09/03/16

Razão de Existir - Capítulo I


“Sei, como todos nós sabemos, como pesa o tempo vencido sobre alguém que se aventura a descrevê-lo”
por José Cardoso Pires
em, Lavagante – encontro desabitado.


Sebastião Venceslau de Menezes era uma rotina. Quando a torre da igreja anunciava as horas e ele já tinha passado, estava atrasada seguramente. Diariamente, precisamente às oito, fosse qual fosse o tempo atmosférico, descia gotoso a rua de empedrado com o chão a colar-se-lhe aos pés como quem o prendia à vida monolítica. Vivia consigo mesmo. Fazia 90 anos.
Quem o olhava na rua via um saco vazio atirado para um canto. Vizinho cumprimentador, sem parcimónia mas ausente, tinha o bairro como um aglomerado de gente encastelada num atropelo em busca da refeição diária e ele, que já não lutava por nada, passava pela padaria, pelo mercado diário e, já com as compras no saco, sentava-se no café da esquina a molhar uma torrada seca na meia de leite, enquanto sorvia as notícias do jornal ou as cantadas pela televisão no primeiro diário do dia.
Tomava conhecimento da desgraça e da alegria com o mesmo desinteresse com que o gato se espreguiçava na janela do café lambendo os raios de Sol filtrados pelo calor da vidraça. O Mundo era-lhe o que sempre fora e quase nada valia a pena da refrega; era uma comédia transformada em tragédia por uma farsa.
Às dez em ponto, autenticadas pelo relógio colectivo, levantava-se a custo, despedia-se educadamente inflectindo e saía para o regresso a casa, agora mais esforçado. Todos o ficavam a olhar naquela lassitude bem portuguesa de quem parece que analisa mas não; aquele olhar sem ver, para mais tarde comentar sem jurar em falso. A verdade é que ninguém sabia nada sobre Sebastião Venceslau de Menezes; vizinho de sempre, o mais antigo do bairro. Os mais velhos eram catraios quando o conheceram já adulto, os outros tinham-se já retirado por imposição da vida. Era o único sobrevivente. Nem as casas que tinha dado origem ao local lhe tinham resistido. Era o Sr. Sebastião da casa térrea. Ponto final.
Dizem que o que conta é a primeira impressão, o impacto da primeira imagem; mas o que fica para memória futura é a decadência dos últimos momentos dum homem; e hoje, todos o olhavam com pena sem saberem bem porquê.
O seu Mundo era uma invenção há muitos anos, uma espera, tempo de mais perdido. Desde que deixara o emprego e se dedicara ao conforto da reforma, a vida prolongara-se-lhe numa oleosa constância de ‘rien faire d’utile’, uma geleia sem consequência. Os mesmos horários, as mesmas tarefas, as mesmas comidas e gostos, os contratempos a tempo, as necessidades a destempo. Tudo sem tempo definido e indefinidamente.
Sentia-se num moribundo Inverno reduzido a uma estante de carvalho velho onde alojava uma biblioteca acumulada e quase um século de memórias próprias. Agora, a vida chegava-lhe por palavras alheias e já nem as dele lhe pertenciam, tal era o adiantado da idade e a descolagem do Mundo. Nunca pensara durar tanto, mas sentia-se bem, mais pesado, enfim, mais dorido, esquecia-se das chaves na porta frequentemente, mas, apesar de tudo, sentia-se bem. O problema é que, quando olhava o horizonte para lá do muro do quintal nada lhe dizia respeito.
Relutava em fazer parte do Mundo de hoje, que dizia não ser dele, e há mais de uma década que pensava dedicar-se a folhear a sua vida e a escrever as memórias do que vira e sentira quando vivera. Não sobre mim!, o que haveria a dizer de interessante?, palavras dele, mas sobre o que vivera, quem conhecera, e sobre o que tinha sido a relatividade do tempo. De outros tempos.
Finalmente, dedicara-se a declamar para o papel as vivências extrospectivas e para isso, além duma memória lavada, tinha todo o tempo que lhe restava e a vasta biblioteca que o ajudavam a esclarecer alguma dúvida metódica ou circunstancial. De maneira que, quando desesperava sentava-se mais uma vez a punir as teclas da velha máquina de escrever que, ultimamente, não lhe falava, não lhe desenrolava o acontecido surpreendente, não lhe ditava nada de jeito. Era uma aflição, um deserto de ideias que lhe secava a garganta numa angústia medonha, e embora soubesse que o tempo era o grande resolvente para a maioria dos problemas, os seus, urgiam agora de impaciência.
