14/12/18

Ecos de Mentes - Capítulo 3

©José Manuel Barbosa 

Acordei encostada à parede da velha sala, onde me tinha sentado para ler com calma mais um pedaço destes cadernos misteriosos. Que mais segredos albergariam aquelas páginas? Mas o cansaço da viagem dos dias anteriores, mais a constante atenção que tinha de dar aos homens para que os trabalhos decorressem como eu queria e o repasto da moça que me veio ajudar nestes primeiros tempos, tinham-me deixado com aquela moleza pós-almoço. Onde é que eu ia mesmo? Ah, sim, apesar da letra meia torta, percebi que desta vez quem escrevia era a famosa Beatriz. Tinha ficado curiosa depois de ler os pormenores sórdidos da sua vida conjugal com Vicente.


Beatriz

Ai Vicente, Vicente. Se soubesses como te odeio. É por tua causa que estamos aqui, neste lugar longe do mundo que amo, à mercê de doidos e lunáticos. Sim, porque eu sou a mais sóbria deste lugar, por muito que outros pensem o contrário. Ao menos eu sei o que sou e não tenho vergonha de nada do que fiz ao longo da minha vida. Odeio-te mesmo, Vicente. Desde o dia em que me tiraste daquele bordel. Lá eu era feliz. Estava no meio de gente como eu que não tem vergonha do prazer e da luxúria. Do desejo. Se senti algum dia desejo por ti? Acho que não. Ai como te odeio, Vicente. Porque acreditei em ti. E aceitei que me colocasses este maldito anel no dedo. Por ele, por este anel, sinto-me agora presa e asfixiada como se metida num espartilho. Fingimos que somos os dois de uma família de bem, que sou uma mulher submissa e tu um ditador. Oh sim, mas que farsa de ditador, que se borra com o latido de um cão ou com um berro meu. Estou farta, farta. Estou farta do teatro todas as noites, contigo sordidamente agarrado a mim. Prometeste-me o mundo e fechaste-me aqui, para te tentares curar. Não tens cura, meu fraco. Achaste que por eu ser da vida, ia ser mais fácil, mas eu sou mulher como qualquer outra. Como qualquer outra, não. Isso seria se ainda fosse livre, não agora que me sinto amarrada. E deste-me este nome de princesa. Ah, como te odeio. Tenho saudades do meu nome. Por vezes, quase não recordo já o meu verdadeiro nome, de tanto repetires insistentemente esta aberração que me arranjaste para a tua mãezinha não desconfiar. Pobre senhora, que morreu sem saber a verdade, ao menos isso! Por outro lado, que saudades que tenho da minha. Nasci e cresci com ela naquela casa onde a luz era vermelha dia e noite e onde o fumo dos cigarros era o incenso de outrora. Acho que ainda sinto esse cheiro a cigarro na minha pele. Hum, que arrepio bom. Tenho saudades de sentir esse odor bruto na boca dos homens que me devoravam. Sim, porque tu nem usufruis de mim como aperitivo. Mas tenho de aceitar este meu destino já que casei contigo. Acho que nesse dia enlouqueci e só me apercebi tarde demais para voltar atrás. Se eu pudesse… Mas o meu irmão precisava dos estudos pagos, ele não tinha culpa da vida que eu e a nossa mãe levávamos. Não, o meu irmão merecia melhor. Muito melhor. Ao menos agora é médico. Saudades do meu irmão, de um homem a sério e não de um verme como tu. Mas estou cansada de escrever sobre ti. Já passo os dias e noites contigo, enfiados neste lugar asqueroso. Mais limpo que o bordel mas mais sujo de almas.
Pobre Cláudia, se acha que aquele bilhete vai convencer o meu marido de alguma coisa. Estamos ligados, minha querida, até que o Inferno nos separe. Nem esse teu corpo de bonequinha ia mudar isso. Ele só tem olhos para mim, apesar de não ter mais sentido nenhum a funcionar. Pobre diaba que deves ser, para achares que eu não percebi o teu esquema. Deve dar-te prazer a adrenalina de te meteres com os maridos das outras. Mas olha bem que podias ficar com ele. Libertavas-me. Nem que tivesse de voltar para o bordel. Ai raios que sinto mesmo falta de um cigarro. Mas parece mal, diz ele. Não fica bem à Beatriz. Que saudades do meu verdadeiro nome.
Como vou aguentar ficar aqui? Dançando aquela música estúpida todas as noites, só porque ele adora. Farta, já terei dito que estou farta? Também que interessa, estou a escrever isto escondida na casa da banho, enquanto o deixo pensar que me arranjo para mais uma paródia lá em baixo. Antes de me ir embora, deito tudo isto pela sanita abaixo. Ai quando será esse bendito dia? Tenho é de esconder isto muito bem, ele é demasiado obsessivo com tudo o que escrevo, mania de me controlar, como se me controlasse alguma vez. Mas se ele se atrever a ler estes meus desabafos, vai levar com aquele berro que o põe a tremer da cabeça aos pés. O pior é que ele gosta. Maldito sejas.
O dia hoje só teve uma coisa boa, aquela visão de músculos que tive antes de subir para me arranjar para o jantar. Suado, com a toalha ao pescoço e aqueles calções. Ouvi cochicharem que era PT. Esse deve dar gosto levar para a cama. Deve dar para os dois lados, cheira-me, embora tente armar-se em machão com aquela Helena. Reconheço-os. Passaram muitos por mim. Mas que é jeitoso, é. E cheira bem. A homem, apesar de tudo.
Mas já nem sei se sou ainda capaz de todas as acrobacias que aprendi com a minha mãe. A minha mãe era perita na cama e ensinou-me tudo. Até me aconselhou a nunca deixar que me pusessem o anel no dedo. Mas muitas vezes não ouvimos as mães. Oh raios. Já pensei tantas vezes em cometer uma loucura. Ninguém ia dar pela falta dele. Ninguém lhe liga ou vem visitá-lo. E porque não? Libertava-me. Mesmo que fosse parar à prisão, tudo seria melhor que este teatro. Adoro ser a dominadora, sim, mas de um leão selvagem, não de um gato sem unhas. Que digo eu? Devo estar a ficar alucinada com o que nos dão a beber. Loucura já fiz eu ao casar com ele, chega! E se eu virar este jogo? E me começar a divertir um pouco, já que aqui estou? Se ninguém sabe o que sou, ninguém sabe do que sou capaz. Pronto, já me está a bater à porta da casa de banho, raios de impaciente. O jantar espera. Todos esperam. Afinal somos Beatriz e Vicente. O casal mais chique e fino desta espelunca.


