01/12/23

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 9

 


Adriano

Abraçou as mãos ao ferrolho e rodou a medo. Não tinha idade para aquelas graças e se fosse apanhado era um embaraço.

O portão chiou os gonzos acusatórios.

Aguardou vigiando…

A noite estava de limpeza absoluta. Aquele manto negro pintalgado merecia um olhar atento.

Lançou com cautelas para que não fosse ouvido ao longe.

- Está aí alguém?...

«Ninguém…»

Entrou para o céu aberto como quem invade um palácio de rei ausente.

«Tudo meu…»

Chegou-se à muralha e deixou-se circunvagar numa volta inteira contemplando o horizonte franco e sem restrições, muito lentamente…

«Imensidão infinita…»

Ergueu-se uma brisa cálida de Leste oferecendo-lhe um arrepio de prazer. Um abandono…

«Olha Paula… na ponta do meu indicador esquerdo, a Lisboa buliçosa, cidade sem sono, no direito a Troia magnífica, costa sem fim, areal dourado, uma curva tentadora até lá ao fundo como um abraço… vês Paula? E olha ali, ali mesmo, Alcácer, daqui tão perto…, uma lanterna do Sado, vês ali iluminando, quase uma estrela? Tudo ao alcance dos meus braços abertos, menos tu. Que solidão contemplar a beleza sem partilha, sem ti principalmente, mas sem alguém. Olha Paula, olha-me bem este céu estrelado vês? Vê comigo, deita-te comigo a meditar o céu. Que grandeza sem fim… olha! Riscou, viste? Uma estrela cadente: pede um desejo Paula, pede. O meu está aqui contigo, em mim, imenso. Ouves-me daí, Paula?»

Um restolho disparou em cima da muralha mais à frente arrancando-o de si. Que seria na noite calma? Semicerrou os olhos e: ali mesmo, esbracejando, uma cegonha acomodava-se. Martelou duas vezes e acalmou. Voltou o silêncio e a inércia da noite imaculada.

Esfriava agora um pouco. Abraçou-se energicamente batendo com as palmas das mãos nas costas tensas.

«Abraça-te rapaz, na falta de companhia, abraça-te a ti mesmo. O momento merece, Adriano.»

O cansaço dos últimos dias ia-se manifestando, por vezes com frio, outras numa melancolia paralisante, uma falta imensa de companhia, sim, era companhia que faltava. Detestava a solidão do caminho, falava sozinho, parava em solilóquios descritivos; raramente se cruzava com alguém, mas quando acontecia, falava da sua viagem sem parar, do que o trazia ali, qual o destino. E por aí afora. E as pessoas que sim, que sim, julgando-o um pouco louco, se precisava de alguma coisa, desejando bom caminho e felicidades futuras.

«Diário, querido diário, que procuro afinal quarenta e dois anos depois? Uma tábua de salvação, ou uma desilusão?»

Guardou o caderno na mochila e aninhou-se no canto da muralha onde a encostara. Esgravatou umas amêndoas no fundo do saco para entretém do estômago. Não tinha sossego. Com o telefone tentou umas fotos panorâmicas do céu, um filme rodopiado dos 360º que lhe davam o horizonte. Não tinha sono. Que inquietação.

«Talvez… seria ousadia?»

 

- Parente?… boas noites…

- Hep! É você, Adriano?... Atão a estas desoras não está a descansar, homem?

- Eu mesmo… amigo Afonso… estou com uma espertina malvada…

- Ê môce marafado… não aguenta com a espera, agora que está mais perto?

- Talvez…. talvez... estava aqui tão sozinho, sem ninguém. Tinha de falar com alguém…

- Fez bem, homem… fez bem… tenho pensado muito em si, sabe? Caminho fora, cabeça entre as orelhas, destino marcado, mas incerto…

- É isso mesmo, amigo Afonso, é isso mesmo.

- De manêras que, aqui sentado a olhar o magano do gato, alembrê-me, alembrê-me sim senhor, aqui dum filme que vi na televisão há muito, faço-me compreender?...