O seu grande tormento era reduzir à simples escrita a grandeza do sentir das emoções e seus pensamentos. Sabia que era a emoção que o fazia sentir e pensar o que sentia mas, como dizer? A tradução em símbolos dum conceito belo, podia ser conspurcado pela má interpretação dum ignorante, ou mesmo, conscientemente, por um ‘anti-esteta’, mas e principalmente, pela falta de destreza e sageza do relator. Como conseguir a pureza da transmissão fidedigna?
Nunca tinha sido notícia pública, destaque para além de algumas pessoas suas conhecidas, mas vivera momentos, alguns tão prolongados na relatividade do tempo que até se podiam nomear de felizes e notórios. Tinha alguma coisa a deixar! Porque vivera uma vida… E naquele circunvagar lento da memória, escorria-lhe um tempo, onde tinha criado, onde tinha amado, onde tinha vivido. Gostava que um dia lhe viesse à cabeça um texto futuro. Tudo o que lera até ao momento, ou que escrevera, lhe era passado, num pretérito muitas vezes imperfeito. Quem sabe um dia conseguiria projectar um texto num futuro quase perfeito baseado nas suas imperfeições e das que conhecia do Mundo.
Ontem, talvez pelo que bebera no telejornal da manhã enquanto mastigava a sua torrada pensara um pouco em política. Nunca fora monárquico porque não acreditava na divindade da transmissão de poderes, cria no processamento eleitoral e consequente posse administrativa dos governos, que preferia democráticos, no entanto sabia que as ditaduras modernas tinham sido votadas por maiorias de pré-oprimidos e que liberdade e justiça eram utopias que nos faziam esquecer o concreto e definido da realidade com que nos batemos diariamente e que nos aprisiona sem razão aparente. O ‘ser partidário’ era a sua parte etimológica, por isso, não tinha partido político e via-os todos como um todo faccioso. Sabia bem que o Mundo preferia a lantejoula ao forro; mas ele não, gostava de sentir o conforto de enfiar um sobretudo deslizando as ideias em bons tecidos; por isso, quando o comentador dissera em deferido que:
“- Somos Portugueses, um clube de benévola tolerância para com os impostores, fadados por uma existência cantada à guitarra e centramos a nossa actuação mais nas potencialidades do acto desenrascado e na desculpa esfarrapada do que na caixa craniana.”
estremeceu na cadeira.
Nunca fora, nem básico, nem ácido, antes de feitio vincado; há muito que a sua maneira de ser, moldada por anos de encontrões tinha uma serenidade bovina, de paz e em paz; mas ali, perante aquela frase feita, dita por aquela entidade janota, avivaram-se-lhe as urticárias despertando-lhe comichões antigas. Taurino, pasmaram-se os comensais, atirou-se mesa afora desembolado e sem despedida visível subiu a rua com um destino e uma desenvoltura de jovem. Disse-se à boca pequena, que até parecia raiva.
Nos afazeres domésticos da manhã percebeu que não se sentia bem, qualquer coisa, não sabia, lhe palpitava o coração, uma inquietação, talvez mais, uma vontade irrequieta para a qual já não teria idade e «tenho de falar com o médico» lhe mostrava uma vontade para fazer qualquer coisa que nem sabia o quê.
Aquele dia foi-se-lhe vertendo nervosamente; arrumada a casa não conseguia a serenidade para escrever, estava revolto, sem concentrar as ideias numa provável história interessante da sua vida para deixar a ninguém. Rabiscava aqui, cortava acolá, pedia à memória que o deixasse contar, vagueava por, nem sabia, para voltar ao papel e, divagava, voltava ao devaneio. Não se lembrava dum desassossego daqueles.
Chegada a noite, enrodilhou-se na lareira com um livro no colo para disfarçar, olhou o borralho intensa e demoradamente, e adormeceu.
