06/10/23

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 5



Adriano 

Fiquei por um tempo, que me pareceu ser longo, mas que com certeza foi apenas de alguns segundos, à espera que Afonso abrisse a caixa. Mas ele não a abria. Acariciava-a em círculos como se os seus pensamentos também andassem às voltas, à espera de uma decisão. Até que parou, mas continuou sem dizer palavra.

Confesso que já me estava a sentir inquieto. Talvez inquieto seja um termo demasiado forte, mas que me estava a provocar um certo nervoso miudinho, lá isso estava; aquela atitude do velho Afonso estava a empatar-me a caminhada. Se até ali não tinha tido dúvidas em relação ao voltar atrás, naquele momento algumas me surgiram. E estendi a mão em direcção ao objecto de culto, que aquele ancião venerava com o olhar vítreo, com o propósito de levantar a tampa; mas uma mão ligeira impediu-me…

– Não, não a abra já.

Se já estava com as ideias baralhadas antes disto, mais ficaram naquele momento.

– Leve-a… leve-a consigo – e com aquele olhar dos velhos pensadores, acrescentou: – saberá quando chegar o momento de a abrir.

Não entendi nada daquilo, mas pronto: faça se a sua vontade. Até porque se aquela nossa quase loucura, minha e da Estrela, iria causar alguma transformação em nós, como eu tinha lido no tal relato de um peregrino, lá na biblioteca municipal, eu começava já ali. A aceitar carregar com resiliência aquela caixa, que sabe-se lá que revelações guardaria.

E, com a caixa dos segredos daquele velho homem no fundo da mochila, lá reiniciei o caminho. Por mim, abria-a logo ao virar da primeira curva, desvendava-se o mistério e eu ficava completamente livre para o propósito que inicialmente me tinha movido. Mas pronto, estava decidido: ia esquecê-la no fundo da pouca bagagem que levava e não pensaria mais em tal coisa, que o tal momento havia de chegar. Assim esperava!

Ai Estrela, minha Estrela, que aventuras já viveste tu neste início de peregrinação? Sim, é uma peregrinação esta nossa façanha; uma peregrinação que cultua o amor. Bem sei que combinámos não fazer uso dos telemóveis para relatos exaustivos das nossas experiências diárias (isso ficaria para depois), mas agora já estou em querer que isto seria muito mais fácil se o fizéssemos. Tenho tanta vontade de te contar o que já me aconteceu. Se estou a tomar as decisões certas… se estou a fazer o que devo. Como sabes, sempre fui uma pessoa que gosta de partilhar as dúvidas e de ouvir todas as opiniões antes de chegar a uma conclusão. E claro, também gostava de saber mais do que estás a passar. Enfim, são as regras que definimos e vamos lá cumpri-las. Estou ansioso por te encontrar.

Para evitar o terreno mais acidentado da serra algarvia, tenho vindo a deslocar-me para noroeste; com a ajuda da bússola, claro está, que o meu sentido de orientação não é assim tão apurado. Não sei bem onde estou, mas pelo que já andei, diria que estou prestes a avistar o mar. Bem, não só pelo que já andei, que foi muito mesmo (o dia todo desde que saí da casa do Afonso, só com duas paragens para comer, numas tascas que encontrei pelo caminho e mais algumas para me molhar, beber água e encher a garrafa que trago, nuns regatos que também atravessei e fontanários com que me cruzei), mas também pelo cheiro a maresia que só quem o sente todos os dias o reconhece, ainda que a alguma distância. Só não sei se já cruzei a linha de fronteira entre o Algarve e o Alentejo, mas também a diferença – se é que a há – é tão ténue que com certeza não a decifraria.

Isto até parece coisa de outros tempos. É claro que eu já fiz o percurso Faro/Lisboa e vice-versa bastantes vezes, principalmente para visitar o meu filho, mas por autoestrada ou estrada nacional; o que não tem nada a ver. Isto até parece outro mundo, outro país, distante daquele que eu pensava que conhecia.

