13/04/18

Voar Sem Asas - Capítulo IX

Foto © João J. A. Madeira 


Apesar de a noite já cair sobre aquele lugar perdido não se sabe bem onde, Orionte mantinha os óculos escuros. A comunidade tinha-se reunido novamente antes do descanso noturno para aproveitar ao máximo a presença dos três chefes de família, que deveriam partir logo pela manhã. Todos aparentavam sentir-se confortáveis dentro daquela paz artificial. Todos menos Orionte. Orionte servia-se dos óculos para observar Laíssa, sem ser notado. Ela também não se sentia confortável.
Laíssa mexia-se e remexia-se com uma inquietude que mais ninguém parecia notar. Não prestava atenção à conversa e até aos carinhos de Iosef, respondia de uma forma automatizada.
As palavras de Rafael não lhe permitiam tranquilidade. E Orionte?… A resposta intempestiva que o fizera sair de detrás da moita para questionar Rafael. Saberia ele de alguma coisa que nunca demonstrara? Não, o mundo não podia resumir-se apenas àquilo que ela sabia. É certo que naqueles livros que o pai selecionava para ela ler se descrevia um mundo muito mais complexo. Mas o pai também lhe dissera que as coisas tinham regredido, que a fúria desenfreada com que o ser humano tinha abusado dos recursos do planeta tinha feito com que se tornassem escassos e por isso agora eram só para as elites. Era uma explicação plausível, lá isso era. Ainda assim, não a desinquietava… e as mulheres? Porquê aquela perseguição? Quase mito… de que eram em número tão reduzido, que eram procuradas como objectos preciosos.
Era isso. Era assim que se sentia! Um objecto. Uma coisa que o pai e Iosef manipulavam a seu bel prazer.
- Laíssa… Laíssa, querida?...
- Hum… o quê? O que foi?
- Querida, estou a chamar-te há que tempo e não me ouves.
- Desculpa, estava distraída…
- Isso vi eu… olha, vou dormir que amanhã eu, o teu pai e Naldan partimos cedo.
A noite foi muito agitada dentro de si própria e quando os três homens se juntaram para rumar ao seu destino, Laíssa já lhes tinha preparado tudo o que precisavam levar, despedindo-se sem mais demora. Parecia que os queria ver pelas costas. Pensou, ao vê-los desaparecer na curva do caminho. Não devia ter agido assim. Mas pronto, já estava… encolheu os ombros e voltou para dentro de casa.
Com a luz do dia ainda difusa, tropeçou numa caixa grande que estava encostada à parede, no seu quarto. Era uma das que tinha trazido de Malpertuis. Por esquecimento ou por falta de tempo, tinha ficado para ali arrumada. De súbito, parou quando viu o conteúdo derramado. Como é que nunca mais se lembrara daquilo? A caixa continha livros. Um livro em especial que tinha escondido no meio dos outros. Na véspera de o pai lhe ter anunciado a fuga inesperada, tinha-o encontrado no quarto dele. Estava escondido no fundo de uma gaveta, com vários objectos sem importância por cima. Primeiro ainda pensou em lhe perguntar se o podia ler, mas logo mudou de ideias. Se o pai o tinha ali escondido, era porque não queria que ela o lesse…
Ávida de descobertas, Laíssa sentou-se na cama com o livro no colo. A primeira coisa que reparou foi a data da primeira edição. Era bastante mais recente que os que habitualmente lia. Aquele livro tinha pelo menos, menos um século que Os Maias, Amor de Perdição e outros que tais. Datava do início do século XXI. Começou a ler devagar. O livro contava a história de uma mulher. Uma mulher muito importante, que tinha sido CEO de uma grande multinacional. Não imaginava o que poderia ser isso, mas com certeza era algo com muito poder. Essa mulher trabalhava com a internet e deslocava-se num carro que ela própria conduzia. E mais surpreendente ainda: lidava com os homens de igual para igual. A princípio pensou que fosse uma história inventada, como aquelas que o pai lhe contava quando era criança, mas à medida que avançava na leitura, ia sentindo cada vez mais a realidade de tudo o que ali era relatado. Até porque a mulher, para além de tudo o que lhe era estranho, tinha outra parte da vida onde era mãe e esposa como ela sempre pensara que tivessem sido as suas antepassadas.
Mergulhou de tal maneira na leitura, que às tantas já se sentia ela própria a protagonista da história. E lia como uma faminta que precisava daquelas informações como de pão para boca. Ah, como gostaria de ter sido aquela mulher… revia-se perfeitamente nela.
Tinham passado algumas horas quando retornou à realidade. Continuava sentada na cama, com as pernas estendidas e recostada na almofada que tinha ao cimo. Ainda tinha o livro no colo, mas agora estava aberto na última página. Virou a capa e leu o que não tinha lido antes: “Biografia Autorizada de Mary Barra”.
Estava atordoada com tanta informação, mas de uma coisa tinha agora a certeza: as mulheres podiam ter um papel muito mais interveniente na sociedade. Tal como ela sempre imaginara e nunca se atrevera a revelar, por recear que fossem delírios da sua mente inquieta.
 Porque é que o pai lhe impedira o acesso àquele conhecimento? Num sentimento de benevolência, decidiu que ele o fizera para a proteger. Para evitar que a sua ansiedade por mudar o mundo extravasasse para fora do seu pensamento e a levasse a meter-se em sarilhos graves… muito graves. Pois o pai conhecia-a, sabia o pequeno monstro que tinha criado mesmo contra a sua vontade. Desde muito pequena que aquela sede de entendimento, a fúria pela reclusão a que estava sujeita, as manhas para driblar todos os contratempos se tornaram evidentes para o pai, que tudo tentara para a refrear. O pai apenas quisera protege-la de si própria, como qualquer pai sempre faz de tudo para proteger os filhos. Mas agora era tarde…
O monstro saíra de dentro dela e já não havia forma de o parar. Laíssa precisava saber mais sobre aquele outro tempo que até então desconhecia. Mas como? Onde é que podia ir buscar o que precisava? Falar com o pai estava fora de questão. Se conseguisse um acesso à internet… mas nem sabia onde pudesse existir.
Rafael! Era isso, se conseguisse falar com Rafael talvez arranjasse maneira de o persuadir a leva-la a algum lugar onde houvesse esse acesso.
Levantou-se para ir falar com Thays. Não iria revelar nada à amiga, mas talvez fazendo-a repassar as últimas conversas com o irmão, detectasse alguma pista que a levasse a um contacto com Rafael.
Estava entre portas quando ouviu o zumbido metálico que tão bem conhecia. Não! Dessa vez não ia mostrar-se ao controlo. Só ela sabia a revolta que sentia de cada vez que tinha de se por a jeito para aquele olho indiscreto. Voltou para dentro de casa e varreu o espaço com os olhos à procura de onde se esconder. Fixou-se no alçapão que se habituara a ver ali no chão do quarto. Afinal, aquele abrigo que sempre lhe lembrara guerras antigas, não eram tão antigas assim.
Desceu os degraus, fechando a portinhola por cima da cabeça, e aninhou-se no escuro à espera que o perigo passasse. Sim, porque para ela aquele é que era o verdadeiro perigo. O perigo de não saber de nada, de não a deixarem evoluir, de não a deixarem crescer… de não a deixarem mudar o mundo.
Passou um tempo indefinido, até que ouviu o zumbido afastar-se. Saiu com cautela e dirigiu-se para a rua. Naquele instante sentiu um vazio dentro de si. O silêncio que sempre sentira como a grande harmonia daquele lugar era agora aterrador. Correu a casa de Thays, foi até à albufeira, chamou Thyara e também a amiga. Gritou alto, muito alto, a ver se alguém a ouvia. A resposta era apenas o eco da sua voz.
Estaria outra vez só?
Desfalecida, deixou-se cair sobre os joelhos dobrados… de repente olhou e viu Orionte pelas costas, de mochila ao ombro e bordão na mão.

