Algures numa outra espécie de
universo regido e sincopado pela quase inexistente batida do coração, Arturo
não ouvia os gritos de Liberto nem sentia mais as toscas lambidelas de Rimbaud.
Perdido numa nebulosa de tons
azuis e dourados, os cheiros agudizavam-se numa estranha sinestesia. De repente
tudo parecia concentrado num só objetivo, numa só missão de vida após os 90 que
lhe tinham sido permitidos.
Regressara a Coral Bay, à praia
dourada de pedras polidas brilhando em misteriosas cores nos charcos de água
salgada que se formavam ao longo dela. As aves marinhas soltavam gritos sobre a
sua cabeça e o rasto de uma tartaruga ainda se avistava na praia deserta no
despontar matinal.
À pungência da maresia juntavam-se
os aromas frescos e anisados que o interior da ilha enviava na brisa doce e
mediterrânica.
A Chipre de Arturo era um país
sob a bandeira britânica mas aquilo que por ela sentia não tinha a ver com
noções estritas e políticas de pátria. Para ele o amor à terra e àquele mar
azul, era uma segunda pele da qual durante tantos anos sentira uma saudade
imensa.
E agora ali estava ele , levado
num último sopro de energia, como se um milagroso regresso às origens fosse a
chave final com que a vida encerrava o seu ciclo.
Ali se fizera homem, quando aos
fins de semana saía a pé de Paphos e sem medos nem cansaços seguia até à
deserta Coral Bay.
Fora Egeria, 10 anos mais velha do que ele e
filha de um pescador, quem lhe desvendara os mistérios do amor. Na praia
deserta aprendera as rotas do corpo, bebera os elixires do amor e gritara com
as aves enquanto o corpo se retesava na areia dourada beijada pelas águas
transparentes.
A batida do coração desaparecia
quase , diluida num breve murmúrio, suspensa num suspirado final.
Agora os odores tinham ficado
mais acentuados à medida que ele recuava na história de vida. Maria, sua mãe,
atarefava-se na cozinha e os cheiros da strapatsatha, do húmus, da beringela
assada, pareciam substituir o sangue que já quase deixara de correr nas veias.
O último Natal na sua amada terra, o aroma quente da canela e a vasilopita que
nunca faltara na mesa foram a última sensação que o exauriu e fez partir.
Presa de um estranho
pressentimento Carlinda olhava Rafael suspensa do que a arrebatava, como se
algo a impedisse de viver, de respirar sequer. Era um aperto que a engolia como
uma boca escancarada, um buraco negro que a sugava desviando-a dos seus
prováveis desatinos.
Rafael que naquele momento a
desejava , não sabia se para se salvar de si mesmo, ou porque um sentimento
quase algoz se infiltrara nele, apercebeu-se e apertou-a nos braços
Carlinda tinha dentro dela algo
desconhecido que não sabia entender. Não percebia se era um aviso qualquer, se
apenas muito simplesmente o apelo da paixão que teimava em calar. Tinha em si
uma fornalha mesclada por epidérmicos calafrios e uma nova geografia corporal,
toda feita de de cumes em flor e riachos escondidos a correrem
desenfreadamente.
Sabia que nunca fora amada como
queria. O seu casamento nada tinha de romântico, nem de partilha de
sentimentos. Era apenas um dever que cumpria mecânicamente, como se já tivesse
nascido destinado que assim fosse.
Por fora escondia-se num tímido
vestido, numa madeixa de cabelo a tapar o fulgor do olhar. Por dentro
rebelava-se, a pele a gritar por ser tocada, os seios alvos a rebentarem
anseios, o ventre rubro a parir constantemente êxtases incontáveis dos quais
apenas as suas mãos sabiam o caminho.
Olhava Rafael e não sabia bem o
que queria dele mas tinha a certeza do que fazia, quando deixou cair o vestido
aos pés e o olhou com a fome de uma mulher só.
Ele esqueceu tudo no momento
ébrio e alucinado da visão de Carlinda.
Ali estava ela, quase pura e
intocada como se nunca as mãos de alguém tivessem passado por ela, falado nela,
brincado nela.
Rafael perguntava-se se ela
tomara a sério as propostas dele, mesmo quando as rejeitara num eterno
desprender-se de si própria, num desamar-se que a vida erradamente lhe
ensinara.
Contara-lhe a verdade, o desespero
que o acometera e o levara numa hora insana até às rochas. Fora cobarde,
sabia-o.
Mais cobarde era agora porque a
verdade não estava inteira, tinha outras faces e era tão curta e fugaz quanto o
último raio de sol. Era uma verdade pela metade, porque o som de todas as
palavras era demasiado áspero e pesado, rugia-lhe contra os dentes cerrados,
impedindo-o de gritar, boca aberta e olhos iluminados, aquilo que Carlinda devia
saber.
Aquele segredo penoso que o
amarrava numa impiedosa vergonha ficou encerrado na garganta, estrebuchando na
tremenda raiva e agonia por se soltar.
Mas ela parecia uma flor trémula,
uma espécie de papoila frágil, vermelha e aveludada mas prestes a perder as
pétalas mal a desdita lhe tocasse.
Desviou os olhos dela e fitou assustado o
vestido azul com bolas brancas que jazia no chão, como uma mancha a macular-lhe
a consciência.
Como podia falar-lhe de Álvaro?
Margarida Piloto Garcia
Uma delicia este conto
ResponderEliminarParabéns Margarida,pela forma subtil
e poética com que escreves