Fotografia: Henrique António Guedes Oliveira |
Sempre que Júlio navegava na “cápsula do
tempo” sentia um atordoamento, cuja causa não sabia explicar, mas que o deixava
enjoado e, simultaneamente, esfomeado.
Naquele momento, sentiu o estômago
colado às costas, tal era a fome que sentia, apesar de ainda se recordar do
manjar que lhe fora oferecido pelo ancião em Bali. Porém, todo aquele odor dos
frutos existentes no mercado que atravessara, mantinha-se intacto nas suas
narinas.
Não sabia onde estava, mas sentia um
cheiro nauseabundo a mosto e vinho, misturado com um fedor acre, como se alguém
tivesse acabado de vomitar a seu lado. Procurou o Whisky. Viu-o encolhido a
seus pés. Mas não tinha sido ele.
Percorreu, como olhar, o local onde
tinha vindo parar. Pareceu-lhe uma enorme adega, repleta de toneis. Estranho!
A agitação era enorme. Carroças, puxadas
por bois, vinham despejar enormes cestos carregados de uvas, no que lhe pareceu
ser um lagar.
Na sua consciência fez-se luz! Tinha
vindo parar a uma majestosa quinta no Douro, a avaliar pelo sumptuoso palacete
que vislumbrava por uma das janelas da adega. No tempo, tinha regredido cerca
de dois séculos. No ano, estaria no final de setembro, época das vindimas.
Enquanto as vindimas decorriam, podiam
ouvir-se cantares ao desafio, que alegravam aquele que poderia ser considerado
um trabalho penoso, perigoso e cansativo, dado o posicionamento das próprias
videiras em escarpas por vezes deveras acentuadas.
Os homens que se movimentavam na adega,
vestidos, na sua maioria, com umas calças surradas, largas, presas com uns
suspensórios, também eles desgastados, deslocavam-se agilmente, num vai e vem,
entre as carroças e os lagares, onde despejavam as uvas destinadas a serem
pisadas e convertidas nos famosos vinhos do Porto e do Douro.
Quando o lagar atingiu o limite certo,
pensou Júlio que era um pouco leigo nesta matéria, uma dúzia deles e algumas
mulheres, entraram no mesmo. Abraçaram-se e iniciaram uma dança de pés
cadenciada e uniforme, enquanto entoavam canções populares em uníssono, talvez
com o intuito de minimizar o esforço que tinham de despender para aquela tarefa,
e que soavam até à hora em que o sol se punha.
Ouviu uma voz grossa, mesmo atrás de si:
– Que estás aqui a fazer? Não achas que
há muito trabalho a fazer? Continua a trazer as uvas para dentro. Aqui não
queremos molengões!
Júlio não esperou segunda ordem, morto
que estava por se livrar daquele lugar, cujo cheiro se tornava, com o calor,
insuportável. Podiam chamar-lhe o “Néctar de Baco”, mas a sua preparação não
tinha nada de divinal.
Já fora da adega, observou melhor a
maravilhosa mansão. Era majestosa e soberba.
Júlio recordava-se de ter lido, nalgum
livro sobre o “Douro e a sua região” que a maioria dos solares ali existentes
tinham sido construídos no Século XVIII, e aquela não era exceção; apesar do
seu aspeto austero, como se de um castelo se tratasse, atraía muitas vezes os
olhos dos turistas que por ali passavam, deixando-os maravilhados. Toda ela
granítica, apresentava uma fachada decorada com grandes arcadas, ornadas por
trepadeiras que se tornavam uma delícia para os olhos, quando florescidas.
O portão da entrada, trabalhado, mas sóbrio,
era encimado por uma pedra de armas e por um pequeno nicho onde existia cravada
uma imagem de Santo António. Ao lado da casa, podia ver-se uma capela, cuja
bula datava de 1785 e onde até há bem pouco tempo eram celebradas missas
regularmente.
Tratava-se de uma quinta tradicional de
onde se pode desfrutar uma das mais belas vistas panorâmicas da região do
Douro. As montanhas de xisto que se erguem do rio, as suas escarpas
transformadas em socalcos e cobertas de vinha, constituem de “per si”, um dos
mais belos cenários do mundo. À noite, do terraço superior da casa, onde
naquelas noites quentes se procurava um pouco da frescura que as frondosas
árvores que a rodeavam proporcionavam, podia observar-se, em noites de lua
cheia, o brilho branco, encantador e mágico que nas águas calmas do Douro se
refletia.
O acesso ao universo íntimo da casa era
restrito aos familiares, com exceções para poucos amigos, o que tornava a
entrada nessa área um privilégio. Aos trabalhadores restava-lhes a admiração do
exterior.
Júlio saiu do seu encantamento
momentâneo pela mansão, e voltou ao trabalho. Quando a sineta soou, a anunciar
um pequeno repasto, deu graças a Deus. Estava exausto e esfomeado, mas ninguém
lhe fizera perguntas sobre si, o que o livrara de algumas complicações.
