14/05/19

Ecos de Mentes - Capítulo 14 - Final

Foto: Olímpia Mairos/RR


Meus dias passam como águas mansas do Rio Tejo em um dia de calmaria. A casa está sendo reformada aos poucos e, tenho que confessar, já me sinto bem afeiçoada a ela. Gosto especialmente das varandas grandes e do jardim extenso com buganvílias e outras espécies. Mas ela também me assusta, acho que isso é consequência de ler todos aqueles cadernos. Por vezes quando estou só, sentada na cadeira de balanço que coloquei de fronte para o jardim, sinto a estranha sensação de que olhos misteriosos e inquisidores me observam de algum lugar, escondidos na escuridão dos ciprestes antigos que ainda crescem por aqui.
Às vezes me indago se tinha o direito de violar, com minha curiosidade impetuosa, as memórias de todas aquelas pessoas que deixaram um tanto de suas vidas nesse lugar e naqueles cadernos enegrecidos pelo tempo e esquecimento. Compartilhei de suas fraquezas e medos, sem ter dado nada em troca. Fico imaginando como seriam de fato essas pessoas e que fim a vida lhes deu. Teria o destino, por descuido ou benevolência, se apenado de alguma delas? Não há como saber. Tudo que conheço delas é um emaranhado de letras e tintas, que possivelmente não deram conta de refletir como eram de verdade. As pessoas são sempre mais complexas ao vivo.
Ultimamente, tento não pensar muito nisso. Recentemente guardei os cadernos em um baú e lá as pretendo deixar até ao fim de minha consciência nesse mundo. Quanto a mim, também tenho escrito com frequência. Era para ser um diário, mas não tem acontecido nada de muito emocionante em meus dias que mereçam registro. Por isso escrevo qualquer coisa que me acuda à mente. Acredito que um dia vou reunir tudo que tenho escrito e colocar também no baú, juntamente com os cadernos. Seria uma estranha forma de cumplicidade entre todos os envolvidos nesse devaneio. Até lá junto meu tédio e minha solidão, enquanto tento deixar essa casa um lugar melhor.

***

            Preciso registrar o que aconteceu e preciso fazer isso agora. Passaram-se meses (perdi a conta) desde que enclausurei os cadernos no baú e os deixei lá para adormecerem em paz. Mal sabia eu que ainda faltava mais coisa. Muita coisa! Um caderno extraviado. Melhor dizendo, escondido! Sim! Apesar de tecnicamente ter sido eu que o encontrei, acredito que era ele que me procurava. Me caçando como um predador em silêncio, aguardando o melhor momento para o ataque final e misericordioso.
          Isso aconteceu hoje. O sol dissolvia-se sobre a grama seca do jardim e não havia uma nuvem no manto azul do céu. Resolvi então plantar novas flores no quintal, como tenho feito nos últimos dias. Semana passada foram azaléas, hoje eram orquídeas brancas. Resolvi que iria plantá-las perto da janela de meu quarto, onde a grama estava mais verde e saudável. Enfiei as mãos na terra e comecei a cavoucar. Além de uma minhoca se mexendo entre meus dedos, senti também que encostei em mais alguma coisa. Continuei enterrando minha mão até enxergar a madeira envelhecida de uma pequena caixa. Senti um frio na espinha e um arrepio correr por entre minhas articulações. Fui o mais rápido que meu corpo permitia até meu quarto. Tirei toda terra que cobria a caixa e a abri. Dentro havia um caderno deveras velho. Estava com diversas páginas arrancadas e algumas soltas. Estava tão acabado e destruído que parecia ter acompanhado um soldado em campo de batalha. Por sorte ou pura maldição, algumas páginas ainda estavam legíveis. Respirei fundo para me recompor. Olhei para o baú no canto do quarto e sussurrei-lhe com os pensamentos:
- Lá vamos nós de novo...


