17/07/12

Os segredos de Sobreiro Aparado - Capítulo 11

Enquanto subia a escada devagar, o inspector Morgado puxou uma última fumaça do cigarro e apagou-o antes de entrar, enquanto pensava para consigo mesmo: “Malditas leis”.

Era cedo, e àquela hora apenas uma secretária estava ainda ocupada. O silêncio do enorme espaço era apenas interrompido pelo tic tic tic de um teclado de computador. A agente Paula como habitualmente chegara cedo também.

Cumprimentou-a com um “bom dia” e dirigiu-se à máquina do café.

- Bom dia, respondeu ela, acrescentando: tens trabalho na tua mesa, o chefe já chegou mas saiu para uma reunião no ministério e deixou-te um dossier, quer que vás até às Caldas?

- Outro caso nas Caldas? Não é lá que está o Seguro?

A agente Paula deixou o monitor do computador por uns instantes, rodou a cadeira e olhou com ar grave para Morgado, consciente de que o que ia dizer não seria do seu agrado:

- Outro caso não, é o mesmo. Olhou em volta para se certificar que mais ninguém tinha entrado na sala e acrescentou em voz baixa: é o costume, a investigação não avança…


 

Morgado não ficou surpreendido, apenas irritado com o chefe. Com este já nada o surpreendia. No tempo do anterior chefe nada disto teria acontecido. Nascimento dos Santos era um chefe como deve ser, que sabia o que fazia e conhecia o seu pessoal. Sabia que o inspector Morgado não podia nem um pouco com o inspector Seguro e nunca os teria colocado no mesmo caso. Agora este gajo, cujo único mérito para chegar a chefe é ser amigo do ministro…

Pegou no café e dirigiu-se à sua mesa. Pousou-o, sentou-se empurrando a cadeira para trás de forma a esticar as pernas e permaneceu longo tempo a olhar pela janela. A agente Paula levantou-se e foi tirar um café. Voltou com o copo de plástico na mão, sentou-se na beira da secretária de Morgado e enquanto mexia o açúcar disse:

- Primeiro devias ter lido o processo e depois é que te punhas a pensar. Pensar sem conheceres os factos faz com que fiques com ideias pré-concebidas e isso é mau para a resolução do caso.

- Sabes que não gosto que me chames à atenção, disse com ar chateado.

- Estás chateado, e é porque sabes que tenho razão, não é? O que disse é para teu bem.

Levantou-se e voltou para a sua secretária. Também ela não gostava do inspector Seguro e desejava que Morgado tivesse mais sucesso na resolução do caso.

A danada tinha razão mesmo. E isso ainda o deixava mais irritado. Suspirou, chegou-se para a frente e resolveu começar a trabalhar. Em cima do dossier estava um pedaço de papel rabiscado pelo chefe com algumas instruções e outras tantas desculpas esfarrapadas, “o caso é difícil, é preciso mais pessoal” ou “as gentes do campo são muito fechadas, não gostam de falar”.

Bem, do mal o menos, não ia trabalhar em conjunto com o inspector Seguro pois este tinha sido transferido.

O processo não era muito grande. Cinco relatórios do Seguro, dois relatórios de autópsias e dois emails da polícia espanhola. Seguindo o seu processo habitual, Morgado leu primeiro tudo de uma ponta a outra e voltou depois ao princípio para reler e tomar apontamentos. Assim que leu a primeira página e viu uma referência a uma suspeita de nome Albertina, percebeu logo porque é que a investigação não avançava.

Seguro era um incorrigível mulherengo de primeira apanha. O desempenho profissional ressentia-se disso mas, ou disfarçava muito bem perante os chefes ou então estava muito bem encostado, pois nunca era chamado à atenção. Isto era a causa da sua animosidade. O inspector Morgado não podia com ele desde que, há muitos anos num jantar de Natal do departamento tentou roubar-lhe a namorada.

Olhou para os papéis com desalento e abanou a cabeça enquanto pensava: temos dois mortos, mais um acidente em Espanha que não se sabe ainda se está relacionado pois falta chegar o relatório das peritagens ao camião e em duas semanas a única coisa que este gajo faz é “interrogar” uma suspeita.

Levantou-se e foi buscar mais um café. Desta vez colocou o copo ao lado do dossier e foi bebendo enquanto ia tomando notas no seu inseparável caderno, apenas interrompendo para cumprimentar maquinalmente os colegas que entretanto iam chegando ou para responder a alguma pergunta.

Quando achou que tinha escrito tudo pôs de lado o dossier e ficou a olhar para os seus apontamentos pensativo, durante alguns instantes. De seguida pegou no telefone e ligou para o arquivo.

- Tá, Sousa?

- Sim, bom dia diz.

- Bom dia, preciso que me vejas umas coisas…

- Porque não vens cá e procuras tu?

- Não posso, vou para fora.

- É sempre a mesma desculpa.

- Obrigado, és um gajo porreiro, ora escreve lá os nomes que te vou dizer: …

- É tudo, consegue-me isto e pago-te um almoço.

- Não precisas de dizer duas vezes. Boa viagem e até logo.

Fechou o dossier, escreveu umas linhas no mesmo papel que o chefe lhe tinha deixado e foi colocar o processo no seu gabinete. Arrumou as suas coisas, pegou num envelope que tinha numa das gavetas e vestiu o casaco. Ao sair passou pela secretária da agente Paula e perguntou-lhe:

- Que fazes logo à noite?

