20/07/19

Variações em Quadrilha - Capítulo 3


Raimundo 
Imagem de Willgard Krause por Pixabay
Ao contrário do que Teresa pudesse pensar, Raimundo acordara tarde para as coisas do amor e do pecado.
Que força aterradora era essa que o impelia a pensamentos e atos insanos e impuros?
Chamavam-lhe desejo, vontade própria do corpo desalmado e sem freio, ainda em toda a sua inexperiência.
Assaltavam-lhe pensamentos impróprios que lhe subjugavam o olhar cobiçoso, que embora simulado, interiormente desnudava as mulheres com que se cruzava. Bastava-lhe uns lábios desenhando um sorriso fresco, um botão inadvertidamente desapertado, um roçar de tecido de uma saia denunciando as formas femininas, para que os seus sentidos imaginassem sem pudor um corpo vivo, quente e sumarento como uma romã rasgada sob o sol doirado.
Pensava que se o inferno deveras existisse, se assemelharia a essa loucura que lhe inflamava a mente e a pele, e lhe prendia as mãos e os pés e lhe secava a voz mesmo ainda antes de ousar as palavras.
E procurava o frio dos claustros e a mudez do homem preso na cruz, vítima de um suplício tão agonizante como o seu, e a solidão em que se recolhia.
Conhecia Teresa desde que se lembrava.
Haviam sido irmãos nas brincadeiras e, até há algum tempo, também confidentes sem qualquer receio de julgamento. Isso até ao momento em que a desejou. E não fosse terem sido interrompido, teria ousado um gesto, um toque inconsciente e irresponsável. Na frieza da solidão, analisara a confusão de sensações de que fora acometido e agradecera em oração, a imprevista entrada da mãe dela na salinha onde fingiam estudar.
No entanto, a consciência do impossível não abrandara a sua reação ao corpo esguio de mulher que despontava em exuberância,
Quase que pressentira que Teresa sentia o mesmo, mas a inconcebível hipótese do seu relacionamento justificava-se como sendo praticamente incestuosa. Por outro lado, se cogitando se o passado partilhado por ambos poderia aliar-se a este recente sentimento, logo desconfiava que o que os seus sentidos lhe ditavam nada tinha a ver com o amor de que lera nos clássicos: seria pura e ferozmente uma fome que, depois de saciada, nada mais teria para oferecer a não ser o fim de uma amizade que prezava.
Assim, sentenciou-se ao afastamento, à reclusão na igreja que frequentavam; por tradição apinhada de crentes aos domingos, mas despovoada de gente de fé aos dias de semana. Só os santos purulentos nas suas chagas expostas e iluminados pela frágil e tremeluzente chama das velas amarelecidas, velavam a sua inquietude. E sempre que uma beata ou outro devoto inoportuno invadia os seus claustros, escondia-se no confessionário de madeira escura que exalava um pesado e estranhamente apaziguador aroma céreo.
Por entre o pó incrustado na craticula do vestíbulo indiscreto ou nas cortinas de veludo vermelho que vedavam os segredos ali confecionados, Raimundo observava quem ali esporadicamente se recolhia; os seus rostos sofridos ou até irados, o mover dos lábios em surdas orações, o gesticular do sinal da cruz a terminar cada ato de fé na procura de ajuda ou absolvição.
E foi assim que a viu; um anjo de negro ou era negro o véu que mal dissimulava os longos cabelos loiros que, por debaixo dele, desciam revoltos. Mais que qualquer outra coisa, foi a curiosidade que se lhe aguçou na procura do rosto daquele vulto feminino.
Mas a revelação do desconhecido semblante não se proporcionou: o ângulo de visão do pequeno estande face ao banco onde a mesma se ajoelhara tornava-o alheio a qualquer vislumbre de um simples traço que fosse. Apenas aquela cascata de caracóis dourados se lhe oferecia a instigar o seu diletantismo.
Raimundo percebeu que ela chorara – vira-a retirar de uma bolsinha de renda atada ao fino pulso um lencinho de cambraia que levara aos olhos a ele velados.