Dr. Saavedra

            Gabriel entrou aqui portando um facilmente identificado complexo narcisista. Obsessivo por seu corpo e sua beleza, passava horas trabalhando seus músculos. No começo achei que esse seria um bom lugar para recuperá-lo, mas acho que mais atrapalhámos sua mente do que realmente ajudámos. Cheguei à conclusão forçada que esse nunca foi o lugar certo para ele e que a terapia convencional poderia ter dado conta de seu transtorno. Ademais, a presença dele causou alvoroço entre as mulheres daqui. E quando digo isso não me refiro apenas às suas colegas de terapia. Sim, essa é uma revelação a ser feita apenas nessas páginas a que o tempo dará fim. Dra. Helena tem se envolvido com ele e isso só tem agravado o complexo de Gabriel.
         Pois bem, fiquei sabendo isso na semana passada. Na verdade, apenas confirmei minhas suspeitas. Menti para nossa psiquiatra que estaria fora para resolver problemas particulares e que não viria para cá durante o período diurno. Foi assim que peguei os dois no flagra, na sala de terapia. É uma lástima ver uma profissional como ela se deixar levar por um desejo tão baixo e artificial. Pouparei os detalhes sórdidos daquele ato pernicioso. Isso me deixou em situação delicada. Pelo bem de todos, alguém teria que deixar a casa de repousou e eu não estava inclinado a abrir mão de nossa dedicada Doutora.
            Por isso, assinei ontem a alta do querido paciente Gabriel. Fiz questão de acompanhá-lo até o portão de saída. Ele não parecia surpreso. Muito pelo contrário. Acho que Gabriel é mais esperto do que julguei. Talvez tenha planejado tudo isso com um único intento: sair daqui pela porta da frente.

