28/06/18

Janelas De Tempo - Capítulo 0

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Era inútil. Nunca iria conseguir dormir. Furioso, afastou de cima de si o edredão sem quase sentir na pele o fresco do quarto e, de luz apagada, abriu a janela. Aconchegou ao pescoço a gola do casado do pijama e cruzou os braços sobre o parapeito. Lá fora, quatros andares sob os seus pés, a noite movia-se ainda, quase secreta, cruzando-se nos faróis dos automóveis, reflectindo a luz dos candeeiros no alcatrão recentemente lavado pelos trabalhadores camarários e no bêbedo que em obstáculos invisíveis tropeçava. Fosse outra noite, fossem outros tempos, teria chamado Laura e ter-se-iam desmanchado a rir pela triste figura do homem. E, subitamente, o olhar fixou-se no negro do céu, sem que o visse. Por saber que mentia, que a si mesmo tentava enganar fazendo-o. Noutra noite, noutro tempo, no espaço tão curto de seis meses antes, ele nunca estaria encostado ao parapeito de uma janela olhando o ziguezaguear de um bêbedo. Dormiria. E por dormir, não sentiria àquela hora o corpo de Laura que, porém, saberia a seu lado. Ambos, serenamente, recebendo os seus sonos e visualizando os seus sonhos que, pesadelos que fossem, nunca seriam tão maldosamente definitivos como aquele estúpido acidente que lha roubara.
Depois, a morte súbita da mãe, o seu último reduto familiar, a julgada eterna confessora das suas mágoas, a sua amiga, o seu porto seguro onde ele atracava o barco das confidências compensando-a com o escutar, mais ou menos atento, dos queixumes próprios da idade.
Julgara, também ele, morrer. Não acontecendo, porém, descera a vertiginosa ravina psicológica que o conduzira a uma inevitável depressão. Os sonos por dormir, os esquecimentos constantes, o mau humor incessante e o descurar dos mais elementares cuidados profissionais haviam provocado o resto: o despedimento.
Vira-se assim sem dinheiro, sem ambições, sem possibilidades de novo emprego para “velhos” de mais de 40 anos neste país que era o dele. E, quase, sem amigos. Quase. Porque numa daquelas coincidências que talvez o destino saiba explicar, reencontrara casualmente Luís, o estranho, o apagado, o tímido, o maluco que de todos se isolava nos seus tempos de escola. O agora cientista a quem o amargo da sua vida contou num desabafo, como o contaria a um gato ou um cão por mais ninguém ter com quem fazê-lo, confessando por fim que já várias vezes pensara em desistir de tudo, da vida, e fazer uma asneira.
— A sério? – Perguntara Luís depois de o olhar demoradamente e em silêncio – Então faz. Faz essa asneira. Mas quando a fizeres, executa-a com dignidade.
E nunca mais aquela frase, contrária aos usuais “deixa-te de parvoíces” ou “coragem, a vida dá muita volta”, se lhe arredou da mente. Ao ponto de o contactar de novo e perguntar-lhe que quisera ele dizer com aquilo. E receber, como resposta, o endereço de um armazém nos arredores da cidade.
A máquina, exposta na nave desse armazém, tinha o aspecto artesanal, ainda que de dimensão dobrada na largura, de uma guarita de soldado. No seu interior, repleto de fios entrelaçados e encavilhados como nos antigos PBX, somente um botão vermelho sobressaía naquele aglomerado de técnica e lata cinzenta que em nada deixava adivinhar a sua utilidade.
“Trata-se de uma máquina que viaja no tempo”
Olhara em silêncio o antigo colega e considerara que a loucura alvitrada nos tempos de infância se havia tornado séria. Mas Luís, indiferente ao seu provável rosto incrédulo, não se detivera e, como se falasse do mais trivial assunto, continuou.
“Precisamos de ti. E, tanto quanto percebi no nosso encontro, tu precisas também de nós. Quando digo “nós”, refiro-me a mim, obviamente, e ao Doutor Klaus Hipólito, cientista alemão de ascendência portuguesa. Juntos, há muito trabalhamos numa máquina, nesta máquina, que atravesse o tempo ou, para ser mais específico, a sua inexistência. Diz-me o teu rosto que estamos doidos, que estamos a viver um sonho de ficção científica, mas, contra isso, devo dizer-te que essa designação sempre acompanhou os loucos que, no entanto, com essa loucura fizeram avançar o mundo.”
Fez uma pausa e olhou a máquina, nitidamente com o mesmo olhar com que se olha um filho.
“Seria para ti fastidioso se me perdesse agora em pormenores científicos. Pouco entenderias e em nada ajudaria à tua decisão, porque, na realidade, é isso que esperamos com esta nossa conversa: uma decisão tua”
“Talvez não saibas que nada morre no mundo. Todo o acontecimento se regista para a eternidade de um modo indelével, ainda que a nós pareça ter perecido. Incluindo os sons. Vou dar-te um exemplo que assume aqui extraordinária importância” – fez uma pausa antes de retomar o monólogo de um modo estranho, nitidamente separando cada palavra – “Tudo, o, que, neste, momento, te, digo, parecerá, desaparecer, quando, me, calar. Percebeste? Todas as palavras ditas, dizem, são levadas pelo vento. Mentira. O que acontece é que todas estas frases descem continuamente para infindáveis ondas que ninguém mais detectará, mas que, no entanto, continuam vivas. Perplexo? - Sorriu pela primeira vez – Não fiques, Júlio. E retém a frase de Shakespeare “ Há mais mistérios entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos homens possa imaginar”
