matrícula e facultei-a ao meu colega de trabalho, o Sérgio que é perito na investigação jornalística.

Eu e o Sérgio já fizemos uma pequena investigação lá no Jornal sobre o Pedro. Descobrimos que este, no passado, teve um romance com a famosa Filipa Arouca, porém esta puxou-lhe o tapete e o rapaz foi obrigado a recomeçar a vida. A deslumbrante Filipa Arouca só tem beleza exterior, quem a conhece verdadeiramente sabe que ela é muito ambiciosa e não olha a meios para atingir os fins… é uma pessoa de má índole, ela seduz os homens e, à posteriori, acusa-os de vários tipos de violência. Conseguimos descobrir que até conseguiu o estatuto de vítima de violência doméstica junto das Autoridades. Enfim, esta senhora é perigosa, sem escrúpulos e, para já, continua a ser considerada vítima. Contudo, já está debaixo de olho da polícia, uma vez que dois indivíduos apresentaram queixa e, segundo se consta, já existem provas reais para que a esplendorosa Senhora da Televisão tenha os dias contados nesse papel.

Já o David é bonito e tem um ar charmoso! Encantou-me quando na festa de fim de ano aqui no prédio disse-me “ter coisas materiais demais enlouquece a alma”! Fiquei apaixonada por esta expressão, logo eu que tenho uma coleção absurda de sapatos! Esta afirmação fez-me refletir sobre o dinheiro gasto, de uma forma leviana, em tantos sapatos quando, afinal, só tenho dois pés…

Quando nos cruzamos nas escadas ou na entrada do prédio, pareço uma adolescente tímida que o observa de relance para que ele não se aperceba de um eventual sentimento que parece renascer no meu coração…

Ele é simpático, porém não é de muitas conversas…

Até já pensei em ir lá abaixo levar-lhe umas bolachinhas de canela muito saborosas, uma receita antiga que herdei da minha falecida tia.

Várias vezes que já me aproximei do 4º Esq.º, com um frasquinho de bolachas, mas ainda não tive coragem de tocar à campainha para lhe ofertar esta minha especialidade culinária.

Um dia destes, passo um batom, visto um vestido às flores que há muito que não uso e calço uns sapatos azuis cintilantes e, quiçá, ele repare em mim. 


                                                                                                  Sónia Ferreira

2 comentários:

  1. Ó vizinha, parabéns pela força e resiliência que demonstra possuir e lhe permitem enfrentar as situações mais difíceis, sem deixar que as mesmas lhe esfrangalhem a alma. Quanto à frase com que o charmoso David a encantou, “ter coisas materiais demais enlouquece a alma”, sugiro-lhe que a analise com mais atenção. Essa frase é uma metáfora que dissimula e confere um tom adocicado a uma outra que surge no seu seguimento, geralmente após receber a oferta das bolachinhas de canela, que é "ter uma coisa grande demais, enlouquece as gajas". Mas pronto, há quem jure que tamanho não é importante, e há quem despreze coisas pequenas, do mesmo modo que uns apreciam biblôts de porcelana e outros, sapatos de salto alto.
    De qualquer forma, tenha em conta os efeitos afrodisíacos da canela e não se espante se o rapaz começar a "aumentar", quando a(s) provar.

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