***

            A porta bateu com força, trepidou as paredes e me fez saltar da cadeira. Dra. Helena entrou como um furacão pela sala. Estava branca como uma geleira do Ártico. A órbita dos seus olhos parecia querer saltar do rosto.
            - Doutor, aconteceu uma coisa terrível - Disse ela, com a voz claudicante.
            - Sente-se mulher, ou vai ter um desmaio. – Respondi, apontando para a poltrona de fronte à minha mesa. Ela se afundou no assento e respirou fundo.
            - Agora me conte que diabos aconteceu?
            Tão rápido como havia sentado, Helena se levantou, saltitando sobre os pés.
            - Acho melhor você vir comigo, Dr. Ramon. Vai querer saber disso pelos olhos e não pelos ouvidos.
            Saímos da sala e Amélia – aquela de quem já falei noutras folhas anteriores – estava com as mãos unidas e trêmulas. Lançou sobre mim um olhar de misericórdia, com um misto de incredulidade. Tentou me falar algo, mas a força da voz parecia ter abandonado a pobrezinha.
            - Não precisa dizer nada. O Dr. virá conosco. – Disse a Dr. Helena, de forma inquisidora. Amélia só se limitou a fazer um sinal afirmativo com a cabeça.
            Fomos em silêncio até a parte externa, onde os pacientes costumavam sentar para escrever em seus cadernos ou desfrutar um pouco de ar puro. Ainda era muito cedo e o sol começava a despontar para o dia. Descemos as escadas e a Dra. Helena me levou até além dos ciprestes, onde a vegetação estava densa e crescida. Ela afastou alguns arbustos grossos e pude ver o corpo de Dinis esticado, de costas para o chão e com uma das mãos no pescoço.
            - Foi Amélia que o encontrou. Seu sangue ainda parece fresco. Deve ter acontecido há poucas horas. Ontem mesmo vi Dinis no quarto antes de amanhecer. Quem poderia imaginar?
            As palavras de Helena foram se dissipando em minha cabeça e a figura de Dinis, sem vida e alma, fez meu estomago se remexer dentro do ventre e uma vontade de vomitar veio à baila. Respirei fundo e tentei me acalmar o máximo que se é possível diante de um cadáver. Amélia parecia em choque e a Dra. Helena, incrédula, olhava para o defunto como se nunca tivesse sentido o cheiro da morte tão perto de suas narinas.
            - Mas que diabos você fazia aqui fora a umas horas dessas, Amélia? – A pergunta saiu de minha boca quase que involuntariamente.
            - Eu...eu... – Amélia soluçava. – Eu estava tendo pesadelos. Acordei e fiquei com medo de continuar em meu quarto.  Abri a porta com uma chave-mestra que consegui com Matilde em troca de algumas caixas de cigarro e uma garrafa de Gin que surrupiei de um serviçal e vim correndo para cá. Precisava respirar ar puro, o cheiro das paredes estava me sufocando. Então andando por entre os ciprestes vi um sapato e então.... então encontrei Dinis já assim. Mas eu juro, não tenho nada a ver com isso. Não faria mal a uma mosca. Nunca deveria ter fugido do quarto. Me desculpa. Preciso me comportar. Eu...
            Antes que Amélia continuasse mandei-a fechar a boca e ficar calada. Cheguei mais perto do corpo. Estava ensanguentado e todo o sangue vinha do pescoço. Havia sido um golpe preciso na jugular. Uma mão ainda estava no pescoço e a outra segurava um caco de vidro pontiagudo.
            - A janela do banheiro da ala feminina. – Disse Helena.
            - Como? - Perguntei sem entender.
            - Uma das janelas do banheiro das pacientes femininas estava quebrado, ontem à tarde. Mas não me dei conta do que poderia ter acontecido. Simplesmente ignorei.
            Amélia se agachou e apoiou os cotovelos nos próprios joelhos e começou a chorar.
            - Leve-a daqui Dra. Helena e certifique-se que irá ficar bem, e principalmente, calada! Não podemos ter um surto de pânico aqui.
            Helena saiu de mãos dadas com Amélia e rapidamente desapareceram dentro do saguão enquanto eu pensava o que faria diante daquele grave incidente. Não demorou muito para Helena voltar.
            - Dei um sonífero a ela. Vai dormir com os anjos.
            - Ou com os demônios. – Completei.
            - De qualquer forma, o que faremos agora? Acha que foi suicídio?
             - Pode ser. Dinis era extremamente deprimido e já não falava coisa com coisa.    De qualquer sorte, diga aos pacientes que ele ganhou alta e foi embora.
            - Com todo respeito Dr. Ramon, mas Dinis andava espalhando para alguns pacientes que era a própria reencarnação de D. Sebastião. Acho que não acreditarão muito nessa história de alta.
            - Você tem razão. Se demos alta para alguém como ele todos se sentirão no direito de sair.
            - O que diremos então?
            - Nada. Faremos de conta que sabemos tanto quanto eles sobre o que aconteceu. Para todos os efeitos ele deve ter conseguido fugir de alguma forma.
            - Então assim será feito. Contudo, temos um cadáver em nosso jardim e não tardará teremos pacientes deambulando por aqui.
            - Então não temos tempo a perder. Eu carrego ele daqui e você limpa o sangue. Corte esses arbustos se for preciso. Não deixe nenhum sinal. Nenhuma gota.
            - É claro! Mas o que o Dr. fará com o corpo?
            - Não sei. Vou tirar ele daqui e depois penso numa solução. Sem policiais entendeu? Não queremos ninguém bisbilhotando por aqui. Temos muitas irregularidades aqui que as autoridades não gostariam de ver. Fui claro?
            - Com certeza Dr. Ramon.
            A essa altura as coisas estavam complicadas e tive que tomar uma decisão rápida e que melhor solucionasse o problema. Que isso fique registrado apenas aqui e em lugar mais algum. Coloquei o corpo na ambulância e com ajuda de um enfermeiro que preservarei o nome aqui, enterramos o cadáver em um terreno baldio que havia perto da casa de repouso. Enterramos de fronte para um pé de oliveira que crescia em meio a um matagal. Tomara que ninguém resolva construir por aqui. Para todos os efeitos Dinis havia conseguido fugir. Se alguém por ventura encontrar o corpo dele no futuro, já não será mais minha responsabilidade. “Fazemos de tudo para mantê-lo seguro, mas erros podem acontecer nas melhores instituições, não somos infalíveis e, infelizmente não temos orçamento suficiente para vigiá-los com maior eficiência. Mesmo assim, esse é um caso isolado, que jamais acontecera antes e nunca mais se repetirá”. Essas seriam minhas palavras para os jornalistas se um dia encontrassem o corpo moribundo desse amaldiçoado homem.
Hoje o dia foi pesado. Não tenho força para colocar mais nada no papel. Minha cabeça dói. Que noite infernal terei.

