06/04/18

Voar Sem Asas - Capítulo VIII

Foto © José Bessa


Manhã cedo, Orionte foi descendo lentamente o vale em direcção às casas.
O vagar com que o fazia não lhe revelava a idade já avançada, mas o hábito expectante que a vida lhe ensinara. Só após o nascimento da neta se fixara; mantendo apenas a peregrinação anual às Três Marias como ritual de transcendência. De resto, para além das tarefas diárias necessárias à sobrevivência, só as deambulações em ritmos e hábitos contemplativos.
Quem o visse, agasalhado apenas com uma túnica, apoiando-se num bordão e levando de bagagem somente uma velha mochila, lembrar-se-ia de contos antigos, ascetas e profecias. Apenas duas peças da indumentária faziam regressar aquela imagem à realidade dos novos tempos; as botas, adaptadas à árida gravilha que grassava alastrando-se na paisagem, e, por contraposição, um indiscreto medalhão que usava sem rebuço, apesar da proibição em se exibirem quaisquer objectos que transportassem memória.
Orionte não era um rebelde incitando pessoas para comportamentos à margem das imposições superiores, não, ele era superior, e surpreendentemente admirado por quem o via surgir.
Uma nave pairou sobre as casas. Homens, mulheres, e crianças mostraram-se, como era ordem expressa, e os cabelos elevaram-se num efeito bizarro. Fixaram o óvulo exterior para identificação ocular e aguardaram sinal para continuar as suas tarefas. Orionte mantinha os seus óculos de Sol, ostentando-os à câmara circular que, sem sucesso, tentava estabilizar o seu olhar.
Um sorriso cresceu-lhe nos lábios. Ah… como gostava de provocar…
Foi notada a atitude cómica do recém-chegado, de braços abertos como quem se oferece, e longo cabelo no ar dissipando electricidade estática na brisa da manhã.
Quando a nave abandonou o local elevando-se lentamente no céu garço, abeiraram-se do forasteiro perguntando-lhe se necessitava de alguma coisa; mas não, Orionte gostava de apreciar a surpresa que provocava «Não, muito obrigado, aguardo só o meu filho…», e aninhou-se encimando a pequena coluna que outrora segurava um portão, lembrando um capitel.
Aquele desconhecido sentado em frente da casa devoluta gerava alguma curiosidade e inquietude, no entanto, o local regressou a uma aparente normalidade e os poucos habitantes dispersavam para a suas rotinas solitárias. Thays e Laíssa levaram Míryo para mais um passeio à albufeira. No topo da colina avistaram-se três vultos que chegavam, Laíssa acenou como se os esperasse. Alguém aguardava na borda do lago, e…
- Rafael?!. Bom dia… Que fazes cá tão cedo?... Não te esperava…
- Vim despedir-me…
- Despedir-te?! Mas, despedir-te?...
- Sim, Thays, vou fazer uma viagem e, talvez não volte…
- Fazer uma viagem, onde? Nunca me tinhas falado em viajar; e, vais com quem?
- Vou só…
- Só?! Mas… queres contar-me o que se passa?... Tu és meu irmão…
- Os superiores tinham-me prometido que, se superasse os objectivos, me dariam a oportunidade de… viajar e… talvez ficar a viver lá…
- Lá?!... Mas… Onde fica “lá”? E, quem são os “superiores”?
- Não posso dizer-te, Thays… Não estou autorizado.
- Rafael! Por amor do Universo! Não me deixes nesta ignorância! Diz-me! Que é isso de, “objectivos”?!
- Não posso dizer-te mais do que - é um local escolhido onde vivem pessoas, em comunidade…
Laíssa assistia à conversa com a habitual atenção, mas sem intervir. Tantas vezes tinha questionado aquela paz, aquela vida controlada mas não escondida… Um dia perguntou ao pai o que ele sabia sobre aquela comunidade e ele respondera-lhe que por enquanto não lhe poderia dizer nada, «temos de ser prudentes, Laíssa…», que era um local seguro, que ficasse tranquila. Quando o questionou sobre o pai de Míryo, alertou-a «tem cautela!… não faças perguntas embaraçosas… podemos ser expulsos…». Sim, já tinha sentido o incómodo quando questionara Thays sobre o filho, e na evasão de Rafael ao aperceber-se que ela lhe iria perguntar sobre a agência de viagens.
Era agora o momento de obter respostas do Rafael sempre esquivo, agora, ou nunca… agora, que ele ia embora definitivamente e não teria problemas em revelar o que sabia, agora, que pensava viver com Iosef, agora que iria ter uma família, talvez… Era o momento!
- Rafael, tu e… a Eduína, são as únicas pessoas que nos visitam que conhecem outros locais, outras gentes. São as únicas pessoas que nos podem contar como é lá fora… E agora, tu vais embora… E vais sem nos dizeres nada que nos possa ajudar a entender o que se está a passar, o que sabes destes segredos, dos motivos que geram este medo constante?... O que sabes tu, Rafael, que não nos podes dizer?...
- Nunca te perguntaste como era possível, tu, Laíssa, e as outras mulheres desta pequena comunidade poderem circular sem preocupações, sem se manterem escondidas ou dissimuladas; e nunca terem desaparecido?
- Sim, estranhei, perguntei-vos até, e só obtive evasivas. Eu nunca tinha vivido assim, só tinha conhecido a clausura e o segredo, os cuidados para ser invisível, a protecção do meu pai que tinha medo que soubessem da minha existência… cheguei a acreditar até que não havia mais mulheres…
- Já pensaste, Laíssa, que quase todas as mulheres pensam que são, a única mulher? Já questionaste, porquê? Porque pensam assim?
- Não entendo, Rafael…
Rafael estava num estado nervoso próximo do transe. Vagueava o olhar vítreo entre a irmã o sobrinho e o ondular da água. Um misto de vergonha e culpa apoderou-se dele provocando-lhe um tremor que mal conseguia disfarçar. Balbuciava frases sem nexo, sussurrantes; circulava titubeante à volta delas.
- Olha para a minha irmã… O problema não é semente Laíssa, semente compra-se! Terra não. Onde está a nossa capacidade de gerar? Onde germinam as nossas vergônteas? Onde vês terra Laíssa? Para onde levaram a terra Laíssa? Já pensaste nisso? E, com que finalidade se rouba a terra a esta Humanidade?
- A “esta” Humanidade, Rafael?!
- Sim. Já te passou pela cabeça que pode existir outra Humanidade? Ou; várias Humanidades?!
Orionte tinha-se mantido por perto em intencional invisibilidade mas atento ao desenrolar da conversa. Desconhecia quem era Rafael e que informações tinha, mas estava cada vez mais curioso com o avançar da conversa e adivinhava que aquela personagem podia ter respostas para muitas dúvidas antigas, quem sabe, a resposta para alguns mistérios que assolavam quem se preocupava, quem era curioso, quem questionava.
- Unanimidades! Quer o senhor dizer…
- Hã!
- Desculpe?…
- Apresento-me… Chamo-me Orionte, e cheguei esta manhã…
Thays manteve Míryo firmemente no colo, num sinal de posse nada habitual.
- Ouvi-o falar em Humanidades… Estou curioso… No tempo que levo de vida só conheci comunidades; gentes separadas cuidando da sua individual sobrevivência sem futuro além da vida pessoal, pessoas sem a noção de conjunto geral, do Ser Universal… pessoas a quem antes chamavam egoístas porque tinha conhecimento do todo mas não lhe tinham respeito, e agora só conhecem a parte imposta por alguém que desconhecem. O senhor Rafael conhece mundos para além deste mundo? Humanidades para além desta, chamemos-lhe também, Humanidade? Parece-me que sim… Trabalha em viagens, não é? Viagens… O que nos pode dizer então, agora que está de saída não pensa voltar e deixa família?
- Pai! Então; chegou sem aviso? Sempre o mesmo…
- Olá Iosef! Ainda bem que chegas…
O encontro com os três recém-chegados veio arrefecer a ansiedade da conversa. Orionte cumprimentou Naldan já com Thyara ao colo, Iosef beijou carinhosamente Laíssa acariciando-lhe o cabelo, Thays estreitou Míryo com carinho e deu a mão ao pai que olhava por cima das cabeças procurando Rafael. E naquele instante, naquela reunião em que todos se cumprimentaram com alegria, sentiu-se o calor humano do encontro, o afecto dos iguais, a fraternidade que “alguém”, um dia, pensou poder destruir pela mutilação.
Juntaram-se ali, naquele momento, quase três famílias… três gerações. Só Rafael se ausentara…
Rafael transportava o queimor do remorso, da perfídia, da insídia para com todos, daquela Humanidade.

