Fotografia: João J. A. Madeira |
Adriano
Tremem-me as pernas. Talvez
pelo derradeiro esforço a que as exponho, antes que os anos futuros, se vierem
a existir, as dêem como incapazes. 53 anos. Cinquenta e três. Não é um número.
São não sei quantas letras da vida que fiz minha. Talvez, lá de cima ou seja lá
de onde for, Paula me esteja a ver e a repetir “só tens ideias de garoto”. E eu
sorrio. Tu eras o contraponto de realidade àquilo que sempre fui: uma criança
grande. Por vezes, ingénua; quantas vezes, irresponsável. Uma perpétua criança
que te amou, Paula. Mesmo com essa diferença de feitios, a distância que vai
dos “pés na terra” à “cabeça no ar”, minha imagem de marca. O meu mundo era
feito de sonhos, de fantasias impossíveis (seriam?), de segredos também, porque
todos os têm – não terias os teus? – e quantas vezes, deitado a teu lado, eu
vagueava por recantos deixados para trás, cruzamentos de vidas como se de ruas.
Não me arrependo da que escolhi, mas ninguém me pode impedir de pensar nas que
deixei. E, há 42 anos, houve um rosto feito de uns olhos tão negros como os
cabelos que ondulavam em corridas de corredor de um Convento. E de um sorriso
luminoso, de dentinhos alinhados numa tão cintilante alvura que acendia os
próprios olhos. Sabes da história, contei-ta. O que não te contei foi que esse
rosto me acompanhou durante toda uma vida construída por nós. Uma espécie de
adultério? Talvez. Não sei. Muitas vezes, ao recordar-me dela, me questionava
por essa estranha lei que impede alguém de amar duas pessoas. Amei-te, sim,
verdadeiramente. Mas que verbo se aplicará a um rosto que não se esquece e nos
acompanha na eternidade limitada da existência? Ela era de longe, tu vivias
aqui e, em lugar de partir, contigo fiquei até chorar eu a tua irreversível
viagem. Mas questiono-me: estará, então, o tão cantado amor, circunscrito a uma
condição geográfica? Não, não está. Não pode estar. Acabo – acabamos, eu e a Estrela
– de o confirmar.
Tu, Paula, eras quem
eu não tinha; ela, Estrela, é o que eu sou. A mesma inocência, o mesmo desejo
de aventura, a mesma ligeira irresponsabilidade. Que, só agora, a frio, me
enche de remorsos. Porque eu sou um homem; ela, uma mulher. E é preciso que
renasçamos num mundo que não este, para que um homem que caminha livremente por
campos ou veredas, cidades ou vilas, seja igual a uma mulher que se atreve a
andar entre matas cerradas ou repousa à beira da estrada. Tu nunca aceitarias
este desafio, Paula, que a Estrela aceitou. E, mesmo assim, eu amo ambas. Mas
tu repousas agora na almofada das penas choradas pelos vivos, enquanto ela… Ela
correspondeu, como criança ingénua, ao pedido tresloucado que lhe fiz. Sentir-me-ia
irremediavelmente culpado, se algum mal lhe acontecesse.
Como será ela, tantos
anos depois? Um corpo moldado pelo tempo? Uns sulcos rasgados nas faces que as
angústias, também os sorrisos, terão aberto? Não sei, há muito que as marcas de
água que os anos carimbam deixaram de ser importantes para mim. Eu, que não sei
rezar, somente peço a Quem de rezas se alimenta, que a guarde. Até Mafra.
Depois… Os “depois” de uma história serão sempre uma sucessão de “amanhãs”
consecutivamente renovados.
Há quase um dia que
caminho. A pé e de mochila às costas, evitei estradas e, munido de uma bússola,
fui encetando uma diagonal até de novo encontrar o mar. Tenho o espírito de um
jovem, mas o meu indomável corpo não o acompanha. Doem-me as pernas. E ardem-me
os pés, que refresco agora num ribeiro enquanto escrevo a primeira folha do que
desejo vir a ser um diário. O meu objectivo era São Marcos da Serra, para, no
dia seguinte – assim o físico o permitisse – alcançar as praias alentejanas. E
essa foi a minha primeira parvoíce. A de sair pela manhã, esquecendo que no
Algarve o sol não se condói com romantismos bacocos; e queima. Matei a sede por
cafés que ia encontrando e quase – quase – adormeci sob latadas que neles
encontrava, mas tinha um objectivo: o de que, no primeiro dia, as minhas pernas
resistissem a cerca de 5 quilómetros percorridos em cada hora. Por não ter como
medi-los, não sei se os cumpri, mas esforcei-me – oh, se esforcei – a compensar
nas planícies e nas descidas as subidas que me diziam que eu era louco, uma
criança grande que não havia maneira de crescer e assentar. Num desses cafés,
chegada a hora, muni-me de mantimentos para quando me chegasse a sede e a fome
e fiz as minhas refeições. Bem medidas, para alimentar os músculos, mas frugais,
para que não os relaxasse.