***
           
Estou com o tempo escasso e as costas castigadas. Por isso hoje serei breve. David ganhou alta. Méritos dele. Não irei me ater aos seus comportamentos, pois já o fiz em diversas páginas anteriores. Em outras circunstâncias manteria ele por mais tempo, porém, temos que estar com o foco voltado aos problemas reais que nos cercam cada vez mais. Ele recebeu a notícia com um silêncio que lhe era peculiar. Depois, estranhamente, abriu um sorriso de canto de boca e um brilho que nunca tinha visto nele ganhou seus olhos, enquanto fez um sinal positivo lentamente com a cabeça.
            Observei pela janela ele indo embora. Antes de sair pelo portão, lançou um olhar por todo o casarão, como se para contemplá-lo pela última vez. Respirou fundo e com passos firmes e decididos seguiu em direção a saída. Uma mulher de pele morena e cabelos negros e escorridos até os ombros lhe esperava do lado de fora. Se encararam por alguns segundos, como alguém que encara um fantasma que conhece bem e já não assusta mais. Depois, deram um abraço que demorou mais de um minuto, até finalmente darem as mãos e desaparecerem subindo a avenida que leva para o centro da cidade.
            Sinceramente, para o bem de nós dois, espero nunca mais vê-lo por aqui.

***

            Hoje é um dia complexamente triste. Ilda morreu. Eu sei que muitos aqui vão comemorar em silêncio e depois pediram perdão para sua própria consciência por pensamento tão vil e mesquinho. Ela era rude e autoritária com os pacientes, mas não podemos julgá-la, não é fácil estar na situação dela. Quem a conhecia como eu sabe que ela tinha tanto medo dos pacientes como eles o tinham dela. Além do mais, quando estávamos a sós, não raras vezes ela deixava transparecer alguma fraqueza em sua alma. Aquela mulher de ferro também tinha certa ternura escondida debaixo da armadura.
          Há quem diga que nem sempre foi assim. Conheci um pouco da história dela. Em parte, pela boca da própria e, em outra, por mérito de minha capacidade investigativa. Soube que nascera na região conhecida como A Raia, na fronteira entre Portugal e Espanha e que, por mais difícil que fosse de acreditar nisso no presente, havia sido uma jovem muito bonita, de longos cabelos castanhos e seios de Pêra. Também era muito inteligente e leitora assídua de grandes clássicos. Seu pai achava nela um prodígio a quem depositava toda a fé paternal. “Terá um futuro brilhante” dizia aos quatro cantos. Mas algo irrompeu em seu destino, como uma força inafastável e incontrolável: uma paixão. Há quem diga que o conheceu na fila do teatro, mas ninguém sabe ao certo. O que se sabe é que, antes de atingir a maioridade, fugiu com ele, um toureiro oriundo de Pamplona que sabe-se lá o que fazia por aquelas bandas, para viverem um amor sórdido e caliente, como em alguns livros proibidos que lia escondida. Dizem que seu pai morreu de desgosto no mês seguinte e sua mãe declarou para quem se interessasse que sua filha, para todos os efeitos, havia morrido. Entretanto, por crueldade de alguém que ocupava o lugar de Deus naquele momento, o que era para ser uma história de amor e desejo acabou se findando antes do tempo. O toureiro (que nunca descobri o nome) morreu de tifo um dia depois de casarem escondidos em um vilarejo perto de Sevilha. Daí em diante a vida de Ilda correu ladeira abaixo. Antes tivesse ido junto com o marido para o crepúsculo da eternidade. Pelo pouco que soube, Ilda passou a peregrinar de lugar em lugar, e ganhando dinheiro de todas as formas que se apresentavam ao alcance. Esteve em bordeis de quinta categoria e em vários estabelecimentos especializados em transmitir doenças venéreas.  Em uma altura da vida, chegou a ir para o circo, quando se envolveu com um malabarista francês.  Só não sabia que esse trocava de mulher como se troca de roupa. O romance durou um ou dois meses, até esse conhecer uma cigana a quem jurou amor eterno.  Dele não se sabe mais nada.
Quanto a Ilda, a esquizofrenia acabou com o que restara daquela moça ávida e bonita. Já não me recordo com precisão há quanto tempo ela cá se encontrava. A verdade é que ela estava piorando cada vez mais. Em especial depois do incidente com Dinis, com quem mantinha um estranho caso.
            Ilda morreu de madrugada. Infarto fulminante foi o que me pareceu. Os serviçais só notaram de manhã, quando estranharam o silêncio nos saguões. Por mais que neguem, Ilda fará falta por aqui. Tinha-a como de extrema confiança. Que sua alma encontre a paz que o mundo lhe tirou...