Acho que não posso dizer que seja exactamente sol-posto, mas depressa será. Caminho num estradão de terra batida, com o sol a dar-me pelas costas; o que alonga a sombra e aumenta a sensação de lonjura, fazendo-me assim pensar no que ainda tenho para andar.

Mais adiante, na estrada, um casal de uma idade já com alguma experiência de vida caminha a um ritmo sincronizado, tal como as vivências que partilham, com certeza. Não consigo perceber se conversam, mas apertando um pouco o passo, acerco-me e percebo que nem uma só palavra desarmoniza aquele quadro de natureza idílica. Talvez já se conheçam tanto que não necessitem delas para dialogar. Afinal, o silêncio é a coisa mais bonita de se partilhar com alguém. Mas também a mais difícil. Não me atrevo a aproximar-me, sinto que não tenho esse direito; ainda que algumas informações me dessem jeito para saber onde estou… e para onde vou.

A poeira do caminho amortiza os meus passos, ficando assim uma total ausência de ruído. Só os sons inerentes aquela obra de arte, talvez divina, embalam o meu andamento, que naquele momento se torna leve, como um voo de pássaro rumo à derradeira existência desde sempre adiada; como uma promessa que finalmente ia ser cumprida. A promessa que há muitos anos vi nos teus olhos de criança.

Foi a mulher que, finalmente, se virou para trás e me viu. Acho que mais por instinto do que por qualquer outra coisa. Elas são mais instintivas que nós homens, todos o sabemos. E também todos sabemos que sempre acabamos por as seguir. Seja onde for, em que época ou contexto for, é assim! Como tal, ele seguiu o gesto dela, notando assim a minha presença e proporcionando a minha aproximação.

– Ora, muito boas tardes! – Adiantei-me no cumprimento, procurando causar uma primeira boa impressão.

– Muito boas tardes, amigo! – Responderam sincronizadamente, tal como o seu caminhar.

– Então o que se faz por aqui?

– Olhe, a gente recolhe a casa, e o senhor o que o traz por aqui?

– Olhe, eu também busco um lugar para me recolher… quer dizer, quero perguntar-vos se há por aqui alguma pousada ou assim para passar a noite.

– Ah, o senhor é daqueles caminhantes que andam por aí a ver a natureza. – Disse a mulher, que até então tinha estado calada. – Passam por aqui muitos.

– Pois passam. – Corroborou o homem. – Mas essas casas que diz não há muitas aqui na zona, só mais ali para o litoral… para ali sim, por causa das praias.

– E isso é muito longe?

– Ainda é um bom bocado. E assim, a pé, não há de chegar lá muito cedo.

Perante aquela informação, comecei a cogitar a ideia de outra vez, dormir ao relento; se bem que da primeira vez não foi bem isso que aconteceu. Mas o homem continuava a falar…

– Aqui pela região também podia haver algumas, que até faziam falta… para pessoas como vossemecê. Havia por aí umas casas desabitadas que bem podiam ter sido arranjadas para os tais alojamentos locais. Mas agora já não, agora já não dá… estão cheias com essa estrangeirada que para aí tem vindo.

– Estrangeiros, é? Há muitos aqui na região?

– Oh, se há… vossemecê nem faz ideia. Estão sempre a chegar aos magotes.

– Ah, então e o que é que vêm eles para aqui fazer? – Perguntei apenas para confirmar, que pelo rumo da conversa já me estava a situar, já sabia em que etapa do caminho me encontrava.

– Atão, são os que vêm para aí a trabalhar para as estufas e para toda a agricultura.

– Mas aqui não vejo estufas.

– Deixe chegar ali àquele altinho que já começa a avistá-las.

Mais algumas palavras trocadas e o casal despediu-se, entrando num outro caminho que ia dar à casa que se via um pouco à frente. A sua casa.

Eu, que agora já via o sol pôr-se no horizonte, preparava-me para encontrar um lugar para passar mais uma noite sob as estrelas… rumo à minha Estrela.

 

                                                                           Luísa Vaz Tavares

1 comentário:

  1. De volta depois de um relaxante período de férias, passo para desejar uma boa semana.

    ResponderEliminar

Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!