04/08/23

Caminhos e Encruzilhadas - Introdução


 

Fotografia: Cristina Torrão 

Vou a pé de Viana até Mafra!

Devo ter enlouquecido.

Enfim, boa da cabeça já eu não andava, desde que me divorciei do Marcelino. Foi um golpe duro, fugiu-me o chão, quando ele me comunicou querer o divórcio por, nas suas palavras, “ter encontrado outro amor”. Depois de vinte e cinco anos de casamento! E tudo coincidiu com a saída de casa da Ana, a nossa filha, que entrou para a Faculdade, em Vila Real. Dois anos depois de o nosso filho Pedro ter ido para o Porto, pelo mesmo motivo.

No fundo, sabia que algo não ia bem com o meu casamento. Mas é daquelas coisas que ignoramos. Fazemos de conta estar tudo nos conformes, tão grande é o desejo de mantermos a vida que conhecemos.

De repente, fiquei sozinha em casa. Com cinquenta e dois anos. Senti-me tão transtornada, que estive três meses de baixa, um tempo em que vivi rodeada de trevas, num poço, do qual não encontrava saída. Que mais me resta, depois de o meu marido me ter deixado e os filhos terem ido à sua vida? Quem pega numa mulher da minha idade? Cheguei a considerar enfiar uma embalagem inteira de calmantes pela goela abaixo.

O regresso ao meu trabalho na secretaria do liceu foi difícil, no início, mas acabou por compensar. Tinha montes de tarefas a cumprir, que, afinal, me distraíam. E nunca pensei fazerem-me tão bem as conversas com as colegas. O pior era o regresso à casa vazia. Em todos os cantos, eu via cenas da minha vida: os filhos ainda pequenos, as dificuldades, mas também as alegrias, as festas de aniversário, os Natais, as Páscoas…

Era como se tivesse duas vidas: durante o dia, o trabalho e as colegas faziam-me esquecer a miséria. À noite, a solidão tomava conta de mim, deprimia-me, tornava a ter pensamentos lúgubres. Por vezes, ainda considerava ir dar um passeio, em vez de ficar enfiada em casa, a devorar bolachas e chocolates. Mas uma grande indolência colava-me ao sofá, a ver telenovelas e a sonhar com vidas que nunca teria.

Até que chegou aquele dia…

Foi pouco tempo depois de ter completado os cinquenta e três. A imagem da solidão do meu apartamento martirizou-me durante toda a viagem de autocarro, no regresso do trabalho. Abri a porta do prédio a pensar na embalagem dos calmantes. Abri a caixa do correio por hábito, não me interessava o seu conteúdo.

E dei com a carta!

O Adriano! Não comunicávamos há cerca de três anos, desde a altura em que ele me informara do nascimento do neto. Aquela vaga ideia de que o meu casamento não tinha futuro fez-me invejar a sua felicidade de avô. Enviei-lhe uma mensagem de parabéns e decidi deixar de contactar com ele.

Contudo, por altura do meu divórcio, perguntei-me se o devia informar. Acabei por o fazer, numa curta mensagem, no fundo, um pedido dissimulado de ajuda: “Divorciei-me. Estou a tentar refazer a minha vida, mas não sei como”. Fiquei a aguardar a sua reação, ansiosa como nunca.

Mas o Adriano não respondeu.

E agora, passado mais de meio ano, escrevia-me uma carta?

Enquanto subia no elevador, fixando o sobrescrito nas minhas mãos, vivi um momento surreal.

Viajei no tempo. Vi o Adriano literalmente à minha frente. Senti a mesma vontade de o abraçar, como naquela tarde, há mais de quarenta anos.

A visita ao Convento de Mafra é uma recordação que me tem acompanhado ao longo da vida, mas nunca tornara a sentir tão intensamente a cumplicidade e o carinho criados entre nós, como naquele momento.