***

            Tomei um belo susto hoje pela tarde. Um dos pacientes me disse com a voz trêmula e dissonante que haviam encontrado o corpo de Dinis! Isso mesmo. Imagine como ficou meu estado de consciência ao ouvir essas palavras que me atravessaram como facas.
            - Como assim? - Me fiz de desentendido.
            - Pois é exatamente isso. Encontraram seu corpo boiando no rio aqui perto. Mortinho!
            “Boiando no rio”. Quando escutei isso, um alívio percorreu meu corpo. Estava claro. Alguém desconfiado do sumiço de Dinis inventou essa história com o intuito de descobrir alguma coisa. Tentar fazer eu dar com a língua nos dentes. Porém, sou vacinado contra esse tipo de artimanha e quem morderia a língua não seria eu.
            - E quem espalhou uma sandice dessas?
            - E o que ganho com isso?
            - Uma carteira de cigarro.
            - Vicente! Ele sempre sabe de coisas que ninguém mais sabe!
            Então fora esse maldito espertinho que espalhara tal boato. Já era de se desconfiar. O sabichão sabia mesmo como contar uma história convincente. Mas qual seria o interesse de Vicente em saber o que realmente acontecera com Dinis? É no mínimo estranho e curioso. Vicente não dá ponto sem nó. Todas as suas atitudes são dirigidas para um fim e eu precisava estar à frente dele para não ser enganado.
            - Não conte para ninguém que teve essa conversa comigo. Compartilharei só com você. Dinis conseguiu fugir, mas ao contrário dos rumores, não foi encontrado em lugar algum. A essas horas deve estar longe daqui, quiçá estará na Itália. Sabia você que ele tem parentes por lá? (resposta negativa com a cabeça).
           - Pois então homem, Dinis não é problema mais nosso. Tome suas medicações e pare de bisbilhotar a vida alheia. Isso não ajudará ninguém aqui.
            Entreguei uma carteira de cigarro para ele e saiu pelo corredor em completo silêncio.
           
***

            É claro que sabia que meu querido confidente iria, mais cedo ou mais tarde, abrir nossa conversa para Vicente. Foi Dra. Helena que presenciou, escondida atrás de umas buganvílias, a cena dos dois conversando. Segundo ela me relatou, Vicente pareceu contente em saber que eu, o grande Dr. Ramon Saavedra, acreditava que Dinis havia conseguido êxito em sua empreitada fugitiva e estava agora longe daqui. Mas o que Vicente tem a ver com isso?
            Quando voltava para minha sala, encontrei a paciente Anabela parada em frente à porta.
            - Preciso falar com você a sós, Dr. Saavedra.
            - Não tenho tempo.
            - É sobre Dinis e Vicente.
            - Dinis e Vicente?  - Inquiri, incrédulo.
            - Eu sei tudo o que aconteceu.
            Olhei para os lados para perscrutar se algum outro paciente ou alguma daquelas criadas com sotaque castelhano estavam por perto. Por sorte não havia ninguém. Abri a porta e fiz sinal para ela entrar. Depois tranquei a porta.
            - Seja direta! – Ordenei.
            - Como deve saber, eu e a Amélia desenvolvemos um grau de amizade e ela é a única pessoa em quem confio aqui nesse lugar e acredito que seja recíproco. Tanto que ela me confidenciou algo que não contaria a ninguém mais. Acho que você sabe o que é. Dinis, o defunto inconveniente.
            - Onde você quer chegar?
            - Não me interessa saber o que disse para os pacientes. Essa história de fuga e tudo mais. Vim aqui apenas para dizer que acho que quem fez isso foi Vicente.
            - Vicente? E por qual motivo lanças tamanha acusação?
            - Porque o vi na noite em que Dinis morreu. Mas não foi só isso. Escutei um grito abafado de dor uns minutos antes. Na hora achei que estivesse alucinando. Mas, depois que Amélia me contou, as coisas ficaram claras na minha cabeça. Era real. Vicente saiu das sombras dos ciprestes e correu para os corredores. Sempre desconfiei dele! Só pode ter sido ele.
            - Dinis se matou e tudo indica isso. Estava deprimido e com um caco de vidro nas mãos. Você tem tomado seus remédios corretamente, Anabela?
            - Sabia que não acreditaria em mim. Pois saiba que cumpri com meu dever de consciência, contando-lhe a verdade.
            - Agradeço sua preocupação, mas está tudo sob controle. Preocupe-se com sua medicação, quem não se comporta bem aqui demora mais para sair, se é que você me entende?
            - Perfeitamente!
            Abri a porta e Anabela saiu me encarando com olhos enegrecidos de raiva. É melhor assim. Precisa saber os limites desse lugar. Quanto a Vicente, minhas suspeitas estão se concretizando. Anabela veio para cá apresentando um quadro que incluía alucinações, em especial do pai já falecido. Entretanto, dessa vez pode ter sido real. Vicente não é apenas um espertalhão. Há algo de podre nessa história e ele fede a cadáver. De qualquer modo, para o próprio bem de Anabela, é melhor ela achar que tudo foi uma alucinação. Preciso ter uma conversa com a Dra. Helena.