E como chegou, logo se levantou e partiu.
Mas voltou outras vezes, sempre discreta, sem que Raimundo a pudesse confrontar e lhe ver o rosto desnudado.
E a curiosidade levou à ansiedade da antecipação dos momentos que já considerava de ambos tão íntimos, mesmo que ela dele nada soubesse nem o pressentisse sempre ali escondido na sua alcova.
Lá fora, o sol por ele ignorado, assim como todo o restante mundo exterior, já descia na sua exuberância de ruídos de cor e de sons frenéticos, quando ela finalmente entrou.
Não se ajoelhou em sinal de reverência, nem iniciou quaisquer preces caladas.
Sem aviso, desvendou a cortina de veludo e ajoelhou-se de frente para o rosto surpreso e impreparado de Raimundo. Entre eles, apenas a pequena rede que separava o padre do penitente e logo ela abriu a pequena porta. A respiração dele contida, a dela um sopro ansioso e os gestos nervosos.
- Padre, desejo me confessar. Tem a sua porta fechada, mas, desculpe-me o atrevimento, vi os seus pés por debaixo da cortina e eu estou tão necessitada!
Incapaz de lhe falar, ele abriu a porta e acenou-lhe com a cabeça.
- Padre, eu hoje vou matá-lo, o meu marido!
- O quê? Mas senhora, o que me dizeis? – Balbuciou ele levantando-se.
 Ela levantou-se também e correu para a outra cortina, sem que tivesse tempo de se cobrir com o véu.
- Mas padre, eu sei que é contra a natureza dos homens e de Deus, a decisão que lhe anunciei, mas, como sabe, tenho mais do que justificações. Não lhe contei já tudo sobre a minha situação? Aquele homem é um demónio. Nunca deveria ter acatado a decisão do meu pai e casado com ele. Tudo para salvá-lo da ruína e da vergonha e, de nada valeu. Estão mortos ambos os meus pais, nada resta. Apenas a solidão… … sempre a violência das suas palavras e dos seus gestos.
Ele de nada sabia. Certamente tomara-o pelo sacerdote que talvez nunca tivesse visto ou conhecido bem. E que pobre criatura aquela; a fonte de tudo o que sentia que sabia ser agora amor.
Se lhe revelasse a sua identidade, provavelmente, fugiria e não a poderia dissuadir de tal loucura.
- Mas, filha lembra-te da tua alma e da perdição eterna … - fora o que lhe ocorrera, enquanto tentava organizar uma contra-argumentação credível e eficiente.
- Que alma, padre? Com toda a selvajaria daquele homem, se alma eu tivesse já me havia de a ter arrancado.
Estavam ambos expostos no exterior do confessionário, falando num tom nada condizente com o eco do silêncio da nave.
Estavam sós, mas poderiam ser facilmente vistos e ouvidos da larga entrada da igreja.
Raimundo, tocando-lhe levemente o braço magro, orientou-a por umas escadinhas laterais que levavam ao balcão do coral.
Sentaram-se frente a frente e só ali Raimundo se apercebeu do castanho aveludado dos seus olhos e receou perder-se neles.
- Mas recorde-me o seu nome… - pediu-lhe.
- Chamo-me Maria do Rosário de Lemos. Sou casada com o Dr. Joaquim Lemos, o diretor clínico do Hospital de S. Teotónio.
Já ouvira falar dele como um bom profissional e era estimado pela comunidade. Era também filho de boas famílias, bastante abastadas pelo que se dizia.
- Conte-me novamente como tudo começou, talvez possamos arranjar uma solução que não seja essa que a levaria à prisão.
E Raimundo ouviu-a com o coração dilacerado pela impossibilidade do seu descoberto amor, assim como pela angústia que lhe ouvia no rosto ao contar-lhe todas aquelas histórias barbaras.
No fim, deixou-a chorar agarrada aos seus braços, desejando logo que não o tivesse feito. O seu corpo reagia ao dela como se o conhecesse desde o primeiro respirar, antecipando cada movimento, moldando as suas concavidades nos seus convexos ângulos, como se de um só ser temporariamente divisível se tratassem.
