06/03/23

Estendais - Capítulo 13

 


Bessa, 8º dto.

 

- … E o que é o prédio onde vim cair? Um cofre anacrónico que guarda uma dúzia de preciosas pessoas irrepetíveis em iminente risco de vida gentrificada? Uma estante, sendo aceite que cada pessoa é um livro e estes estão para aqui empilhados em completo desgoverno e ordenação? Um depósito?! Onde vamos por esta malta toda - perguntaram “eles” -, sem eira nem beira e futuro incerto?

- Onde está o sal?

- Quando venho de fora e olho o molosso teutónico que me guarda. Ó da guarda... Paro. Contemplo. E como a coisa não tem nada de belo além da imponência granítica e umas quantas janelas iluminadas que lhe dão alguma graça e colorido, penso num velho corpo moribundo, com órgãos caducos, veias endurecidas, pulsar irregular. Não é bem contemplar. É mais, considerar a coisa distópica na cidade. Só se contempla o belo, o restante constata-se.

- E para beber?... O que há para beber?...

- Quando escurece tudo está calmo e ninguém a circular, meto a chave na porta, o trinco eléctrico dá-me as boas-vindas com um estampido alarmante, a mola amortecedora estala em dilacerantes espasmos de pavor, e sigo às escuras de dedo em riste até ao botão do elevador, que passa a piscar. Será de alegria? Este elevador é para submarinistas que sabem que a superfície pode ser uma miragem quando se fecha a escotilha. Carrego no oitavo. Fecha a porta e somos vários todos eu. Viajo deglutido no esófago e se morrer vou na companhia habitual.

- Onde deixaste a fuba e o óleo de palma? Procuro, procuro, e.

- Chato! E chego ao patamar. Nunca me cruzo com ninguém. Nem aqui, onde os vizinhos da frente são tão circulantes e omnipresentes. Nada… galinha gorda, recomendou a Fernanda…

- Fecha a porta que sai o quente…

- Quiabos, folha de mandioca, gindungo… não é fácil… a vida está pela hora da morte. Os tomates que são dos nossos, e a cebola que é espanhola, são mais em conta, mas o resto…, e a salsa, a salsa também é nossa, diz no pacote, assim como o alho. A cozinha! Ah! Pois-é. Se o elevador é o esófago, a cozinha é a mandíbula e a porta da rua lá em baixo a outra ponta do tubo digestivo.

- Onde estará aquela panela alta com testo de vidro?...

- As linhas eléctricas, cabos nervosos chamados neurónios; os canos fluentes, afluentes, e deferentes, do processo biliar e outros vitais líquidos; as pessoas como órgãos necessários ao funcionamento geral, mas mal; a estrutura secular como o todo muscular... é um ser vivo e o que está para lá da porta da rua não interessa a ninguém.

– E a cadela?

- Passou a ladrar sempre quando que me sente no elevador…

– E a panela

- Não sei o que se passa hoje, não se ouve ninguém. Nem os tresloucados da frente dão sinal de vida. Tresloucados… tresloucado sou eu que estou agonizado, eles são vida! E de mim, saudades. Cá está!

- E que tal se saíssemos logo à noite?

- Era. Pois era. O depósito está vazio e só recebo para a semana. Está ali arrumadinha e muito escondidinha à espera da noitezinha.

- Mexer um pouquinho… vamos lá provar… bom, sal q.b.

- Habituamo-nos a tudo. Até a sermos invisíveis. Ver quem passa sem mexer a cortina; ficar a saber os movimentos ondulatórios dos vizinhos, os pendulares também; com quem andam e com quem vão; quem vive sozinho ou acompanhado. Famílias não há. Para estes prédios só vêm os fim-de-carreira, embora passem a vida a disfarçar. Podia-me tornar num criminoso em série que ninguém dava por isso. Mas era uma sangreira… é melhor não…

- Ficou-te de quando eras polícia. Menos a sangreira, claro está. Agora, deixar refugar…

- Estava a brincar. Talvez façam o mesmo comigo quando saio. Quem sabe? Talvez não ande assim tão incógnito como penso e pode até trazer-me problemas. Há para aí vizinhos que são capazes de espiar por passatempo e até, farão isso?!, anotar a matrícula, hora de saída e de chegada. Os condóminos têm tendência a fazer coisas estranhas e às escondidas… nunca fiando… nunca deixo contactos.

- Hora de meter a galinha! Mexer um pouquinho envolvendo… lume médio… aguardar…

- Vou abrir uma garrafa daquelas. Esta noite em particular não são noites em geral e se tenho de ficar aqui preso, tenho direito a pomada melhorada.

- Onde está ela?… onde está ela?… e a fuba, faz-se, ou é melhor não?

- Não. Fuba não, que vai sobrar muita. Tenho ali um arrozinho branco que acompanha bem.

