01/09/23

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 4

 


Estrela

 

Vou no meu segundo dia de viagem… meu Deus, será real o que estou a viver?... ou estarei a acordar de um lindo e maravilhoso sonho?

Na minha mente ainda bailam as palavras daqueles poemas que eu adoro, escritos por autores de mão cheia e que imaginei terem-me sido enviados pelo Adriano. Pois, na nossa relação à distância sempre mostrou um certo sentido poético. Uma pessoa atenciosa, com palavras doces e de conforto em qualquer situação mais critica… mas será que o e? Terá ele a sensibilidade e a delicadeza que eu vi na criança que encontrei lá atrás no tempo? Desde que o conheci jamais amei com tanta intensidade outra pessoa. Uma forma de amar diferente das convencionais, pois hoje tenho a certeza de que há muitas formas de amar. Apesar da distância e pouca convivência, em tudo o que na vida fiz, bom ou menos bom, pensei nele.

Será que se estivesse com ele a vida seria melhor?

Não sei, mas sei que hoje vou a procura de um caminho.

Ontem, depois de muito andar a passos largos, decididos e fortes, percebi que quero mostrar – mais para mim mesma do que para os outros – a mulher que vai procurar a sua realização. Realização que lhe traga esperança, tranquilidade e paz no coração.

Neste turbilhão de pensamentos e com o cansaço, senti-me desfalecer à beira do caminho. Foi então que ouvi uma voz, que que me chamou "venha, venha comigo”. Amparou-me e levou-me consigo; foi-me dizendo que era voluntaria na Santa Casa da Misericórdia. Segundo as suas palavras, era hábito receberem peregrinos na Instituição.

       Pela manhã, tinha indicação para tomar o pequeno-almoço com os utentes. Aceitei o convite com agrado. Era mais uma experiência dentro da experiência que estou a viver.

        A entrada da sala, um grande cartaz que dizia:

 

 Obras de Misericórdia

 

Corporais

 

         – Dar de comer a quem tem fome

– Dar de beber a quem tem sede

– Vestir os nus

– Dar pousada aos peregrinos

– Tratar os enfermos

– Visitar os presos

– Enterrar os mortos

 

Espirituais

 

– Dar bons conselhos

– Ensinar os ignorantes

– Corrigir os que erram

– Perdoar as injúrias

– Consolar os tristes

– Sofrer com paciência as fraquezas do próximo

– Rogar a Deus pelos vivos e defuntos

 

Depois de ler, pensei para mim: muito actual! Apesar de as Misericórdias terem sido instituídas em 1498 pela rainha D. Leonor estes valores continuam a fazer sentido.

Entrei na sala, estava repleta de seniores. Alguns olharam-me amavelmente, outros nem tanto. As suas rugas mostravam horas e dias de muito trabalho e algumas amarguras; cada um guardava no semblante as lembranças de uma vida e parecia que viviam sempre ansiosos por notícias do mundo que tinham deixado lá fora.

Enquanto as cuidadoras distribuíam a alimentação, acerquei-me de alguns que me pareceram mais frágeis. Um deles, de lagrimas a saltarem pelos olhos, dizia "Sabe, o meu filho tem muito trabalho, não tem tempo para nada" e outro "a minha filha gostava muito de me ter com ela, mas a casa é muito pequenina" e ainda outro "se os meus filhos pudessem tinham-me lá com eles, mas têm muitos filhos…”

E depois o “primo” de nome António, que por não ter ninguém de família adotou todos os funcionários e amigos como "primos”, e que me contou a sua vida em meia dúzia de frases desconexas. “Eu sou filho de latoeiros, que tiveram vida de saltimbancos. Em pequeno e até já mais velho andei com os meus pais lá pelo Alentejo. Aos seis anos andava a guardar porcos, dormia com eles nas pocilgas. O meu patrão sempre me tratou muito mal, mas eu não tinha nada nem ninguém e mantive-me lá até aos meus 30 e tal anos. Um dia de muita chuva em que me senti todo encharcado de lama, igual a muitos outros da minha vida, desesperado, tinha um capote que vesti, e pus-me a andar. Andei durante muitos dias a pé sem saber bem para onde seguia. Ia pedindo para comer; às vezes davam-me, às vezes não. Até que encontrei uma vila pequena e sentei-me nas escadas do posto médico. Era de manhã, uma senhora chegou, estranhou a minha figura triste e encharcada e fez-me perguntas. Depois trouxe-me para esta casa, que hoje é a minha. – Ó prima, dá-me um beijinho? É que eu em toda a minha vida poucos recebi.”

Dei um beijo naquele rosto enrugado, não tanto pela idade, mas pelas agruras da vida. E, num rompante, o “primo” António levantou-se e desapareceu no corredor de acesso aos quartos. Voltou alguns minutos depois, e trazia na mão um velho envelope, que me entregou.

– Quer que eu leia?

– Não, é para a prima.

– Para mim? Mas porquê… onde o encontraste?

– Estava sempre no bolso do meu capote… é uma prenda… porque me deu um beijinho.

 

                                                                 Clotilde Morgado Fonseca

 

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