José Bessa

38 comentários:

  1. Um conto deveras interessante me curiosa dimensão!!!
    Gostei de ler!bj

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  2. Parabéns Bessa-Jose, agora com mais abertura á ficção, o que adoro, o conto continua a prometer

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  3. Belo conto e foto, mesmo que com a árvore despida, quem sabe, despida de preconceitos.. :)))
    Abraço e obrigado.

    Olhar d'Ouro - bLoG
    Olhar d'Ouro - fAcEbOOk

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    1. Obrigado.
      Não é fácil encontrar a imagem "certa".
      Um abraço.

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  4. Boa tarde, a bela imagem está em sintonia com o belo conto, José Bessa! a criatividade é sempre bem vinda.
    Bom fim de semana,
    AG

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    1. Obrigado.
      Habitualmente escrevo, e só depois procuro uma imagem para "abrilhantar" a prosa. Desta vez, foi ao contrário; aquela árvore foi o mote para a prosa. Está despida, mas não seca... :-)

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  5. Narração excelente. O contadores de Histórias possuem um Dom magnífico. Parabéns.


    Abraço
    SOL

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  6. Bom dia José Bessa, voltei para ler mais, gostei da sua narrativa, um conto curioso com um toque místico. Não gosto de ler contos extensos, mas este prendeu minha atenção do início ao fim.
    Admiro muito quem bem desenvolve o dom de contar histórias.
    Votos de um feliz domingo com ótimas inspirações!

