Lili
Do filme "Love Story" |
Lili não amava ninguém. Não
compreendia sequer a razão pela qual deveria amar. Afinal, tanto quanto
percebia, o amor não era mais que uma capa para os ciúmes, o asco, a
desconfiança, quantas vezes o ódio, que todos de todos tinham. Não amava
ninguém, sublinha-se. Mas procedia de modo a simular amar toda a gente, e, por
isso, ninguém havia que a não amasse. E esse feito, conseguia-o facilmente pela
indiferença, um quase desdém que pessoa alguma destruía porque, simplesmente,
não o detectava. Era dócil por feitio, desprendida por qualidade, simpática e
aparentemente submissa porque a ira provoca rugas e ela gostava de se apaixonar
por si. Parecia amar, desprezando. E recolhia amor por parecer que amava. Tudo
fazia ao contrário. Toda ela, falsamente, se dava, até que as pessoas,
conquistadas, se dessem. E ela pudesse manipulá-las. Submetia-se às vontades
dos outros ao ponto de deixarem de ver que essas mesmas vontades, quando
satisfeitas, já não eram delas, mas suas.
Conseguia, unicamente gostando de
si, que todos dela gostassem e poder assim odiá-los ainda mais. Era quase como
se, logo à nascença, tivesse tirado um curso de psicologia que lhe concedia o
dom de funcionar com tudo do avesso. Despercebidamente, baralhava e dava as
cartas de um jogo cujas regras só ela conhecia, ao ponto de serem seus os
trunfos de naipes que só a sua mão faziam triunfar.
As suas armas eram o seu corpo
sedutor, a sua doçura no trato, o riso fácil e o olhar mentiroso que, também
ele, fazia crer a quem consigo se cruzasse o contrário daquilo que
habitualmente sentia. Que era nada. E, com alguma modéstia, a este seu modo de
jogar com as pessoas, nem sequer apelidava de inteligente. Não. Era tão só uma
habilidade intrínseca, nata, de saber manobrá-las. E para a qual, sem sombra de
dúvidas, muito contribuíra o seu diploma de enfermeira na área da psiquiatria.
As mulheres eram as mais fáceis de
anular. Porque, habitualmente, nem necessitam de intervenção para que não se
entendam. A inveja, os ciúmes, as intrigas entre si acerca de outras obviamente
ausentes, o desdém sobre o penteado desta, que, “coitada, deve pensar que tem
vinte anos”, o corte da saia daquela, que, “desgraçada, vê-se mesmo que anda a
oferecer-se”, a “lingerie” comprada, apreciada e elogiada a outra, que,
entre-dentes, “olha-me esta putéfia, então mas comprou aquilo para mostrar a
quem? Ao marido não é, certamente”, derrotavam-nas à nascença. Quando isso não
acontecia e urgia eliminar a senhora em causa, vítima sabe-se lá se de
depressões, desilusões ou até a falta de outros “ões”, lá aparecia ela e o seu
“simposium terapêutico” que, além de soluções, lhe granjeava prestígio. Fora
assim com Maria, “tomas umas gotas disto, uns comprimidos daquilo e verás que
melhoras”. Normalmente, sendo essa a sua intenção, não melhoravam – tal como a
Maria, ficavam todas um pouco taralhoucas – mas também nunca ninguém a poderia
acusar de crime algum. Qualquer técnico de saúde sabe que o “Simpósium” existe
para se poder receitar o que, eventualmente, fará bem ao paciente. Se as
reacções não são as desejadas, paciência. Nem todos os corpos reagem do mesmo
modo àquilo que lhes dão. Não somos todos iguais, ora essa!
Era, portanto, fácil afastar do
caminho as mulheres empecilhos quando não se empecilhavam a si próprias.
Já com os homens a coisa piava
mais fino. Mais unidos, mais cúmplices, menos intriguistas, tornavam-se por
vezes mais perigosos, acima de tudo por, amiúde, serem mais papagaios e se
porem a palrar sobre o que comeram sem nada terem comido.
E ela era bela, sabia-o. Que
queriam eles de si, nesse caso? Pois, todos o mesmo. Só o modo de o conseguir
diferia, ainda que sempre com a promessa de amor a pender-lhes dos lábios, sem
nunca entenderem, coitados, que ela não amava ninguém. Assim conhecera Raimundo
que a desejava como a Jesus nas palhinhas deitado. Ela atiçava-o, espevitava-o,
punha-o louco, e quando os olhos já se lhe reviravam, a baba luzia e as mãos
lhe procuravam o corpo como ao náufrago em busca de jangada, então, só então,
ela dizia-lhe que não, que era pecado, ao que ele retorquia não fazer mal, não
se importar. “Mas não queres ser padre? Como vais tu conseguir lidar entre a
profissão de fé e a fé de que te entregue o que tanto anseias?”. E o homem
definhava, tresloucava, vivia com um pé na terra que não sentia e outro no céu
onde (ainda) não estava. Ainda hoje recordava, sorrindo, a confusão em que
andaria o pobre diabo quando se deu o desastre. Nunca lhe fora tão fácil fazer
de um homem um perfeito desastrado.