Em Faro, vira o sol
nascer detrás de casas ainda adormecidas – tão diferentes já das que na
infância me acompanharam – e sobre os tejadilhos dos carros que gradualmente
iam enchendo as avenidas pejadas de olhos focados em lentes fotográficas e
palavras ditas numa invasora algaraviada. Foi ele, esse mesmo sol, testemunha
da minha caminhada e companheiro indiferente às ofensas que, transpirado e
moído de cansaço, lhe lancei. Mas o mesmo que, ao despedir-se, me presenteou
com um quadro pintado de cores quentes sobre a paisagem algo agreste que, lá de
baixo, parecia querer abraçar-me no alto de um pequeno monte. E lamentei não
ser poeta. Definir por frases harmoniosas a beleza que a natureza me concedia e
sempre havia concedido sem que eu soubesse vê-la. O silêncio musicado pelo
sopro do vento, pelo cochichar de pássaros que em raras árvores se abrigavam,
pela erva rasteira que parecia abrir-se aos meus passos. E pensei: para quê
ser-se poeta, quando o poema se escreve por si e à nossa frente?
Quando a noite caiu,
em escuro de lua cheia, ousei, finalmente, ser racional. Descansar, dormir, era
preciso. Contra a ânsia de chegar. A primeira atrasaria a segunda, mas a
segunda nunca seria possível sem me servir da primeira. E agora lentamente, em
busca de um objectivo mais imediato, procurei um local que pudesse acolher-me
por horas na noite iluminada e amena. Não sabia onde estava. Quando de dia,
havia visto esparsos casarios aos quais passara de largo, mas agora parecia-me
convidativa aquela reentrância entre pedras perto de um inesperado laranjal.
Haveria uma casa perto, certamente, que não vislumbrei. Deixá-los estar, a quem
quer que lá morasse. Também eu não gostaria que um estranho me batesse à porta,
por aquelas horas e vindo do nada. Colhi, por isso, uma laranja ainda pouco
madura e recolhi-me por entre pedras.
E adormeci.
Muito mais suavemente
que o meu súbito e brusco despertar perante uma luz que me feria os olhos. Dei
um salto.
— Que queres daqui,
filho da mãe? Roubar-me as laranjas, cabrão? Dou-te um “afegão de ganas” que
nem sabes de que terra és.
Com as mãos protegi-me
da luz intensa, o coração assustado a bater lesto por tão tumultuoso acordar. Gaguejei
que não, que não queria laranjas nenhumas. Somente dormir. Mas as palavras
morreram-me a meio quando, desviada a lanterna, vi o cano de uma espingarda
apontada a mim.
— Sim, sim! Já ando
“almariade” com o vosso “lambaré”. Deveis de pensar que sou “cabeça d’azinho”,
é o que é! Mas não me venhas cá “besoirar aos ouvidos” qu’é num instante que
trato de ti.
— Ouça, eu explico.
Estou sozinho e a pé. Quantas laranjas conseguiria levar nos bolsos? Três?
Quatro?
E vi o cano da arma
inclinar-se.
— Por favor, deixe-me
explicar – repeti num lamento, ao ver que o homem parecia querer ceder.
Ficámos por breves
instantes em silêncio. Por fim, pareceu-me ouvi-lo cuspir para o lado.
— Bom! “Limpa lá o
saco”.
E contei. Tudo. Muito
resumidamente, atabalhoadamente também, mas tudo.
Quando por fim me
calei, disse-me que saísse das pedras. Aquilo não era lugar onde alguém
dormisse. E quando me levantei, fiquei muitos centímetros acima de um velho corcovado,
mas tronco forte sobre pernas arqueadas. Os lábios moviam-se, como se
mastigasse, enquanto parecia pensar.
— Sabe? Essa história
que “meceia” me contou é tão estúpida que só pode ser verdadeira. Quem quisesse
mentir-me, nunca conseguiria inventar uma coisa assim. Venha daí.
E depois de
conversarmos um pouco, histórias cruzadas entre beijos a cálices de medronho, o
velho Afonso conduziu-me a um quarto e a uma cama há anos feita, nas palavras
dele, na espera de uma filha que ficara de voltar, mas… – e os olhos
desviaram-se dos meus. Abracei-o. Amanhã, levantar-me-ia pelo nascer do sol.
Quando o fiz, não quis
incomodar-lhe o sono. Mas quando abri a porta da rua, ele esperava-me lá fora,
com um saco de laranjas.
E disse-me:
— Sabe? “Nã sê” que lhe diga. Essa sua história… Também eu me levanto, há muitos anos, pelo nascer do sol. A minha tristeza é não ter, como “meceia”, alguém que espere por mim.
João
J. A. Madeira
Não foram laranjas, foram nozes.
ResponderEliminarE foi uma das minhas grandes lições de vida.
Boa semana