Tínhamos onze anos. Eu estava chateadíssima, no meio do grupo de adultos, um guia a dizer coisas que não me interessavam para nada. Já tinha reparado no único miúdo da minha idade e, de repente, dei com ele a meu lado, a oferecer-me um rebuçado. Os meus pais sempre me diziam para não aceitar nada de estranhos, mas o sorriso dele encheu-me tanto a alma, que aceitei. Depois de tirar outro rebuçado do bolso para ele próprio, perguntou-me o nome, disse que se chamava Adriano e que morava em Faro. Eu disse que era de Viana, falámos da escola, acabámos de chupar os rebuçados, ele tirou mais dois do bolso, já nos sorríamos e conversávamos como se fôssemos velhos amigos. Até que… reparámos que os adultos à nossa volta tinham desaparecido.

Fomos à procura deles pelos corredores e salões, mas não os encontrámos. O mosteiro parecia um labirinto enorme e eu estava prestes a chorar, quando o Adriano, para espantar o medo, me chamou a atenção para uma figura num quadro:

- Já viste aquela cara de sonso? Parece o padre da nossa freguesia.

Desatei às gargalhadas. Começámos a examinar todos os quadros daquela sala. Comparávamos cada figura a alguém que conhecíamos, ou inventávamos uma história estrambólica, como só as crianças sabem fazer. Passámos a outras salas, fazíamos troça das estátuas, dos móveis, de tudo o que encontrávamos. Já não sentíamos o tempo passar. Até que os nossos pais, acompanhados do guia, deram connosco.

Levámos raspanetes, que mal ouvimos, trocando olhares de cumplicidade. Era como se algo de transcendente nos unisse e protegesse. Enquanto nos dirigíamos à saída, os nossos pais acabaram por se embrenhar numa conversa e, na despedida, até trocaram endereços, com promessa de se visitarem, já que cada família vivia numa zona do país desconhecida da outra.

Pensei no Adriano semanas a fio. As visitas nunca se concretizaram. Mergulhámos na nossa vida: as aulas, os colegas, os convívios familiares. E a recordação de Mafra cada vez mais longe. Porém, cinco anos mais tarde, recebi uma carta dele. Encontrara o endereço esquecido numa qualquer gaveta lá de casa e resolvera escrever-me. Respondi-lhe e começámos a corresponder-nos. Éramos adolescentes, vivíamos na ilusão de concretizar o namoro. Mas não tínhamos idade, nem posses, para fazermos viagens sozinhos.

A vida seguiu o seu rumo. Casámos e tivemos filhos. Mas nunca perdemos o contacto, que passou a ser feito pelo telefone. Tornámo-nos confidentes. Em vez de paixão assolapada e juras de amor, trocávamos alegrias e tristezas, problemas e sucessos, tanto da nossa vida familiar, como da profissional.

Havia agora, porém, aquela lacuna de três anos, interrompida pela minha mensagem, à qual o Adriano não respondera. Mal entrei em casa, abri a carta:

 

Querida Estrela,

Poderás estranhar que tenha regressado a esta maneira de comunicar, num tempo em que já ninguém escreve cartas, mas tenho muito para te dizer. E, acima de tudo, uma grande necessidade de despejar o que me vai na cabeça, sem ser interrompido.

Espero que te encontres bem e que já tenhas superado o teu divórcio.

Desculpa não ter respondido à tua mensagem, mas vais compreender porquê.

Na verdade, não ando nada bem, depois da morte da Paula. Sim, ela faleceu, há quatro meses. E eu ainda não encontrei novo rumo. Foram dois anos muito desgastantes, desde a descoberta da sua doença, até à sua morte. Tempos em que ganhávamos esperança, para, logo a seguir, virem desilusões que nos cortavam a alma à faca. Não tenho palavras para descrever os últimos meses da sua vida, quando sabíamos já nada haver a fazer. Não desejo tal inferno a ninguém. Movemo-nos como robôs teleguiados, ou zombies, até chegarmos ao ponto de desejarmos a morte de quem amamos, por não suportarmos o sofrimento atroz.

Desculpa estar a incomodar-te com isto. Mas penso que assim compreenderás melhor porque não respondi à tua mensagem. Chegou precisamente no momento de ponto sem retorno. Eu não tinha cabeça para nada.

Depois de a Paula se ir, as coisas não melhoraram muito. A casa vazia, as recordações, a solidão. O Rui bem insiste em que eu vá para Lisboa, a fim de ficar perto deles, onde poderia distrair-me com o neto. Mas que queres? Não consigo sair de Faro, onde nasci e vivi toda a minha vida. Talvez seja um erro, mas não encontro ânimo para a mudança.