                                                                                 Carolina Lemos


28 comentários:

  1. Cada capítulo, um ponto: "quem conta um conto acrescenta um ponto", aqui, não é um conto, é um capítulo!
    Vamos lá ver como vai evoluir o casal mais chique da espelunca!
    Bom fds

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  2. Vai ficar um lindo livro.
    Leu a minha postagem? Gostou?
    Abç
    Lua Singular

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  3. Gostei de ler
    espectacular conto
    Bjs

    Kique

    Hoje em Caminhos Percorridos - Imprensa reunida de urgência...

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  4. Bom dia:- Leitura que nos prende e quando assim é, o texto é perfeito.
    .
    Feliz fim de semana
    .
    *** Flor de Linho de Amor Vestida - "" Poetizando e Encantando "" ***

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  5. E Carolina acrescentou um "ponto" de qualidade ao "conto" que nos vai prendendo ... passo a passo... capítulo a capítulo!
    Adorei ler Carolina e bj ... e parabéns pelo projeto!

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  6. Muitos se a deixarem adivinhar uma volta no conto...
    Boa semana

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  7. Que tenha um Natal cheio de Amor e que o Novo Ano lhe traga tudo o que deseja.
    Boas Festas!
    Um beijo.

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  8. Excelente texto! Faz-nos participar da prisão e revolta da personagem, como a tantas mulheres acontece, ainda que assim possa não parecer ao mundo! Boa semana, obrigado.

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  9. Esta Beatriz está-se a revelar bastante interessante!
    Parabéns, Carolina! Capítulo muito bem conseguido.

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  10. A raiva de quem conta e, ao mesmo tempo, esconde. Está aqui tudo. Parabéns, Carolina

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  11. O abismo, numa "união" de facto. O desejo num desconhecido corpo suado. Uma fuga?
    Bravo, Carolina. Foi um excelente regresso.

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  12. Desejo-lhe um Natal cheio de bênção e alegria. Feliz Natal!
    AG

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  13. Mais 365 dias de novas oportunidades estão a nossa espera no ano que está chegando e que todas as realizações alcançadas neste que está quase terminando sejam apenas sementes plantadas que serão colhidas com todo amor no Novo Ano que está por vir, espero que nos encontremos muito em 2019...


    Beijos
    Ani

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  14. Gostava de te desejar um 2019 espectacular, cheio de coisas boas e com muito amor à mistura :D Feliz Ano Novo!

    Beijinhos,
    O meu reino da noite | facebook | instagram | bloglovin

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