***

            Estava saindo do consultório quando Dra. Helena entrou de supetão.
            - Reputo que não seja o melhor momento, mas precisa saber de uma coisa. Não tenho mais ninguém para contar.
            - Sou todo ouvidos.
            - Estou grávida!
            - Meu Deus! – Respirei fundo, olhei dentro dos olhos de Dra. Helena e vi o quanto estava confusa.
            - Não me diga que...
            - Gabriel! Só pode ser dele.
            - E o que vai fazer?
            - Criá-lo sozinha! Ninguém pode saber quem é o pai, ouviu?
            Fiz que sim com a cabeça e Dra. Helena saiu da sala sem olhar para trás. O que mais precisa acontecer nesse lugar?
           
***

             As coisas estão saindo do controle. Sinto que já não tenho mais a autoridade de outrora. Ilda morreu, Dra. Helena engravidou de um paciente, Dinis foi assassinado por outro paciente e há boatos e rumores cada vez mais criativos correndo pelas bocas dos internos. “Somos cobaias de experiências do governo”, foi o que ouvi esses dias pelos corredores. Estão cada vez mais inquietos. Pressinto que outra tragédia acontecerá, debaixo de nossos narizes.
            Preciso dar um jeito em Vicente. Mas ainda não tenho provas para colocá-lo contra a parede, a não ser uma testemunha ocular que sofre de alucinações. Dra. Helena conversou com ela ontem. Anabela disse, durante a conversa, que não lembra se viu Vicente ou seu próprio pai saindo das sombras, naquela maldita noite. 
            Talvez o caderno de Vicente diga alguma coisa. Não aquele que me entregou na semana passada, com relatos triviais e histórias artificiais inventadas por ele. Dra. Helena me contou que já o viu escrevendo em outro tipo de caderno, de capa menor. Confissões de um assassino? Preciso descobrir com meus próprios olhos...

***

            Revistei todo o quarto desse infeliz, mas nada encontrei. Se esse outro caderno existe está guardado em outro lugar. Procurei no quarto de Beatriz também, sem sucesso. Preciso vigiá-lo de perto. Não lhe darei sossego até descobrir a verdade.
Nesse momento enxergo-o pela janela, está sentado debaixo de uma buganvília enquanto toca um piano imaginário. Logo nota que estou observando-o. O patife me encara com um sorriso no rosto e acena em minha direção com a mão direita. Ignoro. Deve estar achando que me contornou direitinho, que está anos luz à minha frente. Não consegui chegar aqui à toa. Vai descobrir da pior maneira quem é o Dr. Ramon Saavedra.