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    1. Obrigado.
      Espero que fique, para nos seguir até ao fim. :-)

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  7. Excelente capítulo. Gostei bastante da reviravolta dada à história, que volta assim ao tema original. FC.
    Parabéns, Bessa!

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    1. Obrigado, Luísa.
      A passagem pelo Alentejo foi a minha salvação... :-)

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  8. Estive lendo, na diagonal, os capítulos anteriores escritos por diversas pessoas e todas têm um fio condutor na escrita, o que é bom para o leitor e também para vocês.

    Gosto de textos grandes, embora o conto não seja o "menino dos meus olhos", a forma literária preferida, mas sabe-me bem ler e imaginar.

    Aqui há ficção e talento, muito talento, sem duvida. Gramaticalmente, morfológica e sintaticamente, o texto está quase perfeito e o diálogo dá-lhe um certo dinamismo, pois descrição ou narração extensas cansam quem as lê.

    Há muito que não via escrita a palavra hã, tão comum na nossa Língua, e fiquei alguns instantes nela detida. Hã, ahn, hãn, tudo o mesmo, agrada-me. É linguagem, escrita popular e exprime à-vontade literário.

    Orionte, nome de um dos personagens ou das personagens, fez-me pensar, no início da leitura, numa constelação, ou seja, Oríon, mas afinal não era e não é. Interessante a descrição, que o Zé Bessa faz dela. Enigmático, mas simultaneamente um homem simples.

    O nome escolhido e dado às personagens foi outra "coisa" engraçada. Fazem-me lembrar nomes árabes, de que muito gosto. Donde veio essa ideia?

    Estamos em que planeta, neste conto (rs)? Creio, que vocês são todos portugueses e terrestres, mas, como conto que é, vá de pôr "palha" para nos atraírem. É assim, que se deve fazer, contudo há que ter em conta o tamanho do conto. Se muito grande, desmotiva e a nossa gente, em geral, não tem o hábito da leitura e muito menos deste tipo. É fácil comentar e dizer: gostei muito ou lindo demais, mas isso abarca "n" possibilidades, ou melhor, nada nos diz.

    Grata pela visita e comentário àquilo, que escrevo.

    Abraço e boa semana.

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    1. Grato pelas suas palavras.
      De facto, Orionte, Três Marias, enfim… quem sabe o que nos trará o pó do Cosmos. E, sim, estamos no planeta Terra, assolado por uma maldade que teremos, imperativamente, de resolver.
      Convido-a a seguir os próximos capítulos; neles sim, saberemos o que nos espera.
      Farei uma visita também. Um abraço. :-)

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  9. Que óptima ideia esta do conto. Tentarei ir ler a restante história! :)
    --
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  10. Olá amigo, um conto que li sem pestanejar e achei pouco. Adoro ler e quando o escritor consegue transportar o leito, para dentro da escrita é óptimo. Adorei. Beijos com carinho

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    1. Obrigado pelas suas palavras.
      Convido-a a seguir-nos, vai tornar-se empolgante. Acredite. :-)

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  11. Para continuar a acompanhar não me atrevendo a tentar adivinhar o que se segue.
    Aquele abraço, boa semana

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  12. O (leitor) queria eu dizer rrss...esta escrita inteligente dá-me cabo do cadastro. Um abraço

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    1. Eu percebi rosa-branca... :)
      Estas máquinas, supostamente, foram inventadas para nos ajudar, mas, às vezes... :D

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  13. Consigo visualizar o cenário e as personagens.
    Muito bom.
    Abraços

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  14. Boa construção narrativa. Visualista e atenta aos pormenores. Boa construção das personagens.
    Atenta estarei à continuação.

    Beijo meu

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  15. Olá, José Bessa

    Bom dia:

    Mais um Capítulo promissor. Mais gente e mais "suspense".
    Gostei da ideia da existência de mais "Humanidades".
    Talvez possamos aprender alguma coisa umas com as outras,
    já que "esta", a nossa, não consegue encontrar-se.

    Muito obrigada por este belo texto.

    Abraço

    Olinda

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    1. Obrigado, Olinda Melo.
      tenhamos esperança na(s) Humanidade(s). :-)

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  16. Que "humanidades" se perspectivarão no horizonte? Só o Autor saberá. Mais um desafio lançado. Parabéns, José Bessa

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    1. Obrigado, João Madeira.
      Há que seguir o conto... tudo se saberá... :-)

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  17. Este conto continua a ser bem contado.
    Parabéns aos autores.
    Continuação de boa semana.
    Um abraço.

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  18. O nosso conto lá continua com a viagem pela ficção. A família continua a crescer. Parabéns José Bessa!

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  19. Boa tarde, o conto é daqueles que cativa, certamente que vai surpreender o pensamento, "com que finalidade se rouba a terra a esta Humanidade?" é para pensar.
    Continuação de boa semana,
    AG

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