“Pois bem” – continuou – “A máquina que aqui vês dispõe de um botão vermelho no qual terás, certamente, reparado. Quando o pressionares…”
“Quando ou se?” – Interrompera Júlio pela primeira vez.
“Quanto a isso, já lá iremos. Não me faças perder” – respondeu Luís – “Portanto, quando o pressionares, a máquina entrará num processo aleatório, de roleta russa, digamos, e navegará por todos os sons caídos ao longo dos tempos. Passado e futuro”
“Futuro? Como é isso possível, se o futuro ainda não existe?” – Perguntou Júlio.
“Tudo existe já, nunca te esqueças disto. Entre nós, aqui neste momento, corre um universo paralelo que só ainda Einstein conseguiu aflorar. Ele, o futuro, já cá está. Nós é que o desconhecemos, mas tenho esperança de que a máquina no-lo dê a conhecer. Por isso, dando seguimento à explicação, essa navegação por todas as ondas em que pairam inquantificáveis sons, far-se-á continuamente, até que de novo primas o botão e a máquina se detenha na pesquisa do tempo, naquela precisa data em que a frase, naquele momento analisada, terá sido dita. Nesse mesmo instante, a porta abrir-se-á e, lá fora, esperar-te-á uma época que, em princípio, nunca será aquela que agora deixas. Estudámos o teu currículo, o teu perfil, e descansámos ao verificar que a tua paixão pela História e o teu elevado nível cultural facilitaria o reconhecimento de qualquer Era em que caísses. Para além disso, o teu próprio nome, Júlio Verde, pareceu-nos premonitório”.
Durante alguns instantes, ficaram em silêncio. Parecia que, aos olhos de Júlio, muito estava por dizer. Só desconhecia a real dimensão desse “muito”. Decidiu questionar o cientista com uma pergunta que lhe pareceu pertinente.
“Parece-me que essa máquina, com esse aspecto, não será bem recebida entre o paleolítico ou Afonso Henriques, Luís XV ou Roald Amundsen”
“Não te preocupes com isso. Ninguém irá vê-la. Ela não existirá no ponto a que chegar. A sua estrutura molecular não lhe permite sair fisicamente daqui. É uma sua projecção aquela em que viajarás. Só tu, no momento em que pisares a terra de outro tempo, serás visível, porque se dará a tua libertação para lá da composição que ela ostenta.
“Isso significa, nesse caso, que se eu me afastar do local onde ela pousou, nunca mais a verei”
“Estaria correcta essa dedução, sim. Se nós não tivéssemos solução para ela. Conseguimos isolar o nervo que transmite ao cérebro o padecimento de um dente. Nesse nervo, e através de uma simples e eficaz cirurgia, implantaremos um micro-GPS que continuamente te guiará ao ponto de partida”
“Terei então, na minha cabeça, uma menina a, constantemente, dizer-me “vire à direita, vire à esquerda?” – disse, sorrindo. Um inseguro sorriso, enervante por tão nervoso.
“Sim. Quando for essa a tua vontade. Ela, essa tua intenção de regressar à máquina, despoletará o “acordar” da “menina”
Júlio ficara muito tempo em silêncio. Tinha ainda muitas perguntas a atrapalharem-se no tráfego do cérebro. Mas uma se impunha. Ou talvez duas.
“Têm a certeza de que a máquina funciona? E quando regressarei?”
Luís suspirou antes de responder.
“A máquina funciona, sim. Treinámos um pastor-alemão, o nosso querido Whisky, durante anos, para que aprendesse a carregar no botão. Vimo-lo dentro da máquina quando a porta se abriu e, em consonância com o resultado esperado, a volatilizar-se no ar no instante em que a transpôs. Nunca mais regressou. Sem micro-GPS que lhe valha, estará perdido num qualquer século. Estamos, afincadamente, garanto-te, a trabalhar num modo de poder provocar o regresso à linha de partida (não esqueças que a máquina continuará aqui) e penso estarmos muito perto de o conseguir. Se não conseguirmos…”
“Se não conseguirem…?”
“Se não conseguirmos, ou se dá o caso de a máquina parar, por sorte, entre biliões de possibilidades, nesta nossa data, ou… – engoliu em seco – ou tu morres por lá. Mas não era isso que procuravas, numa existência que já nada te diz?”
E por isso aquela insónia, aquele redemoinhar de pensamentos, de sentimentos, do receio de partir para aquela aventura, mas também da frustração caso não a aceitasse. Era português, caramba! Não tinha sido a sua raça a desvendar mundos dentro do seu mundo? Ele tinha à sua frente a possibilidade de muito mais. A de descobrir mundos extintos e por inventar. Mas tantas perguntas lhe bailavam no cérebro. As mais simples, por incrível que parecesse. As suas roupas diferentes, a alimentação, a barba que lhe cresceria, a… . Não! Tinha de parar por aqui, de se martirizar com dúvidas e medos. Já dissera que sim, já tinha instalado no nervo dos dentes uma “menina” que, por enquanto, dormia. Muito mais que ele que, noite dentro, ali estava acordado quando tanto necessitava de repouso. Porque, logo que o dia nascesse, seria o DIA!

