Adriano
Como haveria eu de carregar o saco das
laranjas caminho fora, se me esperavam quilómetros e quilómetros até chegar ao
destino combinado com a Estrela? Se logo no início do segundo dia já as pernas
se encarregavam de me lembrar que me tinha metido numa loucura de adolescente?
E, no entanto, creiam-me, raramente fui pessoa de ceder a fraquezas, mesmo no
período conturbado da doença da Paula. Lutei como um danado, ao lado dela,
engoli lágrimas e dores, disfarçadas, quantas vezes, em sorrisos magoados,
querendo acreditar na ilusão resiliente da vitória. Pensei deixar o saco
intacto numa esquina do caminho. Talvez alguém que passasse levasse as laranjas
para saciar a sede dos seus filhos. Mas, na verdade, algo me dizia que não
devia fazê-lo, tendo em conta o contexto em que elas tinham vindo parar às
minhas mãos. Sentei-me na esplanada do primeiro café que divisei e pedi um chá.
Do saco saía um cheirinho a campo, que me agradou. Meti a mão para
pegar numa laranja e os meus dedos roçaram num papel meio-amarrotado pelo
contacto com a fruta. Sem muito entusiasmo, apanhei o papel, pensando que era
algo deixado esquecido, no saco, pelo velho Afonso. Mas
desenrolei-o. E li. Quase estremeci de espanto. Dizia: “a sua
história perturbou-me. Tirou-me o sono, sabe? Tem aqui o meu contacto. Se lhe
apetecer, ligue-me”. E pus-me a pensar naquele homem alquebrado, em fúria e de
carabina apontada ao peito do intruso que ousara devassar a sua propriedade.
Lembrei-me dos meus tempos de liceu quando a Professora de Literatura nos falava,
cheia de um entusiasmo quase religioso, dos episódios mais empolgantes de Os
Lusíadas: também o velho Adamastor, no seu corpo robusto e medonho, com aquela
voz tenebrosa que lhe atravessava as barbas esquálidas, tentou reduzir a zero o
nosso Vasco da Gama. E afinal, vencido o primeiro impacto, acabou por revelar o
seu lado mais frágil, chegando ao ponto de, envergonhado, confidenciar as suas
desgraças amorosas. Como eu havia gostado desta história! Cheguei mesmo a ter
pena do pobre gigante, que, irremediavelmente e para sempre, a deusa amada
transformara em pedra. Afonso era, neste quadro, a materialização do meu
Gigante Adamastor. E eu tinha de penetrar nas profundezas das águas escuras que
lhe amortalhavam a existência. E decidi marcar o número indicado. Do outro
lado, uma voz cavernosa de Adamastor anunciava que estava à minha espera, ele e
o seu gato Bonifácio, “que tinha simpatizado muito comigo”.
- “Gato Bonifácio?” - inquiri. Mas então,
Afonso/Adamastor também era o avô do Carlos da Maia?
Um sorriso culto atravessou o canal de
comunicação e pareceu-me ver-lhe a ruga da testa desanuviar-se.
- Olhe, amigo, vou pedir-lhe o que não
devia pedir. Mas aí vai: volte para trás. Quase posso afirmar que não
calcorreou mais do que dois quilómetros. Não é muito. É que fiquei cá com uns
macaquinhos na cabeça, sabe, e preciso de clarificar uns pensamentos e algumas
desconfianças.
Estrela que me guias, perdoa se vou
fazer-te esperar mais umas horas até nos encontrarmos fisicamente. A menina de
11 anos de outrora tem, com certeza, essa capacidade, a de esperar para que os
nossos sonhos se concretizem. Vou, pois, voltar para trás. Não seria delicado
da minha parte ignorar este pedido. Não vou desiludir o meu Adamastor, nem o
gato Bonifácio.
Quando cheguei ao recinto da laranjeira,
Afonso estava sentado numa das pedras que me tinham servido de almofada na
noite anterior. Segurava uma moldura com uma fotografia já bastante esbatida
pelo tempo.
- Vê este homem de grandes suíças? E esta
senhora de saias enormes, com uma criancinha sentada no seu colo?
- Vejo.
- A criancinha sou eu. Dizem que sou eu.
