27/02/23

Estendais - Capítulo 12

 


Tina – 2º dto

 

Por mais que me tentem convencer não volto a entrar naquele elevador. Não é só o receio de lá ficar presa, o que já aconteceu com muitos dos atuais moradores deste prédio.  É também aqueles espelhos que me fazem ver a quatro dimensões: olho para o lado esquerdo e lá estou eu; olho para a direita e lá estou eu outra vez; olho para trás e, quem lá está? Eu de novo. Olho para a frente e vejo-me a medir quatro vezes o que sou.  Esta ideia não foi brilhante, não senhora. Ainda por cima, saio do elevador e entro em casa e só me dizem:

- Mas o que andas tu a fazer? Estás cada vez mais magra!!! – era a Micas que veio saber como é que eu me estava a entender com o mar! Amiga como ela, há poucas. Até tem a chave de minha casa.

Decididamente não gosto de me ver dentro daquele elevador e, desculpem as saudades duma velha, mas, do sítio onde eu venho não havia elevadores. Havia escadas, de madeira, velhinhas, com alguns buracos pelo meio, por onde víamos o andar de baixo – ou o vizinho de baixo. Havia janelas em todos os andares e telhados das casas dos vizinhos e o sol a nascer inundando o rio e abraçando a cidade. E havia risos e gargalhadas e todos nos conhecíamos:

- Ó vizinha, está tudo bem? Hoje não foi à varanda. Precisa de alguma coisa?

- Ai menina hoje estou para aqui, com umas dores nas cruzes, que nem me consigo levantar.

- Deixe-se estar deitadinha que já aí vou levar-lhe uma sopinha e, se for preciso, chamamos o senhor doutor que ele vem cá e não lhe quer dinheiro nenhum.

Outros tempos, claro. Eu entendo que é o trabalho deles e que têm de ganhar com ele, mas dantes havia alguns que se contentavam com umas couves acabadinhas de colher, uma galinha para fazer arroz de cabidela, um saquinho de batatas para a sopa… até lhes chamavam João Semana. Mas vocês não se lembram disso. Desculpem isto são coisas de velhos.

As portas não tinham chaves e entravamos nas casas uns dos outros e falávamos de nós e dos outros e riamos do que fazíamos e do que deixávamos por fazer. Nesses tempos não havia televisões nem telemóveis, mas havia o Chico e o Manel e o Cesário a cantar-nos à janela e a chamar-nos: Moçooooilas liiiindas.

E havia o rio, tão sereno e tão verde, engalanado, pelas montanhas das suas vinhas, de tons e tonalidades tão diversas que variavam ao longo do dia desde o nascer ao pôr do sol.

O sítio donde eu vim era a casa onde nasci, onde vivi com a minha mãe, os meus irmãos e o meu pai. Um a um fui perdendo cada um e um a um fui-me sentindo mais pobre, mais triste, mais só. Até o Manel se foi! E eu sei bem a falta que ele me fez, mas a fome era muita e as crianças tinham sempre de comer. Um dia aquela maldita doença obrigou-o a ficar em casa e algum tempo depois abraçámo-nos, beijámo-nos e ele disse-me adeus. Nunca mais fui a mesma mulher.

Os meus filhos partiram à procura de melhor vida, do “sonho americano”.  Era um país tão longe e tão distante que foi sempre difícil voltar a vê-los. De vez em quando lá mandam uma carta e vão dizendo que tenho que ir ter com eles, que estão bem, que têm filhos e muitas saudades minhas. E mandam fotografias das crianças que são meus netos, mas não conhecem a avó, nem nunca me abraçaram, nem nunca brincaram comigo.

Os que ficaram por cá começaram a pouco e pouco a esquecer-se que ainda cá estou e já nem me lembro quando os vi pela última vez.

Sinto-me velha, cansada, sem memória e quase, quase com vontade de que isto acabe. Costumo dizer que devíamos nascer com prazo de validade e dou por mim, muitas vezes a pensar que já ultrapassei o meu.

Depois apareceu lá em casa um franganote a dizer-me que precisava de fazer obras na casa para a poder arrendar e que eu tinha de sair. Agora? Com a idade que tenho querem tirar-me da terra onde sempre vivi, das coisas que sempre vi, dos velhos que, como eu, se arrastam da casa ao mercado e do banco frente ao rio até onde o olhar alcança?

Que não, não era nada disso, que havia ali perto um prédio muito bonito e muito bem conservado, que a renda era muito acessível e que poderia continuar a olhar o mar e as ondas revolteando-se pela terra adentro.

Por cá apenas tenho um sobrinho que está a viver e a trabalhar no Algarve. Ele até queria que eu fosse viver com ele. Mas eu posso lá deixar de sentir os cheiros, os sabores, as cores desta terra que me viu nascer e crescer.

Não, isso não quero. Talvez ele possa vir cá a cima, de vez em quando.

