15/10/23

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 6

 


Estrela

De Esposende, depois de só molhar os pés no mar fresquinho, decidi que iria andar o quanto aguentasse. Até Ovar, são 19 horas de caminhada, portanto, resolvi neste primeiro estirão ir só até ao Porto, a ver se conseguia tomar um cafezito no Cais da Ribeira ao cair da tarde, e não mais.

Dormi na casa da amiga Sandra, que mora em Campanhã. Tomamos um vinho enquanto eu lhe contava toda a história. Depois do vinho, um banho demorado, cama quentinha e pé na estrada outra vez, porque queria chegar a Ovar antes do fim do dia.

Passei por Espinho a deter o olhar por todas as casinhas antigas, pois lembrei-me de uma viagem que fiz com a mamã e o meu mano, à altura com meus idos 15 anos. A mamã tinha lá uma comadre muito querida. A filha chamava-se Sónia, de quem minha mãe era a madrinha, mas já não me consigo lembrar do nome da mãe... Foi uma viagem muito agradável, passeamos por muitos belos sítios históricos que trago na lembrança com carinho. E lembro-me que a comadre da mamã tinha lá uma lojinha de roupas numa casinha com varanda azul. Ah, por acaso, lembrei-me, chamava-se Maria João! É claro que não consegui lembrar-me do nome da rua e não encontrei a casa, mas como queria chegar cedo a Ovar, não me demorei muito a procurar.

Ao chegar a Ovar, comi o famoso pão de ló na Flor de Liz. Encontrei um cantinho para pousar e adormeci, depois de ler mais uma vez o conteúdo do envelope do “primo” António.

O que estará o Adriano a fazer hoje? A que altura deverá estar? Prefiro não estar a pensar muito nisso, mas espero que tenha em seu coração a mesma alegria medrosa que tenho, e anseio por vê-lo e ler em seus olhos o que meu coração guardou por tantos anos tão bem Escondido.

Acordei muito cedo no dia seguinte e como tinha ido ao mercado municipal comprar frutas para comer durante a caminhada de mais um dia rumo a Mafra, pus-me logo a andar. Tinha comprado também umas roscas de canela na Flor de Liz, porque não é só de frutas que se satisfaz o paladar...

Antes de sair da cidade, passsei detidamente os olhos pelo museu vivo do Azulejo, para recarregar os olhos d’alma com a beleza e a querida história dos meus patrícios.

A minha ideia era sempre acompanhar o mar até Mafra, mas não pude furtar-me a andar até Aveiro.  Aveiro sabe à infância, um sabor não proibido pelas tolas exigências da forma física. Além disso, a forma física agora pouco me importa, com esta média de 9 horas de caminhada a cada dia. É mesmo preciso ingerir alimentos que me dêem força para chegar e recomeçar a cada dia.

Mas não é só sobre comer, o meu relato. Depois de Aveiro, voltei à Gafanha da Encarnação para seguir viagem rumo ao sul, tal qual pássaros, a fugir do frio no inverno. E voltei mais uma vez a falar para dentro de mim, e a recitar o que lera no envelope do “primo” António… ”porque me deu um beijinho”

 

“Se algum dia um beijinho eu m’recer

Hei-de lhe dar o que na vida aprendi

Qu’a vida é hoje, quando se deve viver

Pois o hoje nunca se vai, foi o que vi.

 

Todas as vezes que me deito a dormir,

Penso: “Acabou-se o hoje!”, mas não é

Pois a noite se vai, novo dia nasce a sorrir

De pé, firme e forte, novo hoje a luzir

 

Então vive, linda menina!

O que bom não foi, retira da mente

E toca a viver nova Estrela matutina

Qu’o hoje é o teu melhor presente.”

 

(Fiquei a pensar na sabedoria que forja as almas mais humildes, quanto passou na vida o Sr. António, o quanto sofreu, e como passou por tudo a guardar em seu rosto aquele sorriso puro.)

Venho pelo caminho a pensar no que me levou a tomar esta decisão. Sim, ainda continuo a perguntar-me sobre a validade deste passo, mas mais pelo medo do desconhecido do que por achar que poderiam julgar-me.

Não me importa muito o que pensem a meu respeito. Importa-me é o risco da falha, de acreditar em um sonho e vê-lo ruir. Enfim, é um preço que se deve pagar para irmos em busca dos nossos sonhos. Mais fácil, de certeza, seria ficarmos acomodados onde sabemos que o amanhã não nos trará surpresas.

Por muitos anos fiquei presa ao que julgava ser o correcto. O que não quer, de maneira alguma, dizer que esteja a fazer algo errado, mas decidi não pensar mais nisso. Penso antes no risco. Um grande passo rumo ao desconhecido, isto é o que estou a dar.

Mas, conforme disse o “primo” António, “Vive, linda menina! Toca a viver nova Estrela matutina!”

E toca a comer Ovos Moles d’Aveiro para sorrir!

 

Tixa Falchetto

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