- Sim, amigo Afonso, diga

- E era uma história assim parecida com a sua, não quer lá ver?… Também se escreviam, ele era fotógrafo e ela dona de casa; não era nenhuma gaitona, mas também não era monga… nã sei se estáver; não era não senhor… marido porreirinho, filhos parece que dois… lembro-me de umas pontes com uns telhêros… assim, umas coberturas… faço-me compreender?...

- Sim, sim…

- Esta cabeça… ela não tinha o que queria e a ele faltava-lhe tudo - assim é que é - e depois, e depois nunca tiveram coragem para se reencontrarem, juntarem-se, não quer lá ver?... Os filhos, o compromisso, a incerteza…. Olhe! Uma vida adiada. Quem andou, não tem para andar, e quem não andou, andasse. Já disse, prontes! Vá! Tenha a coragem de pegar numa mulher daquela idade. Guardado estava o belisco, homem! Desculpe lá a apertelência. (e riu-se) Patochadas. Vá, mê amigo veja se descansa que… Mas então que é isto, ainda não me disse onde estava?…

- Em Palmela, caro amigo; no castelo. Joguei as mãos ao ferrolho e agora é tudo meu.

- Estou? Amigo Afonso? Está a ouvir-me? Estou?...

- Que diacho… estou?

- Estou aqui, Adriano, estou aqui…

- Se disse alguma coisa que não devia, desculpe-me…, mas… o que foi?...

- Disse Palmela, Adriano… disse Palmela… agora vá dormir. Deixe-me recuperar e amanhã falamos. Eu serei o despertador da sua alvorada… vá, até amanhã… fique bem…

 

A noite foi de atalaia sem nada que vigiar, a não ser a vida alheia vista em luzes tremeluzentes à distância. O Mundo bulia, apesar da hora. Por vezes cabeceava, mas logo a mola do reflexo lhe levantava o queixo num espasmo. Estava exausto. Só um banho morno e uma cama firme lhe restituiria alguma paz e força para o que faltava.

O céu estrelado foi-se desvanecendo com a entrada da aurora, mais um dia a suceder à noite, a luz vencendo as trevas mais uma vez.

Estremeceu.

O telefone revelou-se numa estridência alarmando o ermo. Que inconveniência…

- Estou?!

- Adriano?...

- Oh!…, desculpe, amigo Afonso; estou para aqui meio estremunhado e o toque do telefone pareceu-me o sino da igreja. Dormiu bem?...

- E quem é que pega no sono com um inquietamento destes, homem?...

- Eu também passei o resto da noite a pesar figos, dormir, nada…

- Pois então vamos lá à razão do incómodo logo pela madrugada…

- Não incomoda nada, amigo!...

- De Palmela… falava meceia ontem… de Palmela…

- Já lhe contei que espero há muito o regresso da minha filha, mas não lhe contei nada da mãe…

- Pois, de facto não…

- Pois a minha Ana Rosa, minha?, esta mania de chamarmos nossos aos outros…, a mãe da Ana Luísa deixou-me com ela nos braços, pequenina, quando fugiu com uma trupe de ciganos de Palmela que veio cá à aldeia fazer um espectáculo. Saltimbancos, está bom de ver…. Sim, senhor. Mesmo assim. Foi ver a festa, e foi com a festa; sem dizer água vai, nem água vem. Eu aflito, com a criança nos braços, terá acontecido alguma coisa?, pergunta a este, pergunta àquela, todos comprometidos, sem que dizer, e como dizer? Só na GNR é que o cabo me informou, assim meio a mangar… «então meceia não sabia? Com o belisco que ela é o que queria?...» Aquilo ofendeu-me tanto tanto, que foi preciso agarrarem-me para que não me desgraçasse ainda mais.

- E nunca mais soube nada dela?...