Ao cair do dia, foi enviado, juntamente
com mais três homens, encosta abaixo, em cima de uma carroça que transportava
alguns barris de vinho. Para onde iriam? Começou a temer, por si e pelo Whisky,
que não o largava de vista. Tinha saltado com ele para a carroça. Cada vez
mais, Júlio amava e admirava aquele animal, que sabia estar silencioso quando
era necessário. Bastava um sinal de olhos. Compreendia-o.
Chegaram a um pequeno cais, onde se
encontrava acostado um pequeno barco. Júlio identificou-o como sendo um dos
famosos barcos rabelos, que faziam o transporte de mercadorias até ao Porto,
pelo rio Douro abaixo. Apesar do perigo que estas pequenas embarcações
representavam, estavam isentas de portagens, o que permitia obter preços
melhores pelo vinho que se escoava até à cidade do Porto, a partir da qual
seguiam, maioritariamente, para Inglaterra.
O barco rabelo era, para a época, uma
máquina sofisticada cuja condução exigia coragem, destreza, e um conhecimento
íntimo das correntes e das rochas que se espalhavam pelo curso de um rio “de
mau navegar”.
De repente, Júlio sentiu um balanço
enorme. O barco partira, mas aquela noite estava particularmente ventosa. O rio
agitava-se, “rugia” com as rajadas de vento que o açoitavam.
À medida que iam deslizando rio abaixo,
ele começou a temer pela sua vida. Naquele momento, voltou a visualizar a
imagem de Laura. Viria protegê-lo ou avisá-lo que deveria sair dali o mais
rapidamente possível? Sabia que eram frequentes os naufrágios daquelas pequenas
embarcações. O rio tinha muitas fragas traiçoeiras e se o rabelo embatesse numa
delas, não escapariam com vida, e muito menos com o caudal veloz que o rio
levava. Júlio nunca fora um bom nadador.
Mas no que estava a pensar para não ter
saído da quinta, quando lhe bastava carregar no comando da “nave do tempo”, em
vez de se deixar conduzir até ali? Talvez a curiosidade de conhecer melhor como
eram adversas as condições de trabalho daquele tempo, já tão remoto.
Por outro lado, o Porto tinha sido
sempre uma das cidades que Laura admirava. Gostavam de ir lá passar férias e,
especialmente, usufruir da famosa noite de São João, tão célebre naquela
cidade, cheia de luz e cor. Seria por ele se estar a dirigir para lá que Laura
comunicara com ele?
A incógnita permaneceria, agora e
sempre.
Júlio aconchegou-se no velho blusão que
o capataz lhe dera para a viagem. Com ele abrigou ainda o Whisky, para se
proteger do frio e do vento, que cada vez era mais forte.
Cansado, acabou por adormecer. Não sabia
dizer por quanto tempo. O sol já começava a despontar quando despertou.
Ao olhar à sua volta, ficou apaixonado
pela deslumbrante paisagem que vislumbrava. As escarpas do Douro, já todas elas
cobertas do maravilhoso tom doirado de Outono, eram uma delícia para os olhos.
Fosse ele pintor! Seria, certamente, aquela cena que ele reproduziria numa
tela.
Não deu pela passagem das horas. Comeu o
naco que pão (já duro), que o mestre lhe ofereceu, dividindo-o com o Whisky.
Já o sol se começava a por de novo e, ao
longe, começou a descortinar aquilo que se aparentava com a “cidade grande”,
como os marinheiros lhe chamavam e que seria, certamente, o Porto tão ansiado
por todos.
Júlio pensou:
– Talvez fosse melhor eu sair daqui,
enquanto é tempo. O que me esperará naquela cidade? A prisão pela
clandestinidade? Nem documentos tenho!
Assim que o barco acostou, no cais de
Gaia, vila para onde se destinava o vinho que levavam, Júlio ainda ajudou os
companheiros a descarregar os barris. Dirigiu-se a uma tasca que por ali perto
ainda estava aberta e cheia de marinheiros (a cair de bêbados), para “trincar”
alguma coisa, e poder, também, lavar-se um pouco. Sentia-se nauseabundo.
Feito isso, chamou o seu fiel
companheiro, que, com as suas habituais lambidelas, premiu o botão da “nave” e,
depois do silvo a que já se tinha habituado, ei-lo, de novo, a caminho de um
outro tempo, de um outro espaço.
Natália Vale
adorei esta viagem e respetivo passeio ! e que bem assenta no tempo!!! estamos na época das festa das colheitas e das vindimas :)
ResponderEliminarmuito bom!
existe este filme já com uns aninhos mas muito comovente !
abraço
Angela
https://www.youtube.com/watch?v=wmCpEu3m1Po
Obrigada, Angela pela apreciação. Beijinhos
EliminarObg pela visita
ResponderEliminarAdicionei o seu blog ao meu "outros caminhos"
Kique
https://caminhos-percorridos2017.blogspot.com/
E nós somos também transportados a um outro tempo, um outro espaço.
ResponderEliminarBoa semana
Por falta de tempo não tenho passado por aqui.
ResponderEliminarMas, num instante li todos os capítulos.
Nunca desiludem. Parabéns