Que nasceu quente apesar de ter sido fria a noite. O sol fervilhava sobre as cabeças descobertas, um daqueles dias que, ultimamente, quase faziam de Portugal um país tropical. Quando entrou no armazém, soube-lhe bem o fresco da nave vazia de tudo, menos de uma assustadora, porque incógnita, máquina. Deu um grande abraço a Luís e outro a Klaus, um homem afável e meio distraído como era apanágio dos cientistas. Apeteceu-lhe chorar quando se viu dentro da máquina, mas não valeria a pena. Para além de nada haver a fazer quando a porta se fechou, o calor desmesurado que parecia roubar-lhe o ar secar-lhe-ia as lágrimas num instante. E, de repente, tudo era silêncio, tudo era metal, tudo eram fios e medos e um botão cujo vermelho pedia uma mão firme sobre ele. Olhou-o. Sentiu medo, angústia. Desistir? Não. E, sobretudo, evitar pensar. Estendeu o braço e, fechando os olhos, pressionou-o. E, contrariamente ao que esperava, nada aconteceu. Nem um estremecer, nem uma ligeira vibração sentiu nas paredes da máquina. Nada. Para além de um suave silvo, um quase ligeiro assobio constante que provavelmente se manteria até que voltasse a pressioná-lo de novo. Teria aquela geringonça avariado aquando do funcionamento com o animal? Se não, em que datas aleatórias navegaria ela agora? Teria ele preferência por alguma época, segundo os seus conhecimentos de História? Que importava isso neste momento, se não podia escolhê-la? Se somente podia pressionar de novo o botão, detendo a máquina do mesmo modo que a pusera em movimento, mas sem que, contudo, a sentisse mover-se. E de novo os seus dedos calcaram a cor vermelha do botão. O silvo, gradualmente, foi-se esvaecendo até devolver o silêncio só interrompido pela porta que se abria. Aproximou-se dela e viu que, lá fora, e para além do frio que lhe chegava, chovia torrencialmente. Lembrou-se então de quão importantes são as pequenas coisas. Nem um guarda-chuva trouxera.


