Teresa
Sim, sabia-se complicada. Sempre de
cabeça no ar, cheia de ilusões artísticas, frustrações de quem adorava arte e
não pintava uma árvore ou escrevia duas folhas de texto. Refugiava-se num
pretenso conhecimento artístico, conhecia os museus todos e até muitas das
obras que por lá ganhavam bolor e em segredo suspirava vontade de criar algo
semelhante, infinitamente semelhante, no mínimo.
Por outro lado, sempre presente
estava a sua educação católica, profunda, imensamente castradora, que não
parava de lhe segredar o que não devia fazer, os eternos pecados… Raimundo era
do seu mundo, criado e educado da mesma forma, crente e casto, sincero nas suas
convicções, sem mentiras ou hipocrisias, parecia…
Todos de boas famílias, cumpridoras
dos castos deveres, missas dominicais e outros ais. Cresceram juntos, viu-o
crescer, era o seu ídolo. Raimundo estava sempre entre os preferidos, ajudava
na missa, na catequese ou nos campos de férias, até se falava que seria padre,
tão aplicado era na mensagem. Ajudava em tudo mas nunca se envolvia com ninguém
do grupo, estava noutra dimensão: perfeito, inatingível, como as peças de arte
que aprendeu a adorar.
O amor, ou o que ela pensava ser
tal sensação, cresceu assim, descontrolado. Teresa tudo fazia para estar perto,
ser a primeira das ajudantes, e ele gabava-a, dizia que era uma excelente
rapariga, bonita até, mas nada mais do que isso…
Durante anos, apesar de tudo, bastou-lhe.
Afinal ele não abdicava da sua presença, da sua ajuda, e também assim, ela
estava no centro das atenções. As beatas, principalmente, as mais velhas e
encarquilhadas, tantas vezes desenganadas pelos seus, também castos maridos,
incentivavam-na, transferiam para ela as suas frustrações, alinhavam com o
santo padre, na mensagem: “a virtude, e a esperança, são as últimas coisas a
perder…”
Houve algumas tentativas, alguns
esfreganços, até. Uns beijos e mexidas em sítios inconfessáveis sempre travados
à última hora por ele, sempre por ele! Por ela, por muitas avéns Marias ou
padre nossos que tivesse de dizer depois, há muito que se lhe teria entregado
toda, sem limitações, sem se ralar se era pecado ou não!
E assim continuou a sua vidinha; suspirando
pelos cantos, certinha e adorada por todos, bolorentos… até que um evento mudou
a sua vida. Raimundo, o exemplo a seguir, aquele que todas as suas amigas
também disputavam, afinal tinha duas faces: um hipócrita! Não se sabe se sempre
fora assim ou se tal começara quando saíra para estudar na capital, mas pelos
vistos descobrira o prazer da carne, e pouco lhe importava se era tenra ou
rija. Foi um marido enganado que, inventivo e destemido, o desmascarou. Foi em
plena missa em que o “santo” participava, que lhe deu uns abanões vigorosos.
Estranhamente, ou talvez não,
depois da surpresa, vieram as desculpas, as confissões e contrições. A família
influente e abastada pagou a bula e rapidamente tudo caiu no esquecimento de
todos, menos no dela…
Não importava que ele tivesse tido
mulheres, poucas ou muitas, era-lhe indiferente, até o tornava mais humano e
apetecível. Mas o que não aceitava, de forma alguma, era o facto de todas as
coisas de que o acusavam não terem acontecido, consigo também!
Os primeiros dias foram
complicados. Mirava-se ao espelho, nua ou vestida, de costas ou de frente,
maquilhada ou desgrenhada, e só conseguia ver um excelente espécime feminino.
Aliás, os homens na rua, de forma mais ou menos elegante, todos os dias a lembravam
disso.
Depois do desgosto, veio a revolta,
a raiva por se sentir preterida! Caramba, era adulta, tinha pretendentes e algo
que estava constantemente sonhado, sempre só com ele, guardado e intacto, de
repente tornou-se um fardo, exemplo da sua incompetência…
Lembrava-se da cara dele, até do
nome, mas do resto, nem por isso. O sonho, na sua forma platónica, deu lugar
primeiro a alguma dor fugaz e depois a imenso prazer. Mas, depois do depois,
veio a malvada da consciência, bem lavada por anos e anos de doutrina, que
acordou e não parava de lhe cobrar.
O Porto foi a sua fuga; não do
Raimundo, de si própria. Tinha de sair dali e encontrar-se, perceber onde
estaria o equilíbrio entre o que a sua condição de humana sentia e queria e o
que lhe impunham os ensinamentos.
O João, homem culto e interessante,
apareceu-lhe no meio de todas estas cogitações, mas para algo acontecer com
ele, tinha de exorcizar o seu demónio: Raimundo! Esperava ver-lhe na cara uma
expressão arrependida, mas o que encontrou foi alguém de curso terminado, cada
vez mais inserido na sociedade, a sorrir cinicamente e a desejar-lhe
felicidades. No regresso ao Porto, no Instituto ainda tentou falar com o João,
mas ele, despeitado, não lhe deu qualquer hipótese, não lutou!
Uma manhã, qual bruxa má, quando se
olhava pela milionésima vez ao espelho, disse:
“Que se lixe, para hipócrita,
hipócrita e meio! O meu espírito precisa da igreja, mas o meu corpo também. Vou
para um convento e de certeza que também há padres que são homens… cuidem-se!”
Joaquim
Henriques
Passando aqui rapidinho para te desejar um bom fim de semana.
ResponderEliminarMuito interessante, gostei e aproveito para desejar um bom fim-de-semana.
ResponderEliminarAndarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Teresa, demorou mas percebeu. Porquê alimentar um sonho que se vai adiando, se pode ter imensas e abençoadas vivências reais?!
ResponderEliminarTalvez caiba uma anedota neste comentário; duas freiras viajavam no compartimento de um comboio, entretidas em conversas corriqueiras de convento. Quando o comboio chega a uma estação, entram duas jovens todas modernaças e fisicamente muito bem "equipadas", que ocupam o mesmo compartimento onde viajam as freiras. Imediatamente, porque não se viam desde a universidade, começaram a colocar a conversa em dia. Diz uma das amigas: - estás fabulosa! Em que trabalhas? Responde a amiga: - Nem imaginas… quando saímos da universidade, fui secretariar o presidente de uma multinacional. É um senhor super meu amigo, além de um excelente ordenado, oferece-me com frequência presentes caríssimos, carro topo de gama, apartamento de luxo, viagens… atalha logo a amiga: -fantástico, olha, eu também tive muita sorte, também conheci um empresário que me trata como uma rainha, dá-me imensas coisas, não preciso de trabalhar, tenho uma vida ótima. Entretanto chegam á estação seguinte e as duas amigas saem, logo que ficam sós, as freiras voltam-se uma para a outra e desabafam com ar constrangido: já viu irmã; a nós o padre Miguel só nos dá santinhos.
Um silêncio que se quebra dentro de nós!Bravo1Parabens!
ResponderEliminarAbraços
Isaias
os homens sempre os grandes culpados
ResponderEliminarem textos escritos por mulheres, diga-se.
no entanto, gostei da escrita.
parabéns!
irei voltar!
Que bem escreves, Joaquim!
ResponderEliminarParabéns!
Abraço.
Muito boa esta continuação! Excelente fôlego narrativo.
ResponderEliminarBeijinho
Interessante...
ResponderEliminarConheci um trio assim, ela, mantém-se amante do “Raimundo” e ainda chora a leviandande com o “João”.
Gostei deste triângulo. Parabéns.