-  Nunca mais soube nada dela… Aqui no lugar sabiam... há sempre alguém que passeia a curiosidade, mas todos me respeitaram e mantiveram na ignorância. As mulheres de cá ajudaram-me no início, eu sabia lá tratar duma criança, homem! Depois, uma vizinha comprometeu-se a tomar conta dela quando eu ia trabalhar de jorna, e os anos foram passando…

- Está-me ouvindo, Adriano?...

- Estou, amigo Afonso, não quero interromper e também… que dizer?...

- É. Estas dores que não se contam a ninguém. Dizem-se melhor ao telefone porque não é pessoa. É a primeira vez que falo nisto, sabe? Assunto que nem com os amigos comentei e veja-me agora, a desabafar com um telefone que tem na outra ponta um desconhecido… meceia desculpe-me.

- Nada a desculpar, meu amigo…

- É. Eu que nunca a vi como uma zorra… era a minha mulher, prontes. A mãe da minha filha. Ontre-dias a minha Ana Luísa - a minha filha…

- Sim…

- Vem com uma conversa que a mãe. Quem Ana Luísa?! Quem?! Olhe que sempre a tratei por Luisinha e ela a mim por paíto, mas naquela maré, desceu-me um fel ao estômago tão azedo quando ela alvitrou a mãe! Quem, Ana Luísa?! “Ó paíto, eu tenho andado com medo de lhe falar, mas… a mãe escreveu-me.” Escreveu-te?... “Sim. E na terceira carta pediu-me muito para que eu fosse ter com ela, para nos conhecermos…” Terceira carta, Ana Luísa?... “Eu tinha medo de lhe contar, paíto. Mas respondi-lhe…” E, que lhe respondeste Ana Luísa?... A miúda estava branca como a cal da parede, Adriano. Eu, um cadáver. Que tenho andado mais ou menos assim…

- Não é para menos, amigo Afonso… não é para menos…

- Enfim, ela lá me disse que ia, e que até já tinha comprado bilhete na carreira. Mas que não me preocupasse, que voltaria, claro que sim, eu é que era o paíto dela… mas que estava com muita curiosidade de conhecer a mãe…

- E depois, amigo Afonso?...

- Depois, dei comigo rodeado das vizinhas, que tinham vindo acudir ao choro da catraia, porque eu estava desfalecido naquele descabeço. Quando elas chegaram, ela saiu a correr com a mochila atulhada.

- Como assim, ela saiu…

- Assim foi. Quando me informou, ao que parece já tinha tudo combinado com a mãe… Andei aqui uns dias baldeado, fui-me informar, mas não havia nada a fazer. Ela era maior, embora o meu amparo, a vida era dela, nada a fazer.

- Tem de ter paciência amigo… importante é que ela esteja bem…

- Não merecia, Adriano… não merecia… morri ali.

- Ninguém sabe a morada?...

- Para quê, seu cabeça de azinho?... Para quê?...

- Desculpe. Não me devia estar a meter…

- Nada… desculpe eu. Cabeça de azinho é o telefone…

- Se eu puder fazer alguma coisa…

- O que você pode fazer, é acabar essa viagem, encontrar a magana, fazer muita meia azul e não a largar mais, ouviu?

- O amigo está cá com umas certezas… (e riu-se…)

- Está-se lembrando daquele filme? Ganhe coragem homem. Não faça como o outro que morreu toda a vida arrepeso… e desculpe… desculpe muito, mas até parece que respiro melhor depois deste limpa saco. Obrigado, Adriano. Espero sempre o seu telefonema ao fim do dia.

- Vou ter de desligar. Alguém está a abrir o portão. Mais logo falamos…

- NÃO SE ESQUEÇA DE MASSAJAR BEM ESSAS CANOEIRAS!...

 

José Bessa

 

4 comentários:

  1. Muito interessante esse texto. Vidas comuns cheias de reticências , a aproximar os mortais que todos somos.

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  2. Atão temos os compadres numa grande zoeira.
    Bela moenga qu'inventa estas conversas a modos que de destinos.

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    1. Muito obrigado.
      Regionalismos que, com pena minha, se vão perdendo...

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