Pensei, várias vezes, em acabar com tudo, em desaparecer para sempre. Um dia, porém, embora contrariado, arrastei-me mais uma vez até à Biblioteca Municipal. Como sabes, sempre gostei de ler, seja o que for: livros, jornais, revistas… E, como nunca nadei em dinheiro, habituei-me a ir à Biblioteca, embora, nos últimos tempos, raramente o fizesse.

Nesse dia, li, numa revista, um artigo que me ficou cá a matutar na cabeça: o relato de alguém que, numa altura de crise na sua vida, resolveu peregrinar até Santiago de Compostela. O que mais me impressionou foi a mudança que a peregrinação operou nessa pessoa.

Interessei-me pelo assunto e procurei mais informação. E deixa que te diga: é impressionante o número de gente que, atualmente, opta por fazer uma viagem dessas. As peregrinações estão mesmo na moda. Quem diria, num tempo em que ninguém quer saber da religião. E todas essas pessoas se declaram satisfeitas por terem tomado tal decisão. Não negam as dificuldades, o esforço físico, o desespero, muitas vezes, com um calor insuportável, ou chuvadas torrenciais, ou o facto de não encontrarem um lugar aceitável para dormir, depois de um dia de grandes canseiras. Por outro lado, dizem que caminhar é um dos melhores meios para a meditação. Sobre o passado, sobre o futuro, sobre aquilo que realmente queremos. Para não falar das experiências que se vivem, dos encontros ocasionais. Uns agradáveis, outros nem tanto. Mas uma coisa parece ser consensual: ninguém regressa como era antes de partir. As caminhadas parecem ajudar as pessoas a encontrarem-se consigo próprias, por vezes, a dar um novo rumo às suas vidas.

Passado um par de semanas embrenhado neste assunto, constatei que me sentia melhor. Decorriam finalmente dias inteiros sem pensar no horror que fora a doença e a morte da Paula. E sem sentir a solidão.

Resolvi fazer também uma caminhada. Mas para onde? Santiago de Compostela fica a oitocentos quilómetros de Faro, longe demais para um principiante. Pensei em Fátima, mas não me pareceu boa ideia ir a um local onde tantas vezes fui com a Paula, o nosso Rui, os meus pais e os sogros, quando ainda eram todos vivos.

Desanimei.

Num serão, adormeci em frente à televisão e vi-me no Convento de Mafra, contigo, a correr pelos infindáveis corredores, a rirmos como perdidos das figuras e móveis expostos. Tornei a ver os teus lindos olhos postos nos meus e senti uma felicidade de criança, que afasta qualquer medo. Acordei, de repente, e, num primeiro momento, a felicidade diluiu-se numa tristeza infindável, ao ver-me sozinho, na minha sala, em frente da televisão.

Mas logo se me fez luz.

O Convento de Mafra! Nem mais nem menos. Contigo! Um reencontro, ao fim de tantos anos.

Não tens vontade de experimentar?

Também, naquela altura, nos encontrávamos perdidos e angustiados e encontrámos conforto um no outro.

Não sei se é esperar demais desta ideia. Mas isto aqui, sozinho e sem rumo, não é vida. Apetece-me dar este passo para o desconhecido. Não planear nada, apenas o ponto de partida e o de chegada. Tudo o resto se verá. E, quem chegar primeiro ao Convento de Mafra, espera pelo outro.

Alinhas, Estrela? Espero que sim. Vamos combinar tirar as nossas férias no mesmo mês e fazemo-nos ao caminho. Tens mais 100 quilómetros do que eu, mas lembrei-me que podias ir até ao Porto, de carro ou de comboio. Aproveitas para passar um dia ou dois com o teu filho e partes daí para Mafra. Tu é que sabes, é só uma ideia. Se lá chegar primeiro, prometo que espero por ti tantos dias, como quantos os que restarem das minhas férias.

Deixemos a surpresa e o inesperado surgirem nas nossas vidas, mesmo que o resultado não seja nada daquilo do que pensamos. Nada temos a perder, querida Estrela.

Conto contigo!

Beijinhos

Adriano

 

                                                                            Cristina Torrão

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