Estrela
De Esposende, depois de só molhar os
pés no mar fresquinho, decidi que iria andar o quanto aguentasse. Até Ovar, são
19 horas de caminhada, portanto, resolvi neste primeiro estirão ir só até ao Porto,
a ver se conseguia tomar um cafezito no Cais da Ribeira ao cair da tarde, e não
mais.
Dormi na casa da amiga Sandra, que
mora em Campanhã. Tomamos um vinho enquanto eu lhe contava toda a história.
Depois do vinho, um banho demorado, cama quentinha e pé na estrada outra vez,
porque queria chegar a Ovar antes do fim do dia.
Passei por Espinho a deter o olhar
por todas as casinhas antigas, pois lembrei-me de uma viagem que fiz com a mamã
e o meu mano, à altura com meus idos 15 anos. A mamã tinha lá uma comadre muito
querida. A filha chamava-se Sónia, de quem minha mãe era a madrinha, mas já não
me consigo lembrar do nome da mãe... Foi uma viagem muito agradável, passeamos
por muitos belos sítios históricos que trago na lembrança com carinho. E
lembro-me que a comadre da mamã tinha lá uma lojinha de roupas numa casinha com
varanda azul. Ah, por acaso, lembrei-me, chamava-se Maria João! É claro que não
consegui lembrar-me do nome da rua e não encontrei a casa, mas como queria
chegar cedo a Ovar, não me demorei muito a procurar.
Ao chegar a Ovar, comi o famoso pão
de ló na Flor de Liz. Encontrei um cantinho para pousar e adormeci, depois de
ler mais uma vez o conteúdo do envelope do “primo” António.
O que estará o Adriano a fazer hoje?
A que altura deverá estar? Prefiro não estar a pensar muito nisso, mas espero
que tenha em seu coração a mesma alegria medrosa que tenho, e anseio por vê-lo
e ler em seus olhos o que meu coração guardou por tantos anos tão bem Escondido.
Acordei muito cedo no dia seguinte e
como tinha ido ao mercado municipal comprar frutas para comer durante a
caminhada de mais um dia rumo a Mafra, pus-me logo a andar. Tinha comprado
também umas roscas de canela na Flor de Liz, porque não é só de frutas que se
satisfaz o paladar...
Antes de sair da cidade, passsei
detidamente os olhos pelo museu vivo do Azulejo, para recarregar os olhos
d’alma com a beleza e a querida história dos meus patrícios.
A minha ideia era sempre acompanhar o
mar até Mafra, mas não pude furtar-me a andar até Aveiro. Aveiro sabe à infância, um sabor não proibido
pelas tolas exigências da forma física. Além disso, a forma física agora pouco
me importa, com esta média de 9 horas de caminhada a cada dia. É mesmo preciso
ingerir alimentos que me dêem força para chegar e recomeçar a cada dia.
Mas não é só sobre comer, o meu
relato. Depois de Aveiro, voltei à Gafanha da Encarnação para seguir viagem
rumo ao sul, tal qual pássaros, a fugir do frio no inverno. E voltei mais uma
vez a falar para dentro de mim, e a recitar o que lera no envelope do “primo”
António… ”porque me deu um beijinho”
“Se
algum dia um beijinho eu m’recer
Hei-de
lhe dar o que na vida aprendi
Qu’a
vida é hoje, quando se deve viver
Pois
o hoje nunca se vai, foi o que vi.
Todas
as vezes que me deito a dormir,
Penso:
“Acabou-se o hoje!”, mas não é
Pois
a noite se vai, novo dia nasce a sorrir
De
pé, firme e forte, novo hoje a luzir
Então
vive, linda menina!
O
que bom não foi, retira da mente
E
toca a viver nova Estrela matutina
Qu’o
hoje é o teu melhor presente.”
(Fiquei a pensar na sabedoria que
forja as almas mais humildes, quanto passou na vida o Sr. António, o quanto
sofreu, e como passou por tudo a guardar em seu rosto aquele sorriso puro.)
Venho pelo caminho a pensar no que me
levou a tomar esta decisão. Sim, ainda continuo a perguntar-me sobre a validade
deste passo, mas mais pelo medo do desconhecido do que por achar que poderiam
julgar-me.
Não me importa muito o que pensem a
meu respeito. Importa-me é o risco da falha, de acreditar em um sonho e vê-lo
ruir. Enfim, é um preço que se deve pagar para irmos em busca dos nossos
sonhos. Mais fácil, de certeza, seria ficarmos acomodados onde sabemos que o
amanhã não nos trará surpresas.
Por muitos anos fiquei presa ao que
julgava ser o correcto. O que não quer, de maneira alguma, dizer que esteja a
fazer algo errado, mas decidi não pensar mais nisso. Penso antes no risco. Um
grande passo rumo ao desconhecido, isto é o que estou a dar.
Mas, conforme disse o “primo”
António, “Vive, linda menina! Toca a viver nova Estrela matutina!”
E toca a comer Ovos Moles d’Aveiro
para sorrir!
Tixa
Falchetto
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