Que loucura os tomou que logo a sua boca procurava os lábios de Maria, abertos para si e as suas mãos que tremiam buscavam o que a sua alma sempre conhecera do corpo da sua outra metade.
Era um fim que se transformava em início e um recomeço continuo e em crescendo que o assustava e deliciava, restando-lhe a completa subjugação.
Já Maria o despia e lhe orientava as mãos incautas para si, levando-o a ousar o mesmo.
Amaram-se ali mesmo no chão frio e duro da pedra escura e desnuda.
E já Maria repousava no seu braço, enquanto Raimundo a observava languidamente. Maria era pequena e esguia e a sua pele clara era seara de pequeninos pelos muito alvos, onde agora repousavam pequeninas gotículas de suor. Os seus olhos estavam fechados, notando-se-lhe os longos cílios de mel. Tudo nela lhe parecia pueril, quase divino na sua perfeição.
De repente, sem uma palavra ou olhar que denunciasse o que haviam vivido, ela vestiu-se e saiu.
Raimundo não percebia o que sentia, nem o sentido do que se passara. Não tinha vivências que o situassem nem palavras que o firmassem num ponto preciso da sua existência. Nada o prepara para o que acabara de experimentar.
Apenas a memoria ainda viva em toda a sua pele lhe provava que não sonhara, que fora real e palpável para si, agora só naquele refúgio da igreja.
A noite invadira todas as ruas e recantos da cidade e os seus passos na calçada ritmavam o mudar do sentido dos seus pensamentos. Ora pensava que Maria também o amara naquele ato, ora pensava que ela partira daquele modo porque não conseguira fazê-la um pouco mais feliz e que para ela nada significara, ora que estavam destinados um ao outro num futuro muito obscuro…
Era tarde e não comera desde a sopa da mãe e entrou no Restaurante Tradicional, centro de repasto para corpo e para a alma: lá se cantava o fado, hino dos atormentados.
Sentou-se na obscuridade de um canto pouco iluminado. Sorvia um caldo farto e quente, quando as luzes do pequeno palco se iluminaram.
Acompanhou com o olhar a chegada dos músicos que já tentavam algumas notas em jeito de breve ensaio e afinação das guitarras, mas logo se absorveu no prato de carnes agora disposto à sua frente.
Ouviu o bater das palmas, mas não olhou.
Só quando ouviu aquela voz aveludada é que quase se levantou de rompante.
Maria do Rosário, ou fosse quem ela fosse, cantava à sua frente. Os mesmos caracóis dourados sobre as costas nuas que o vestido preto deixava antever, os lábios vermelhos e no cabelo, uma rosa cor de sangue.
E ela cantava e contava uma história de amor mal-aventurado, uma severa cujo amor entregara a um homem cruel e sem moral, mas que mesmo assim ainda sonhava mudá-lo com a força do que sentia… a sua história, a história que lhe contara.
O que significava tudo aquilo?
Haveria de haver uma explicação. Viu-a sair do palco para se dirigir a uma mesa do outro lado da ampla sala. Segui-a e quando quase a acercava, ouviu a voz do homem que a esperava:
- Cantas sempre divinamente, meu amor.
O seu riso, ainda para ele desconhecido, brotou cristalino de dentro da fina garganta de Maria.
- Meu amor, minha paixão, meu querido futuro marido, de divino eu nada tenho.
- Eu sei e por isso te amo ainda com mais loucura. Que história para mim caçaste hoje, meu pequeno demónio? Diz-me. Mal posso esperar. Quase não me contenho. – E o homem abraçou-a possessivamente, sentando-a no seu colo.
- Que tal uma com um jovem pároco, tenro como um cordeiro?
E riram ambos em sonoras gargalhadas.
Raimundo já saía porta fora em busca de ar fresco, algo que o fizesse voltar a sentir os pés no chão, naquele remoinho de raiva, vergonha, medo, tudo o que invadia em catadupa o seu coração destroçado.
Pensou nas piores loucuras, mas rapidamente as abandonou.
Entrou num botequim e bebeu. Pensou no que os seus amigos foliões que haviam dito: que tudo parece mais fácil depois de uns bons copos de cachaça…
