26/08/23

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 3

 


Adriano

 

Como haveria eu de carregar o saco das laranjas caminho fora, se me esperavam quilómetros e quilómetros até chegar ao destino combinado com a Estrela? Se logo no início do segundo dia já as pernas se encarregavam de me lembrar que me tinha metido numa loucura de adolescente? E, no entanto, creiam-me, raramente fui pessoa de ceder a fraquezas, mesmo no período conturbado da doença da Paula. Lutei como um danado, ao lado dela, engoli lágrimas e dores, disfarçadas, quantas vezes, em sorrisos magoados, querendo acreditar na ilusão resiliente da vitória. Pensei deixar o saco intacto numa esquina do caminho. Talvez alguém que passasse levasse as laranjas para saciar a sede dos seus filhos. Mas, na verdade, algo me dizia que não devia fazê-lo, tendo em conta o contexto em que elas tinham vindo parar às minhas mãos. Sentei-me na esplanada do primeiro café que divisei e pedi um chá. Do saco saía um cheirinho a campo, que me agradou.  Meti a mão para pegar numa laranja e os meus dedos roçaram num papel meio-amarrotado pelo contacto com a fruta. Sem muito entusiasmo, apanhei o papel, pensando que era algo deixado esquecido, no saco, pelo velho Afonso.  Mas desenrolei-o. E li. Quase estremeci de espanto.  Dizia: “a sua história perturbou-me. Tirou-me o sono, sabe? Tem aqui o meu contacto. Se lhe apetecer, ligue-me”. E pus-me a pensar naquele homem alquebrado, em fúria e de carabina apontada ao peito do intruso que ousara devassar a sua propriedade. Lembrei-me dos meus tempos de liceu quando a Professora de Literatura nos falava, cheia de um entusiasmo quase religioso, dos episódios mais empolgantes de Os Lusíadas: também o velho Adamastor, no seu corpo robusto e medonho, com aquela voz tenebrosa que lhe atravessava as barbas esquálidas, tentou reduzir a zero o nosso Vasco da Gama. E afinal, vencido o primeiro impacto, acabou por revelar o seu lado mais frágil, chegando ao ponto de, envergonhado, confidenciar as suas desgraças amorosas. Como eu havia gostado desta história! Cheguei mesmo a ter pena do pobre gigante, que, irremediavelmente e para sempre, a deusa amada transformara em pedra. Afonso era, neste quadro, a materialização do meu Gigante Adamastor. E eu tinha de penetrar nas profundezas das águas escuras que lhe amortalhavam a existência. E decidi marcar o número indicado. Do outro lado, uma voz cavernosa de Adamastor anunciava que estava à minha espera, ele e o seu gato Bonifácio, “que tinha simpatizado muito comigo”.

- “Gato Bonifácio?” - inquiri. Mas então, Afonso/Adamastor também era o avô do Carlos da Maia? 

Um sorriso culto atravessou o canal de comunicação e pareceu-me ver-lhe a ruga da testa desanuviar-se. 

- Olhe, amigo, vou pedir-lhe o que não devia pedir. Mas aí vai: volte para trás. Quase posso afirmar que não calcorreou mais do que dois quilómetros. Não é muito. É que fiquei cá com uns macaquinhos na cabeça, sabe, e preciso de clarificar uns pensamentos e algumas desconfianças.

Estrela que me guias, perdoa se vou fazer-te esperar mais umas horas até nos encontrarmos fisicamente. A menina de 11 anos de outrora tem, com certeza, essa capacidade, a de esperar para que os nossos sonhos se concretizem. Vou, pois, voltar para trás. Não seria delicado da minha parte ignorar este pedido. Não vou desiludir o meu Adamastor, nem o gato Bonifácio. 

Quando cheguei ao recinto da laranjeira, Afonso estava sentado numa das pedras que me tinham servido de almofada na noite anterior. Segurava uma moldura com uma fotografia já bastante esbatida pelo tempo.

- Vê este homem de grandes suíças? E esta senhora de saias enormes, com uma criancinha sentada no seu colo?

- Vejo.

- A criancinha sou eu. Dizem que sou eu.

