Fernanda – Sótão
O inesperado sempre acontece! Nem os
pensamentos mais tenebrosos me levaram para um espaço tão diminuto como este.
Viver aqui é uma verdadeira odisseia! Ora são palpitações, ora calafrios,
suores, tonturas…uma panóplia de desesperantes sensações que, não raras vezes,
me colocam num estado muito próximo do da loucura.
Que raio! Esta surpreendente claustrofobia
que me persegue há já dois anos acentuou-se desde que vim parar a este sótão.
Salva-me o também diminuto varandim, ao qual eu recorro sempre que sou assolada
por uma crise. E aí racha o caneco pois, não raras vezes, despertada pela
malvada, dou por mim a saltar da cama e a correr, desaforida, em “não trajes
menores” para o varandim, cujas janelas não tardam a escaqueirar tal é a
violência da sua abertura. E, como devem calcular, se alguma alma tem o azar -
ou será a sorte? - de ainda permanecer em vigília, entorna-se o caldo e emoções
diversas tomarão, certamente, conta de si.
A vizinhança olha-me de soslaio. Não é
todos os dias que se tem uma vizinha que, em pleno inverno, um frio de rachar e
a chuva a cair copiosamente, se empoleira repetidamente, quase numa tentativa
de transpor os oito andares que a distanciam de terra firme e arejada. Como sou
de poucas falas e os meus comportamentos são, amiúde, inusitados, devem mesmo
achar que sou uma pobre coitada, a precisar de acompanhamento psiquiátrico e o
temor de uma possível tragédia e curiosidade transparecem nos seus rostos, de
cada vez que nos cruzamos.
Não foi, todavia, razão para não ser
convidada para a “festa de garagem”, com o objetivo de festejarmos a entrada no
Novo Ano e nos conhecermos melhor.
Pouco sei dos meus vizinhos e eles nada
sabem de mim, para além do que podem observar. Foi graças ao imprevisto, com o
qual mantenho uma longa e saudável relação, que deparei com este edifício que,
desde logo, me despertou curiosidade pelas suas vastas janelas de olhares
sobranceiros sobre a cidade e, principalmente, sobre o mar. Viver aqui, além de
estar ao alcance do meu bolso, permitir-me-ia um reencontro de saudosas
memórias de amanheceres de outros tempos.
Esta questão das memórias de tempos
passados é algo que me espanta, pois sempre considerei que o tempo é um tempo
sem tempo - não me vou debruçar agora sobre questões filosóficas inerentes ao
tempo - e nunca quis viver do passado. A verdade é que, ultimamente, tenho sido
inquietada por memórias que julgava já esquecidas e constato que, de certa
forma, vou procurando situações que me permitam reavivá-las.
Assim, quando deparei com este espaço por
alugar, não hesitei e eis-me num sótão minúsculo como habitação, apesar da
imponência do edifício, alguns vizinhos estranhos, outros nem tanto, e uma vida
de sobressaltos claustrofóbicos.
Da minha existência passada, apenas alguns
objetos das rotinas diárias, algumas roupas e nada mais. Viver face ao
desconhecido e ao imprevisto é a minha filosofia de vida desde o momento em que
esta me surpreendeu da forma abrupta e absurda.
Mas voltemos à reunião na garagem.
Considero estes festejos completamente ridículos e, por isso, recusei a boa
vontade da vizinha Clô na produção do vestuário para o efeito. É obvio que isto
só veio sublinhar a minha já tão boa reputação!
Quando finalmente me apresentei no evento -
já todos pensavam que não iria, devido ao avanço da hora - cruzaram-se olhares,
esboçaram-se sorrisos maledicentes, no momento em que, através da porta
entreaberta, lancei uma “Boa noite” pausado, marcante, forte e aveludado.
Verifiquei que produzira o efeito desejado.
Depois, também pausadamente, entrei
exibindo o vestido preto acetinado, que evidenciava a minha sedutora linguagem
corporal.
Fi-lo consciente dos efeitos que daí
resultariam. As mulheres, espantadas (apenas me conheciam num trajar prático e
confortável) olharam-me boquiabertas, sem disfarçar espanto e diria, mesmo, uma
certa inveja. Aquela imagem era-lhes completamente inesperada. Os homens,
gulosos e expectantes, desfizeram-se em cortesias e, logo, logo, as cadeiras em
meu redor suplicavam a sua serventia.
Recusei sentar-me, para não ferir
suscetibilidades, e dirigi-me à vizinha Tixa, com o pretexto de justificar o
meu atraso, já que ela era uma das grandes promotoras do evento. Sentia-me bem
e confiante e até acedi ao seu convite para cantar um fado.
A
Tixa ouvira-me cantarolar numa das muitas vezes que galgava as escadas.
Apanhara o hábito de o fazer, não só pela beleza dos mármores que as
constituíam, mas também para me manter ágil e leve. Em conversa de
circunstância e tentando, de alguma forma, tornar-me mais afável e empática,
não sem um grande esforço da minha parte, acabei por lhe dizer que adorava
cantar e que costumava fazê-lo nas festas da pequena aldeia onde tinha crescido.
A noite arrastou-se sem grandes
perturbações até à chegada do “casal maravilha”. Se for um leitor atento,
saberá, certamente, que me refiro ao Euclides e à sua apreciada esposa, a
Benevides.
A Clô ficou logo em sobressalto, sabe-se
lá porquê. Foi notório o seu nervosismo e agitação quando Benevides olhou para
o seu companheiro, mal entrou e eu, que tinha um encontro marcado para as duas
da manhã, vi-me impedida de o fazer, já que Euclides, aproveitando a distração
da companheira, fez mais umas das suas galanteadoras e fastidiosas investidas,
sempre a pretexto de um estendal que tardara em colocar e, finalmente, estava à
minha disposição.
Era-me difícil perceber se o Mercedes
preto continuava estacionado no local do costume. Estávamos na garagem e as
minúsculas janelas não permitiam visibilidade para um exterior noturno. A
iluminação pública apagara-se já.
Por fim, simulando uma das minhas
habituais crises, consegui sair. Contudo, o Mercedes já lá não estava. Sabia
que me ia sair caro aquela falha.
Nessa manhã, acordei bem cedo, apesar da
hora tardia do recolhimento. Estava preocupada com o que me iria acontecer.
Espreitei pelo varandim e verifiquei que o carro já lá estava.
Apreensiva e receosa, desci pelo elevador,
cujos espelhos confirmaram a minha ansiedade. Demorei-me fixamente em mim e, já
na rua, determinada e segura, caminhei sem hesitação. Entrei para o banco
traseiro, como era habitual e soltei um grito.
Sentada ao lado do condutor estava a
Benevides!
Fernanda Cadilha
Surprise!!
ResponderEliminarLi e reli a narrativa. Fi-lo porque gostei. Aprendi com uma mestra querida, que é a segunda leitura que conta. O varandim, Benevides e Euclides e a atmosfera nos prendem até o inesperado. Para mim, tudo foi inesperado....
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