A agente encarou-o com cara de poucos amigos e disse em tom brusco. Porquê? Interessa-te? No tom mais irónico que conseguiu, Morgado respondeu: calma, nada de ideias pré-concebidas, acrescentando depois com ar já mais sério: tenho este bilhete para um concerto e não vou poder ir, queres? disse estendendo-lhe o envelope.

Paula fez um sorriso amarelo e agradeceu. Depois de olhar para o bilhete franziu o sobrolho e perguntou:

- Monte Lunai? O que é isto? - Isto é um grupo musical.

- Obrigada, mas… que tipo de música é? Sabes, eu gosto é do Tony Carreira e do Emanuel…

- Ok, então não é o teu género. - Bem, obrigada na mesma.

O agente Sousa ia a passar naquele momento. Morgado tocou-lhe no braço e chamou-o.

- Sousa, tenho este bilhete mas vou agora para fora, não posso ir, queres?

- Eh pá obrigado, deixa cá ver, o que é isto? Monte Lunai?

- Isto é um grupo musical, repetiu Morgado com ar de enfado.

- Nunca ouvi falar, espero que seja rap ou hip-hop.

- Já vi que também não é para ti. Ok, esquece, eu hei-de impingir isto a alguém. Passem bem, até p’rá semana.

Saiu a porta do edifício e enquanto descia as escadas olhou para os dois lados da rua à procura de um vulto. Encontrou o que queria, levantou um braço num aceno enquanto gritava: Kiko! Kiko o arrumador aproximou-se o mais rapidamente que a sua perna manca o permitia.

- ‘Tá alguma coisa mal sôtor? Perguntou a medo quando chegou perto do carro do inspector.

- ‘Tá tudo bem Kiko, tenho de ir para fora e não posso ir a este concerto, disse estendendo-lhe o bilhete. É hoje à noite no S. Luis, se conseguires vender isto a alguém ganhas algum dinheirinho. - Muito obrigado sôtor, disse Kiko enquanto agarrava no bilhete. Ah, é Monte Lunai!

- Conheces? Perguntou o inspector sem conseguir disfarçar a surpresa?

- Sim, quando eu dormia na Estação do Oriente vi-os uma vez a tocar na entrada do metro. Gostei muito.

- Bem, se quiseres ir tu ao concerto em vez de venderes o bilhete, estás à vontade, disse, dando-lhe uma palmadinha nas costas.

Decididamente o mundo não parava de o surpreender, pensou enquanto se punha a caminho.



Para ir para Sobreiro Aparado não precisava de ir mesmo às Caldas da Rainha, mas não lhe apetecia almoçar numa tasca na aldeia por isso dirigiu-se à cidade. Almoçou nas calmas e depois foi procurar um local para dormir. Não queria ficar na aldeia, afinal estava só a dez quilómetros de distância. Depois de tudo tratado meteu-se no carro, olhou o mapa para confirmar o caminho e pôs-se em marcha.

Poucos minutos depois chegava ao destino e parou o carro no largo principal da aldeia. A chamada que aguardava chegou entretanto.

- Tá Morgado? É o Sousa.

- Tens novidades?

- Algumas, não há registos em nome da tal Albertina, também não consta nada em nome do marido, o Tomé nem quanto à Transportadora Sobreirense; a empresa já tem dez anos e é a primeira vez que têm um acidente assim tão grave; aparentemente têm tudo em dia com seguros, inspecções, essas tretas todas.

- Sim

- O Octávio estava referenciado como toxicodependente, esteve internado para tratamento mas fugiu do centro à seis meses.

- O Zinga, já tinha estado preso por furtos. Tinha uma pequena deficiência mental, era daquelas pessoas de quem todos abusam para fazer recados e trabalhos.

- Ou seja, é daqueles que sabem muitas coisas e convêm ser eliminado…

- Pois é, e para acabar o Padre Joaquim também não tem cadastro, mas… - Mas o quê?

- O Padre Joaquim chama-se Joaquim Ferreira; curiosamente há um registo com um nome muito semelhante, padre Manuel Joaquim Ferreira, sobre um caso com cerca de quinze anos numa aldeia de Trás os Montes chamada Espinheiro; houve um enforcamento e lançaram algumas suspeitas sobre o padre Manuel, que chegou a estar preso preventivamente mas a investigação concluiu que foi suicídio e o padre foi totalmente ilibado. No entanto o padre foi afastado pela igreja sem deixar rasto, disse-se na altura que foi transferido para uma missão em África. Pelas datas que aqui tenho esteve na mesma prisão e na mesma altura que o Zinga…

Paulo Rodrigues

4 comentários:

  1. Agora com o agente Morgado, vai começar a desenrolar
    a teia, ou não fosse ele o grande "amigo" do Seguro....
    Parabéns Paulo

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  2. Pois, este agente Morgado parece que não vem para brincadeiras. Gostei muito, Paulo.

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  3. Vocês desculpem mas, andando o Seguro tão entretido com a Albertina, a primeira alcunha para o Morgado é a de empata-fora. Não era bem isto que queria dizer mas lembrei-me do meu Sporting. Parabéns Paulo . Espero é que aquela malta que está em Guimarães a ver a espada do Afonso Henriques venha para baixo. Entretanto não podemos deixar de agradecer ao Paulo o facto de nos indicar o caminho na 2ª foto. Assim até podemos combinar lá um almoço.

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  4. Como é que a investigação podia avançar? com o Seguro a dedicar-se a saias, em vez de se dedicar à investigação!

    Então sobreiro aparado afinal tem placa? Pensei que não tinha...

    Gostei da continuação, Paulo!

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