***

            O telefone interrompeu meu sono em uma noite em que esse custou para chegar. Estava na minha casa. Ao contrário do que muitos pensam, eu não moro naquela maldita casa de repouso, apesar de passar muito mais tempo lá. Onde eu moro é segredo até para essas páginas. Voltando ao telefone, levantei zonzo para atendê-lo.
            - Alô!
        - Dr. Ramon, é Helena. Vicente e Beatriz sumiram. Eu e as serviçais já procurámos em toda parte. Nem sinal dos dois.
            - Malditos! Vou para aí agora mesmo.
            - Não é só isso, Dr. Ramon. Tem outra coisa. Anabela...ela morreu!
            - Morta? Como assim? Meu Deus do céu!
           - Os vidros do quarto estão quebrados. Parece que se jogou pela janela. Já estava morta quando a encontramos no chão. Desculpe.
            - O desgraçado deve ter a jogado pela janela antes de fugir. Estou saindo daqui agora.
            - Desculpe. – Disse Dra. Helena novamente antes de desligar.
            Assim que coloquei o aparelho de volta no gancho, escutei um barulho vindo da parte debaixo da casa. Parecia vidro quebrando. Em seguida, o som de passos sincronizados rompia o silêncio. Pisavam sobre meu tapete da sala. Em seguida escutei-os, calmamente, subindo as escadas de madeira. Olhei para a porta de meu quarto e notei que não estava trancada. Uma gota de suor começou a escorrer de minha testa enquanto os passos ficavam mais próximos. Cinco metros e meio. Era a distância de onde estava até a minha porta. Levantei correndo da cadeira e como um relâmpago cheguei até ela. O som da chave girando e trancando a porta foi como uma música para meus ouvidos. Ofegante, me debrucei contra a porta. Podia escutar a respiração de quem estava no outro lado. Fosse quem fosse, percebeu que eu a trancara e desistiu da investida. Seus passos recuaram e os ouvi saindo. Corri para janela que dá para a rua lateral da casa. Só me restou ver uma silhueta toda vestida de preto desaparecendo na escuridão.

***

            Estou enlouquecendo com todos os acontecimentos dos últimos dias, em especial o da noite passada. Dra. Helena estava em prantos. Enterrámos Anabela ao lado de Dinis, com a enorme oliveira como única testemunha. Não demorariam muito para descobrirem as mortes e tudo estaria acabado. O projeto de curar as diversas perturbações que afligiam a mente humana estaria fadado ao fracasso total e a casa de repouso seria fechada para sempre. Meu único alento era encontrar o maldito que fizera tudo isso: Vicente. E isso não tardaria a acontecer.
            Os pacientes foram impedidos de deixar seus aposentos até segunda ordem. Ministrámos calmantes pesados para que as ordens fossem obedecidas sem resistência. Um silêncio sepulcral se arrastava pelos corredores e salões. Até mesmo Dra. Helena se encontrava em repouso completo.
            Eu tentava entender como chegámos nesse ponto. Onde havíamos errado? Talvez devesse ter seguido os conselhos de meu pai e entrado para o exército quando atingira a maioridade. Tudo poderia ter sido muito diferente. Coloco as duas mãos sobre os olhos. Queria dormir e não acordar mais. Acho que é hora de testar um desses medicamentos que entorpecem até a alma. Que bálsamo seria simplesmente esquecer tudo isso.
            Porém, essa história ainda não está terminada e existem limites que, uma vez ultrapassados, não há mais volta. E eu estava metido em um deles. Não havia fuga possível para mim.
            Nesse momento, uma batida forte em minha porta. Uma das serviçais me chamava ofegante. “Necesita verlo”. Era a única coisa que falava. Então me agarrou pelo braço e me fez acompanhá-la. Chegámos até a cozinha e ela abriu uma geladeira antiga que acompanháva o lugar desde a sua construção, fechando os olhos em seguida. O que vi espantaria qualquer um com as faculdades mentais intactas, mas não a mim. Podia dizer que estáva talhado o suficiente para não me impressionar com mais nada. Por isso, conto aqui sem rodeios o que vi: Vicente morto e congelado geladeira a dentro. “Dios mio” disse a criada fazendo o sinal da cruz mais desordenado que já havia visto. A mim apenas uma única palavra vinha a mente: Beatriz!