E foi assim que, num dia de nevoeiro, deixei a minha terra envolta em neblina, num nascer do sol que mais parecia um cálice de vinho do Porto a derramar-se por entre o céu e o rio. Levei comigo uma lágrima a cair-me lentamente pelo rosto e a canção sofrida que sempre ouvi a minha mãe cantar.

Felizmente deram-me um 2º andar, ou melhor, de início até queriam que eu fosse lá para o 6º mas, com alguma sorte, a minha atual vizinha do lado, que é um encanto de rapariga, já não me recordo como, pôs-me a viver ao lado dela. E não é que nos damos muito bem?! Às vezes faz-me o favor de lhe ficar com a gata que, queiram ou não, é uma companhia excelente. Claro que eu lhe dou de comer e mimo-a muito. Mas em troca ela roça-se pelas minhas pernas, pede-me festas, deita-se ao meu lado e, às vezes, salta para o meu colo e com a patita vai-me fazendo festinhas na cara.

Que bom, Sara, foi termo-nos conhecido.

Bom eu já tenho 75 anos, mas dou conta de tudo o que se passa por aqui. Eles falam numa carrinha preta, mas eu até acho que são duas e até apostava que uma é para transportar os vizinhos que trabalham aí numa casa que abriram e a que deram o nome de 3113. Ouvi dizer. Que eu, a estas casas, não vou. Acho que trabalham lá pelo menos três dos meus vizinhos, mas o trabalho que eles fazem não é, nem de longe nem de perto, o que eu fazia, lá na minha terra. Por aqui não há galinhas nem cabras para cuidar, não há couves nem terra onde as plantar. Temos de comprar tudo no mercado. E aí é que está o problema: comprar é fácil, é preciso é ter com quê.

Bem, outro dia, houve um fogo aqui no prédio e vejam bem que foi o Euclides que pôs as cuecas no micro ondas a secar. Onde já se viu uma coisa destas? E depois acho que a Benevides apareceu, toda nua, e correu o pessoal que os tinha ido avisar de que saia fumo pela janela lá de casa. Doidos é que eles são. Ou não serão. Eu é que não sou do tempo deles.

Há para aí uma coisa que me anda a intrigar muito: veio uma Margarida para o 1º andar direito, mesmo por baixo da minha casa, que tem ar de andar a espiar qualquer coisa. Mas, sinceramente, se for alguma coisa para fazer mal à malta nova como é isso das drogas, ela que descubra depressa para meter esta gente na ordem. Bem nos bastam os dos bancos que me roubaram as minhas economias que lá tinha e que nunca mais cheguei a ver nada. E depois ainda me vêm dizer que têm Alzheimer. E eu, o que tenho? Uma reforma que mal dá para a renda da casa e pouco mais.

Outro dia esteve cá o meu sobrinho, o Lourenço e a Sara veio cá a casa pedir-me para ficar com a chave dela porque iam lá arranjar os canos da água. Foi o meu menino que foi à porta e conheceram-se logo. Acho que até engraçaram um com o outro.

Depois, o meu sobrinho, que sabe que ela trabalha nessa coisa dos computadores… bem eu não sei como é, mas ela trabalha só a falar para o computador. Se eu fosse mais nova havia de aprender também. Mesmo assim ainda gostava de escrever uma carta e mandar para os meus filhos a dizer-lhes que já sei escrever num computador.

Veem como estou velha? O que eu queria dizer era que o meu menino ofereceu à Sara alojamento no Algarve para ela passar umas férias. E desatei a falar em computadores.  E não é que ela aceitou?!

Oxalá se entendam bem. Gosto tanto dos dois. E fazem um par tão bonito. Vocês haviam de gostar de os ver.

No fim do ano houve uma festa na garagem para nos conhecermos todos, mas eu não pude ir porque estava com covid. Vá lá, vá lá que tinha apanhado as vacinas todas senão ainda ia parar ao hospital, mas não estive muito mal. Só não fui porque tive receio de lhes pegar.  a minha vizinha d0 6º andar, a Estelinha, foi-me lá levar um pratinho de cozido e um arroz doce que me soube que nem ginjas.

O que mais me preocupa são os vizinhos que ainda não conheço bem e aquele da cadela que anda sempre a passeá-la a desoras e que desconfio que está feito com o David no negócio da mercedes e das drogas. Enfim, isto são só suspeitas. Mas lá que é estranho é. Quem não tem muito que fazer tem que pôr a cabeça a pensar senão fica tolinho num instante e isso era o que eu não queria que me acontecesse.

Olhem meus amigos e sabem que mais? Estou a ficar com sono e tenho que ir descansar porque o Lourenço telefonou-me e diz que vem aí amanhã e traz a Sara. Vamos lá ver que novidades me trazem. Ficava tão contente se eles se entendessem…

 

Albertina Vaz

1 comentário:

Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!