                                                                                Luísa Vaz Tavares

42 comentários:

  1. Imagino o quão angustiante estaria seu coração!!!
    ... Gostei da prosa!!!
    Uma SEXTA 13 ... com muita SORTE!!!

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    1. De facto, Laíssa vive angustiada com o mundo que conhece.
      Obrigada, Gracinha.

      Bom resto de fim-de-semana!

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  2. Fantástico. Pena que acaba logo.
    Beijos. Da primeira fila.

    silvioafonso




    .

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    1. Silvio, obrigada pelo comentário.
      Continue a acompanhar!

      Bom resto de fim-de-semana.

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  3. Ola...adorei a visita, e aqui ao seu convite entrei, precisarei de tempo para ler todos esses contos que aqui possui, adoro ler, então com certeza aqui achei uma oportunidade impar!!virei sempre, e sempre que der aparece por la tbm bjucas

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    1. Leia, que vai gostar. Cada autor tem o seu estilo, mas todos na mesma linha construímos uma história, que tentamos seja apelativa.
      Farei uma visita.

      Bom resto de fim-de-semana!

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  4. Maravilha, envolvente com vontade de que não termine. Um sonho interrompido muito bem delineado.]

    Destaco:
    "Desceu os degraus, fechando a portinhola por cima da cabeça, e aninhou-se no escuro à espera que o perigo passasse. Sim, porque para ela aquele é que era o verdadeiro perigo. O perigo de não saber de nada, de não a deixarem evoluir, de não a deixarem crescer… de não a deixarem mudar o mundo."