João J. A. Madeira

     

26 comentários:

  1. Os meus cumprimentos ao João J. A. Madeira por esta ideia de nos pôr, a andar…
    Pela sua habitual boa prosa, um abraço.
    .
    Quantas vezes dissemos «gostava tanto de viajar…» ou, «só me apetece sair daqui!». Pois então,
    Silêncio! Ou quer alterar o normal fluxo das ondas do tempo?
    Saia! Apesar da chuva…

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  2. Muito obrigada pelo seu convite a participar na escolha do título. Li o texto que achei excelente e cheio de fôlego narrativo, mas não sou a pessoa indicada para lhe sugerir um título. Quase todos os meus poemas não têm título.
    Um abraço.

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  3. Este conto promete! :) Já fiz a minha votação. Boa semana.
    --
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    1. Obrigado por nos ler, Inês. Gostaríamos de continuar a ter a sua companhia

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    1. Obrigado, Jorge Sader. Esperamos continuar a tê-lo como nosso leitor. Abraço

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    1. Gratos pela promessa de acompanhamento. Abraço, Francisco Manuel

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  6. Obrigada pela visita.... Já votei num título...
    Este conto está muito interessante...
    Beijos e abraços
    Marta

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    1. Obrigado, Marta. Esperamos poder continuar a contar consigo por aqui. Beijinho

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  7. Muito bem!
    Já escolhi o meu titulo. Obrigada :)!! (Janelas do tempo)

    Beijos

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    1. Obrigado, Cidália, por nos acompanhar. Contamos consigo. Beijinho

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  8. Votei, tanto quanto pude perceber, num dos títulos menos votados :) Mas votei naquele que considerei mais simples, mais expurgado e (esteticamente) eficaz.


    É um hábito que me acompanha desde os meus dezoito anos, rsrsrs


    Boa sorte e muitas leituras para o conto do João J A Madeira.

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    1. Obrigado, Maria João, por colaborar connosco e nos acompanhar. Só uma ressalva: o conto não é meu, mas sim de todos os que nele colaboram. Somente escrevi esta introdução. Mais tarde, quando chegar a minha vez, escreverei a minha parte, no alinhamento dos restantes. Mas agradeço a atenção :)

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    2. Entendido, João. Seguirei o vosso conto, mas a minha "especialidade" é a poesia.

      Bom trabalho! :)

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  9. Este conto promete! Gostei imenso de o ler.

    r: "Sente-se, apenas". Ora nem mais.
    Muito obrigada :)

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  10. Oi João
    Obrigada pela visita e gostei do texto_vou levando o link do blog para acompanhar outros tantos.
    Sim, votei no que achei mais apropriado, mas sei que o escolhido qualquer que seja ,será perfeito.
    Abraços

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  11. Oi, Lis. Gratos pela companhia e pela partilha. Abraço

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  12. obrigado por dar a conhecer este blog. parece-me bem interessante.
    abraço

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  13. Parece-me que este "arranque" promete muitas e boas surpresas. Estou bastante expectante.

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