- Era um menino muito bonito...

- Também acho, perdoe-se-me a imodéstia.

- Mas...

- Pois, o drama começa aqui. Está a ver a paisagem em pano de fundo? É Viana do Castelo, Santa Luzia, o rio Lima...

- Não me diga que o Afonso é do Norte, que é de Viana... e, sendo assim, como veio parar a Faro?

- Não tenho memória do que me tirou do meu local de nascimento. Tinha uma criada já bastante velha, a quem eu comecei a chamar avó, que me disse, em jeito de segredo, que os meus pais embarcaram, numa noite chuvosa de Inverno, num paquete que os havia de levar ao Brasil. E eu fiquei aos seus cuidados. Com uma dor tão violenta no peito que quase não conseguia respirar. Passei noites inteiras a pedir a protecção do Menino Jesus, para que os meus pais viessem buscar-me. Esperei, esperei, até que desisti. Faro era, agora, a minha cidade. Mas a mágoa da orfandade ficou sempre enraizada no meu coração. Hoje, ao ouvir o relato da sua história de vida, tudo voltou com mais acuidade. Interrogo-me sobre quem sou. De onde vim, quem foram as pessoas que me antecederam, que genes herdei... Entende?

- Mas...

- Mas, de repente, vi em si a mão que me pode ajudar a traçar essa pesquisa e a aliviar, talvez, esta indefinição em que sempre vivi. Desde que fiquei sem a minha protectora, a minha doce ‘avó’, o meu chão social tornou-se resvaladiço. Quem sou, quem sou? Que mulher fantástica cuidou de mim, que meios financeiros tinha para custear a minha formação académica?  Respostas para estas questões nunca mas deu. Dizia: “um dia, meu amor, vou contar-te a tua história. Prometo-te que essa revelação será a minha prenda de casamento. Para já, não me faças mais perguntas”. E assim vivi, meu amigo, à espera do meu casamento, para me serem desvendados os mistérios das minhas origens. Mas a minha ‘avó’ não pôde realizar a sua promessa, porque um aneurisma se atravessou no nosso caminho, antes do meu casamento.

O velho Afonso estancou o discurso, como se a história do seu casamento estivesse envolta numa nuvem cinzenta de contornos enigmáticos. Tive vontade de lhe perguntar como conheceu a noiva, como foi a sua experiência conjugal, se vivia ali isolado por viuvez ou divórcio, quem era aquela filha por quem continuava à espera. Mas não ousei manifestar a minha curiosidade. Preferi esperar, eu também.

E depois de tossir um pouco, prossegue:

-  Espero que não me ache um tolo atrevido a aproveitar-se de lhe ter dado guarida.  Às vezes, é verdade que eu próprio me acho um desenquadrado da sociedade, um eremita antipático. Mas sou assim. E agora que o meu amigo se vai encontrar com essa tal de Estrela, quem sabe, talvez...Viana do Castelo de permeio...

- Sim, porque não? Vou tentar integrar na nossa aventura o que me pede. Mas vamos precisar de reunir alguns dados...

- Então, se não se importa, vamos entrar. 

E conduziu-me a uma saleta.

Reparei que, ao passarmos junto ao quarto onde dormira na véspera, Afonso desviou o olhar, como se alguém lhe espiasse os movimentos. E agora era a minha vez de me sentir intrigado. Que mistério pairava naquela casa, naquele quarto, que provocasse aquele mal-estar? Como interpretar as palavras de Afonso “tristeza por não ter quem espere por ele”, “uma filha que desapareceu e por quem ele espera indefinidamente”?

- Fale-me da sua filha, Afonso. Como desapareceu? E a mãe? Quem é? Onde está?

Não respondeu. Dir-se-ia que tinha envelhecido mais ainda naquele intervalo de silêncio. Dirigiu-se a uma cómoda, abriu uma gaveta, retirou uma caixa, que colocou em cima da mesa...

 

Albertina Fernandes

 

1 comentário:

  1. A cómoda fez-me recordar o meu avô materno.
    Estava lé tudo.
    E a cómoda ainda está na casa de Coimbra.
    Boa semana

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