- A cadela! Olha!, Olha!... Lá vai ela a descer a rua. Não tomam conta e depois é o diz que disse. E logo num domingo à noite que não tem ninguém na rua…

- Já vou… já vou… não se pode abrir uma reserva que chega logo gente à porta.

- Boa noite…

- Boa noite?...

- Nós somos os vizinhos da frente, Benevides e Euclides, muito prazer. Nós aqui no prédio, quase todos, a bem dizer, uma vez que já vivemos aqui à doze capítulos, estamos a entrar no décimo terceiro, não sei se está a ver, “O 13”, pensamos em fazer uma festa num clube restrito de uma vizinha nossa, ali na outra rua, festa alegre, demorada pela noite fora, coisa de adultos, não sei se me faço compreender, muita luz, animação, estamos vivos e activos, não é assim? E por isso, bem escolheram-me a mim, a nós!, para falar consigo uma vez que, bem, somos os vizinhos da frente e, não leve a mal, mas, parece que o senhor ainda não conviveu com ninguém, vive sozinho, isto não é espiar o senhor entenda-me mas, passa nos seus solilóquios e nem dá por nós, não lhe conhecemos visitas nem familiares, o senhor não leve a mal mas não precisa de viver assim tão… tendo-nos por perto, não é assim? Por isso, enfim, todos nós precisamos de companhia, bem, feitios são feitios entendamo-nos, mas; era isto. Deixe-me então, eu e aminha mulher!, convidá-lo, bem, os outros vizinhos também, que o convite é de todos, convidá-lo para a “Festa do Capítulo 13”, foi assim que pensamos chamar-lhe, no próximo sábado; não é o dia mas há vizinhos que trabalham, sabe como é, e. O senhor aceita o convite? Desculpe, nem o cumprimentei. Ó Benevides, dá aqui um beijinho ao senhor vizinho? Senhor vizinho?...

- Ah!... Bessa-José Bessa… um prazer…

- Ah! Está bem-apanhado. Como o James, não é? Ah-ah-ah…

- Pois. Pode ser.

***+***

- Quem era?...

- Os da frente. Vieram convidar para uma festa. Alegre, luminosa, demorada, coisa de adultos. Parece que foi o que ele disse.

- E vamos?

- Disse-lhe que sim. Mas primeiro a moamba. A garrafa já respirou?

- Vai buscar os copos enquanto mexo um pouquinho…

- Mesmo assim não sei se vá. Sempre posso dar uma desculpa e…

- Vamos sim! Eu aqui não só narratário, também tenho os meus quereres, a vida acontece lá fora!, ouviste, lá fora! Estou farto de estar sozinho e de cozinhar sempre para o mesmo. Aceitaste e foi a tua obrigação. Obrigação? Salvação! Para mais, «passa nos seus solilóquios e nem dá por nós» ou pensas que não ouvi? Há quanto tempo não consegues um bom diálogo, hein? Uma conversa. Há quanto tempo não conversas com alguém de carne e osso, hein? Passas a conviver, deixas de andar para aí a fazer diabruras para passar o tempo. Pareces um catraio. Não! Vais, e vais mesmo!

- Pronto! Pronto! Também não precisas de falar assim… vamos então…

- Olha! E sabes que mais? Sempre vou fazer a fuba. Vais convidar o casal para jantar cá em casa, e assim a comida já não sobra para quinze dias. Vai, vai, quando chegares eu meto a mandioca, vou abrir mais uma garrafa.

- Boa noite, outra vez. Desculpe-me estar a incomodar, e talvez até já seja fora de horas mas, vocês foram tão simpáticos e, bem, eu estou ali a acabar uma moamba à moda da fazenda, e, vai ser muito para mim, e ainda tenho pirão para fazer e duas garrafas de uma reserva especial… se quisessem dar-me o gosto de aceitar o convite para jantar, e, a minha companhia…

- Eles Vêm?

- Vêm. E vão trazer a Fernanda que como dona da receita vai dar os retoques finais.

- A Fernanda?! Como assim, a Fernanda?! Disseste-lhes que a conhecias?!

- Não. Mas disse-lhes ela. Vai buscar aqueles copos para Porto, os de cristal, ouviste?!, que o vizinho vai trazer um velhíssimo de particular e a ocasião merece. Quem sabe tudo mude, e para melhor…

- Estás a pensar no futuro? Estás com ideias…

- Mas qual futuro! Homessa! Que é isso de futuro? O futuro é o que está para vir e está sempre a diminuir. Venham os copos que vou buscar as cadeiras, o importante é o momento e este, quero-o demorado. Quatro cadeiras numa noite de domingo.

 

José Bessa

2 comentários:

  1. Bessa era o apelido de dois irmãos companheiros de grandes borgas em Coimbra e na Figueira.
    Gente boa.

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  2. Muito bom! Quanta imaginação!

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