Entrou pelo consultório adentro, cumprimentou a recepcionista e:
- O Manel está?
- Bom dia senhor Menezes; tão cedo por cá?
- É verdade menina, é de manhã que se começa o dia e atacam as preocupações. O Manel?
- O senhor doutor chegou agorinha mesmo, vou dizer-lhe que o senhor chegou. Faça o favor; sente-se um pouquinho...
Ainda não tinha medo da morte, no entanto, consultava com regularidade o seu médico de há mais de trinta anos. Um velho amigo de competência e boémias reconhecidas por toda a cidade, o que lhe atestava credibilidade e distinção não só sobre as maleitas do corpo como no aconchego das do espírito. Estava, e sentia-se, por isso em segurança tendo em conta a longevidade das práticas e alguns sucessos proclamados. De mais a mais, o médico escrevia num periódico da cidade sobre as moléstias do mundo carnal e existencial tendo em conta as oncologias da vida urbana. Era para isso também que o consultava hoje.
- Olá senhor Menezes. Que cara e essa? Não estou a gostar dessas olheiras. Dormiu mal?
- Olha Manel, tu ainda escreves naquele jornaleco… como se chama?
- No Paladino, chama-se Paladino, senhor Menezes. Dê-me cá o braço para medir as tensões…
- Não é preciso homem, estou tão antigo que já nem lembro da velhice.
- Hum… mas, sobre o semanário da terra, precisa de alguma coisa?
- Sabes que, de vez em quando, tenho umas enxertias de pensamento, zango-me como as pessoas, por assim dizer, e pensei que… quem sabe… eles não precisam de ninguém para escrever lá?
- Senhor Menezes, o senhor tem as tensões em modo explosivo, tem tomado os medicamentos?
- Às vezes incomodo-me, tenho idade para um viver feliz de menino mas ontem, olha, deixa lá; com quem falo lá no jornal?
- Senhor Menezes… tem de ter mais cuidado consigo, não pode deixar os medicamentos para quando lhe dá jeito, a medicação é uma rotina de vida, o senhor…
- Mas quais rotinas de vida rapaz!, as rotinas são todas de morte, tu sabes lá o que é a vida!, diz lá; tens alguém lá no jornal com quem possa falar?
- Tenho senhor Menezes, tenho. Vou dar-lhe um cartão de recomendação ao director, será um prazer tê-lo como colunista, mas só se me prometer que vem cá amanhã medir as tensões e que continua com a medicação disciplinadamente.
- Está bem… está bem…
- Mas o que se passa homem? Não me lembro de o ver tão agitado…
- Olha; ando a escrever umas coisitas… enfim, por vezes lembro-me de cada uma que, mesmo escritas, ninguém se acredita; pronto!, lá está o velho, dirão; coisas, passagens, imagens, que queres que te diga, vivências, pronto. E agora, veio-me tudo à cabeça em catadupa, como quem vê um filme todo numa fotografia só, vários planos de vida, e isto à noite, tudo chapado numa só imagem, esparramado num quadro sem ordem e de nexo duvidoso. Pelo menos parece-me. E, a partir de agora, já sei, que eu conheço-me, hão-de vir todas aquelas noites que nunca mais amanhecem.
- Tomou os seus comprimidos para dormir?
- Nada, homem! Então, não achas que estarei brevemente a dormir em definitivo; queres acelerar o processo? Agora? Que tenho tanta coisa para contar! Tens cada uma…
O médico, que vivia aplicando-lhe a sua experiência vaticinando silenciosamente finais calendarizados de consulta em consulta e, felizmente, errando com persistência graças à robustez e tenacidade da esperança de vida, escreveu num seu cartão-de-visita “sr. dr. Elídio, o cavalheiro que lhe apresenta este cartão é meu amigo desde sempre e era-o já do meu pai. Gostava que o recebesse como um amigo também. É um homem vertical, quase centenário.”


José Bessa

2 comentários:

  1. Gostei, gostei muito e espero voltar a desfrutar de tão boa escrita, obrigado

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  2. Mano!!! Que começo estimulante!!! Vim cá ver os contos e comecei por este, sem saber de quem era o primeiro capítulo. Só vi que era teu ao chegar perto do fim. Wow!!!! Doida pra ler o resto! (Um por dia!)

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