As meninas, adivinhando carne fresca, rodearam-no, pensando que talvez aquela noite e aquela vida fosse mais feliz com um rapagão tão bonito. E  o levaram para um dos seus quartinhos.
Uma a uma, foram cuidando daquele coração de bater tão ingénuo, entre beijos e caricias, entre risos e suspiros, num inebriante frenesim. Raimundo sentia-se revigorado pela manhã. Jurou a Deus e ao Diabo não mais se apaixonar tão estupidamente e apagou todas as capelas e igrejas do seu itinerário.
A vida era frívola e bela e ele queria vivê-la, sorvê-la até ao último trago.
Mas cada corpo de mocinha que dedilhava o lembrava da textura da pele de Maria. Na verdade, todas as vezes que amava, era Maria do seu Rosário, que revisitava.
Sentia que o demónio ria do seu juramento.
- Seria Deus a resposta? – Pensou, enquanto caminhava pela rua que levava à capela da Nossa Senhora dos Aflitos, repleta de transeuntes, de turistas, de vendedores de rua, de automóveis e das suas buzinas, e dos elétricos deslizando nos seus eixos metálicos.
Sabia o que o demo de si esperava, mas o tormento de eternamente amar a Maria do Rosário que idealizara, tão diferente da verdadeira, apresentava-se como um sofrimento demasiado penoso para uma alma como a sua.
Lembrou-se da paz em que vivera na sua juventude, antes das tentações dos paraísos demoníacos.
E quis regressar.
Correu a passos largos, mas agora decididos para a igreja matriz. Iria ingressar no seminário e aceitar os votos eclesiásticos. Era o que o mais faria feliz a longo prazo, pensava.
Corria pelo passeio, entre as pessoas, e rodeando os edifícios que invadiam a estrada.
Não o viu, o automóvel que o colheu.
Viu-se deitado no asfalto agora escarlate e a sua pele tão branca. E ele lá do alto, viu o horror daqueles que ali chegavam e o desatino incrédulo do condutor. Viu até não mais se importar e virar o rosto para o alto.
Ouviu duas vozes distantes que conversavam entre elas:
- Dizes-me a razão? Não entendi esta safra, meu grande amigo.
- Com males menores, evito grandes tragédias. Seria a perdição de muitas beatas…. e já cá temos tão poucas almas…
Lá em cima era esperado.
Deus e o Demo, irmãos na criação do mundo, duas faces da mesma moeda, o aguardavam de braços abertos.


                                                                                              Rosa Lídia Santos


11 comentários:

  1. Tudo muito surpreendente! A gente não consegue tirar o olho!
    Grande abraço.

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  2. Um fôlego não é suficiente para acompanhar o ritmo alucinante deste conto, que de tão bem escrito, teve o poder de me colocar no lugar do "padre" Raimundo, espargindo na doirada púbis de Maria, o mais beatífico e cristalino… amor.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Cada vez que receio o que escrevi encontro defeitos e é um "até ao infinito e mais além" de correções... Talvez por isso, agradeço os vossos comentários positivos. Tudo de bom e um bem-haja sincero a todo o grupo daqueles que por aqui "escrevinham". Um abraço. Tenho aprendido muito por estas paragens.
    Rosa Lídia Santos

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  5. Vêem? Mais um erro:Onde se lê receio dever-se-a ler releio....

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  6. Um amigo de apelido Raimundo também tem muito de Deus e Diabo.
    Boa semana

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  7. Boa narrativa. Sigo com muito interesse. Diálogo vivo e bem construído.

    Beijo

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  8. Surpreendente!
    Um excelente capítulo que talvez desse um romance de espantar.
    Parabéns, também, pela prosa.

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