- Era um menino muito bonito...
- Também acho, perdoe-se-me a imodéstia.
- Mas...
- Pois, o drama começa aqui. Está a ver a
paisagem em pano de fundo? É Viana do Castelo, Santa Luzia, o rio Lima...
- Não me diga que o Afonso é do Norte, que
é de Viana... e, sendo assim, como veio parar a Faro?
- Não tenho memória do que me tirou do meu
local de nascimento. Tinha uma criada já bastante velha, a quem eu comecei a
chamar avó, que me disse, em jeito de segredo, que os meus pais embarcaram,
numa noite chuvosa de Inverno, num paquete que os havia de levar ao Brasil. E
eu fiquei aos seus cuidados. Com uma dor tão violenta no peito que quase não
conseguia respirar. Passei noites inteiras a pedir a protecção do Menino Jesus,
para que os meus pais viessem buscar-me. Esperei, esperei, até que desisti.
Faro era, agora, a minha cidade. Mas a mágoa da orfandade ficou sempre
enraizada no meu coração. Hoje, ao ouvir o relato da sua história de vida, tudo
voltou com mais acuidade. Interrogo-me sobre quem sou. De onde vim, quem foram
as pessoas que me antecederam, que genes herdei... Entende?
- Mas...
- Mas, de repente, vi em si a mão que me
pode ajudar a traçar essa pesquisa e a aliviar, talvez, esta indefinição em que
sempre vivi. Desde que fiquei sem a minha protectora, a minha doce ‘avó’, o meu
chão social tornou-se resvaladiço. Quem sou, quem sou? Que mulher fantástica
cuidou de mim, que meios financeiros tinha para custear a minha formação académica? Respostas
para estas questões nunca mas deu. Dizia: “um dia, meu amor, vou contar-te a
tua história. Prometo-te que essa revelação será a minha prenda de casamento.
Para já, não me faças mais perguntas”. E assim vivi, meu amigo, à espera do meu
casamento, para me serem desvendados os mistérios das minhas origens. Mas a
minha ‘avó’ não pôde realizar a sua promessa, porque um aneurisma se atravessou
no nosso caminho, antes do meu casamento.
O velho Afonso estancou o discurso, como
se a história do seu casamento estivesse envolta numa nuvem cinzenta de
contornos enigmáticos. Tive vontade de lhe perguntar como conheceu a noiva,
como foi a sua experiência conjugal, se vivia ali isolado por viuvez ou
divórcio, quem era aquela filha por quem continuava à espera. Mas não ousei
manifestar a minha curiosidade. Preferi esperar, eu também.
E depois de tossir um pouco, prossegue:
- Espero que não me ache um
tolo atrevido a aproveitar-se de lhe ter dado guarida. Às vezes, é
verdade que eu próprio me acho um desenquadrado da sociedade, um eremita
antipático. Mas sou assim. E agora que o meu amigo se vai encontrar com essa
tal de Estrela, quem sabe, talvez...Viana do Castelo de permeio...
- Sim, porque não? Vou tentar integrar na
nossa aventura o que me pede. Mas vamos precisar de reunir alguns dados...
- Então, se não se importa, vamos
entrar.
E conduziu-me a uma saleta.
Reparei que, ao passarmos junto ao quarto
onde dormira na véspera, Afonso desviou o olhar, como se alguém lhe espiasse os
movimentos. E agora era a minha vez de me sentir intrigado. Que mistério
pairava naquela casa, naquele quarto, que provocasse aquele mal-estar? Como
interpretar as palavras de Afonso “tristeza por não ter quem espere por ele”,
“uma filha que desapareceu e por quem ele espera indefinidamente”?
- Fale-me da sua filha, Afonso. Como
desapareceu? E a mãe? Quem é? Onde está?
Não respondeu. Dir-se-ia que tinha
envelhecido mais ainda naquele intervalo de silêncio. Dirigiu-se a uma cómoda,
abriu uma gaveta, retirou uma caixa, que colocou em cima da mesa...
Albertina
Fernandes
A cómoda fez-me recordar o meu avô materno.
ResponderEliminarEstava lé tudo.
E a cómoda ainda está na casa de Coimbra.
Boa semana