    Grata por me proporcionar tão agradável leitura e também pela visita ao meu novo blog. Que tal uns versinhos sem a vogal "A"? me daria muita alegria.
    Abração!
    Diná

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    1. Obrigada, Diná. Continue a acompanhar-nos e saiba como se desenrola a história.

      Versos sem "A"... hum, não é fácil. Mas vou tentar :)

      Bom resto de fim-de-semana!
      Abração

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    1. Obrigada, Maria. Continue a acompanhar-nos.

      Beijinhos
      Bom resto de fim-de-semana!

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    1. Cada autor com o seu estilo, tenta manter a história interessante. Que bom que estamos a conseguir.

      Abraço e bom resto de fim-de-semana!

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  7. A memória do passado, escondida.
    Uma mulher que liderava.
    A esperança num "sem eira nem beira".
    Ansiedade.
    Solidão?

    Um bom capítulo com um bela prosa.
    Parabéns Luísa. Um gosto ler.

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    1. A mulher que tenta sempre ir mais além :)

      Bessa, obrigada por teres preparado tão bem o terreno.

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  8. Capítulo escrito por uma mulher, que conhece bem as reações femininas.
    Laíssa à frente do seu tempo, como sempre acontece. Orionte sempre atento. Aguardemos!

    Bom fim de semana. Saudações.

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    1. As mulheres sempre visionárias... :)

      Obrigada pelo comentário, Céu!

      Bom resto de fim-de-semana!

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  9. Gostei muito, agora é esperar pelo próximo capítulo para ver que rumo irão dar ao conto. :) Bom fim de semana.
    --
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    1. Vamos ver o que nos trazem os próximos autores.

      Bom resto de fim-de-semana!

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  10. Um pouco de realidade no nosso conto, já fazia falta!

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    1. São as várias vertentes que constituem o todo :)

      Beijinho, Dina!

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  11. Tentamos manter o interesse :)

    Abraço
    Bom resto de fim-de-semana!

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  12. Respostas
    1. Obrigada, Francisco.
      Continue a acompanhar-nos e conheça os próximos autores.

      Abraço

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  13. Gosto muito de teus textos por fluir naturalmente e tal Dostoyevski, externa os sentimentos humanos, principalmente da da mulher. Parabéns, amiga! Minha admiração. Grande abraço. Laerte.

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    1. Obrigada.
      Fico feliz de te encontrar aqui.

      Outro grande abraço desde aqui!

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  14. Um excelente e apreciado trabalho Literário. Assim vocacionada, auguro os maiores êxitos.


    Beijo
    SOL

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  15. Continuando a acompanhar esta excelente publicação colectiva.
    Boa semana

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    1. Obrigada, Pedro.
      Espero que continue a acompanhar-nos e que continuemos a agradar-lhe.

      Bom resto de semana

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  16. Mais um capitulo que me continua a aguçar a curiosidade.
    Boa semana

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  17. Estamos já todos à espera do próximo autor :)

    Bom resto de semana!

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  18. Olá Luísa,vim deixar meu carinho e desejar uma ótima tarde... Continuo no aguardo, Gostei muito desse trabalho coletivo.
    Bjss1

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    1. Olá, Diná. Ficamos sempre à espera do próximo capítulo, não é?
      Boa semana!

      Beijinhos

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  19. Muito interessante este conto com novos elementos que nos aguçam a curiosidade. Muito bom Luisa bjs.

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    1. Obrigada, Clementina!
      Vamos ver o que nos vão trazer os próximos autores. Beijinhos

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  20. Não li o que antecede o texto. Nem faço ideia de como trabalham para este conto a várias mãos. Por isso, é impossível avaliar de forma honesta. Mas a sua prosa é escorreita, acontece alguma coisa durante ela e deixa margem para a continuação:). A luta das mulheres pelos seus direitos tem muito modo para ser dita.

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    1. Cada autor escreve um capítulo, mediante uma escala que elaboramos no início de cada conto, e publicamos semanalmente. Se "andar" para trás no blogue, encontra os capítulos anteriores e a forma como cada um tem desenvolvido a história desde o início.

      Boa semana!

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  21. Voar sem asas... Sonho de todo homem! Lindo, parabéns!

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  22. first visit to your beautiful blog my friend and i am stunned with you magnificent way of writing!!!

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  23. Gostei imenso deste capítulo.
    Uma excelente narrativa. Parabéns pelo talento literário.
    Continuação de boa semana.
    Abraço.

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    1. Obrigada, Jaime.
      Fico agradada com as suas palavras.
      Boa semana e um abraço!

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