***

            Fazia um calor escaldante quando Helena deu à luz uma linda menina de olhos verdes. O céu estava imerso num oceano azul e límpido e uma brisa fresca nos tocava o rosto quando o primeiro choro daquela divina criaturinha ganhou os ares. Estava disposto a criá-la como se fosse minha filha. Filha de Ramon Saavedra, ou melhor, Raul Sampierri. Esse é o nome falso que se tornou o meu desde o dia em que Helena – agora Eleonor - e eu partimos da casa de repouso com documentos falsos rumo a Itália (não era bem Dinis que tinha parentes por aqui). Vivemos hoje no Vale da Sicília, bem longe das paredes e corredores cheirando a produtos químicos daquele lugar amaldiçoado. Fugimos na mesma madrugada em que encontrei Vicente congelado na geladeira. Na época, eu e Helena fugimos juntos por comodidade. Tínhamos apenas um ao outro e segredos inconfessáveis que somente entre nós poderíamos falar. Ninguém mais entenderia. A morte nos uniu e agradeço a ela por isso, às vezes ela acerta em alguma coisa.
            Quanto a Beatriz, não tenho ideia o que aconteceu com ela. Tenho minhas teorias. Acredito que Vicente tenha matado Dinis. Com ajuda dela? Talvez. Fato é que ela era tão fria como ele e quando teve oportunidade o golpeou pelas costas (havia sinais de ferimento na parte de trás da cabeça) e o deixou naquela geladeira para congelar como um animal após o abate. Deve ter fugido com a maldita chave-mestra que havia sumido do quarto de Amélia no dia em que encontrámos Dinis morto. Só Deus e o Diabo sabem onde Beatriz está agora.
            Nada disso importa mais. Arranquei várias páginas desse caderno e as atirei de cima de um dos montes Peloritanos. Faria isso com todas as páginas, mas Helena me impediu. Pegou o que sobrou do caderno e guardou em uma caixa de madeira. Disse que antes de morrer vai enterrá-lo em algum lugar, no quintal da casa de repouso ou do que sobrar dela. “Só assim essas recordações encontrarão a paz”. Disse olhando para mim, antes de me dar um beijo quente. Concordei com ela, enquanto olhava para a cadeia de montes e vales que me cercavam e, pela primeira vez na vida me senti feliz de verdade.


Senti minha alma sair e voltar do corpo várias vezes lendo essas últimas páginas perdidas que vieram até a mim por força do acaso. Ou será do destino? Nunca acreditei muito nele. Todas essas histórias não me saem da cabeça. Fico pensando o que terá acontecido com os que sobreviveram a tudo aquilo. Terão tido uma segunda chance? Assim como Helena e Ramon? Ou assim como David e Gabriel. E o que terá acontecido com Beatriz? Alguma vez terá sido descoberta pelo que fez? E Anabela, terá mesmo se jogado pelo vidro da janela num salto ao desconhecido além da vida? Nunca saberei essas respostas. Já não tenho idade para isso. Quem as tem? Também não sei dizer.
Resolvi enterrar todos os cadernos que encontrei, em frente a uma enorme e envelhecida buganvília. Depois resolvi arejar a cabeça. Lembrei que hoje vão inaugurar uma nova praça aqui perto. Será um bom lugar para me distrair. Caminho até lá sem pensar em nada. O dia está tão bonito quanto Ramon descreve na última página. A praça está cheia de pessoas. Crianças correndo. Sento em um banco de madeira e aprecio uma enorme árvore à minha frente. É uma oliveira e parece estar aqui há muito tempo. Enquanto olho para ela dois passarinhos param em meus ombros. Eles olham para mim como se me conhecessem há muito tempo e depois de uns minutos me encarando, voam livres até um galho da árvore. Só então me dou conta que Anabela e Dinis foram enterrados perto de uma oliveira. Todavia, é tarde demais para divagações. Dou adeus para os dois passarinhos e eles parecem me entender. Compro algodão doce de um jovem simpático e sigo meu caminho.


                                                                         Grégor Carlos Marcondes


7 comentários:

  1. Chegou ao fim esta bela história de que gostei de acompanhar.
    Um abraço e continuação de uma boa semana.

    Andarilhar
    Dedais de Francisco e Idalisa
    O prazer dos livros

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  2. Eu não acompanhei a história, vida corrida demais,mas vim te desejar um bom fim de semana.Bjs.

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  3. Com o cuidado de apanhar várias pontas soltas e desvendando destinos, tanto dos autores dos cadernos como de quem os leu por acaso, gostei muito deste final!

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  4. Uma história bem engendrada, com algumas interrogações finais, como me parece que viria a suceder! Mas excelente! Gostei do final para todos, mas especialmente os do Gabriel e do Dinis, que saíram incólumes do hospício, e o da gravidez da Dr.ª Helena, que acaba por fugir com o Dr. Ramón!
    Bom fim de semana!

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  5. Li a história e adorei. Um abraço com carinho

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  6. Bom dia, não acompanhei a historia, pelo que li agora da D. Helena, certamente que foi uma boa historia escrita com criatividade pelo Grégor Carlos Marcondes.
    AG

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  7. Fui acompanhando e lendo aquilo que estava antes. Gostei do processo narrativo, por vezes surpreendente. Este final faz jus aos capítulos anteriores.

    Beijo

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