Depois veio o Joaquim. Bom, com
esse cedera. Afinal, até mesmo uma mulher que não ame ninguém tem as suas
necessidades fisiológicas. Mas aí matava não dois coelhos, como soe dizer-se,
mas três – Ah, caçadora! – com uma só cajadada. Saciava-se, saciava-o e ainda
deixava Maria a efervescer de raiva ao permitir-lhe que espreitasse pela porta
entreaberta. Como foi feliz nessa altura. O prazer na cama e o gozo atrás da
porta. Quase não precisou de agir para o aniquilar, as circunstâncias
encarregaram-se de lhe ditar o destino. Maria de um lado a azucrinar-lhe a
cabeça e o desgraçado definitivamente enfeitiçado por Lili, só poderia ter como
consequência a decisão que então tomou, ao saber que também ela tinha sido a
causa do esfrangalhamento do primeiro.
É que – é justo que se diga – as
capacidades manipuladoras de Lili não se cingiam ao corpo ou ao modo afável do
trato. Note-se aqui o uso da palavra “azucrinar”. Pois bem, era termo alheado do
dicionário de Lili. Nunca maçava fosse quem fosse, precisamente por desprezar
toda a gente. Aquelas frases sobejamente conhecidas, tipo “porque deixaste as
meias em cima da torneira da casa de banho e…pfff!, há quanto tempo andas com
elas?”, ou “já tomaste o comprimido das quatro e meia? Depois não te venhas
queixar da azia”, ou “larga lá a porcaria do futebol e chega aqui para eu te
contar o que me disse hoje a vizinha”, ou “deixa mas é as gajas do facebook e
vê se pões a mesa que isto cá em casa não há criadas”, essas frases, ou
parecidas, nunca viriam de si para moer o juízo de um homem. Porquê?
Precisamente porque não amava ninguém e lhe era indiferente tudo o que todos
fizessem. E qual o membro do chamado sexo forte que não fraqueja, não cede,
perante uma mulher plena de amor (falso!, mas isso só nós sabemos) que não lhe
frita os miolos com coisas de meias e comprimidos, vizinhas e “pores” de mesas?
Quase apetece dizer que homem que não se satisfaça com uma mulher assim, não é
homem, nem é nada.
Por essa razão, por ver nela
alguém que lhe respeitaria a liberdade mesmo depois de casado, andava agora Alberto
a dar à costa. Tipo machão, camisa aberta a mostrar o fio de ouro que a mãe lhe
dera – e assim ele não precisara de roubar – aquando da última despedida da
senhora, não parava de telefonar a convidá-la para isto e para aquilo. Fazia-se
muito romântico – uma voz melada, pausada, sussurrada, como quando se muda a
fralda borrada a bebés que berram – mas ela já percebera a confusão que ele
fazia entre Lili e “Pipi”, assediando uma para conseguir chegar à outra. Só
tinha um problema, coitado, facilmente se lhe dava a volta. Há poucos dias
telefonara-lhe para a convidar a irem ver a reposição do filme “Love Story” de
Arthur Hilley (o realizador só Lili sabia, obviamente) e ela já estava a ver o “outro
filme”: ele, no escuro do cinema, a chegar-se a ela, a dizer-lhe ao ouvido que
precisava da sua mão, que não podia com aquelas injustiças do destino, que coitadinha
da rapariga e tal com um cancro e coisa, logo agora que lhe aparecera um gajo,
e ele que até lhe vinham as lágrimas aos olhos com tamanho castigo de Deus… Sim,
seria tal e qual como pensava, ou não fosse um dos segredos do seu sucesso a
antecipação de cenas. Então sugeriu que, em vez daquela, fossem ver uma outra
reposição, “A Fúria do Dragão” com Bruce Lee. Ele aceitou enternecido,
desarmado com o gosto dela em lhe agradar e, como calculara, nada aconteceu. O
homem ficara de tal modo agarrado à pancadaria, aos músculos e aos truques
acrobáticos, remexendo-se na cadeira e pontapeando a da frente, que se
esquecera dela. Lili sabia perfeitamente que todos os homens são assim.
Ponha-se à frente dos olhos aquilo de que gostam e rapidamente se esquecem
daquilo que realmente queriam. Agora só tinha de pensar como ia “tratar-lhe da
saúde”. Tinha dinheiro, fruto de uma qualquer missão no Afeganistão ou no
Azerbaijão ou outro “ão” qualquer, cujo nome tinha tatuado no braço onde
dobrava a manga curta da camisa para que melhor se visse. Mas não havia pressa.
Mas não se pense, apesar do
insinuado no parágrafo anterior, que Lili agia assim por dinheiro. Não! Ainda
que, obviamente, se um casaco tem de ter botões, melhor será que sejam de
madrepérola que de latão ou cordel. E se o puder ganhar com esperteza, antes
isso que com trabalho. Não se transpira tanto e a recompensa é quase sempre
maior. Mas não era pelo dinheiro, não. Lili tinha sobretudo prazer em sentir-se
como uma bela flor a que toda a gente deita a mão, mas que tardia e
repentinamente a afasta, já com um dedo a menos por ser carnívora a planta.
No entanto, este mundo é um conto
a que a todo o instante se acrescenta um ponto. E Lili, como qualquer pessoa,
tem o dever de projectar o futuro. E, por isso, reflecte. Não amando ninguém e
sendo efémeros os que a amam, que lhe reservará o destino baseado num passado com
tão pouco que contar?
Sabe-se – sabem os narradores –
que desposará, não já, mas daqui a uns anos, um homem chamado J. Pinto
Fernandes. Segundo consta, alguém ligado à construção civil e familiar afastado
de um tal J. Pimenta, cujo apelido – não o apelido do fim, mas o do início (há
códigos civis que, bem pagos, fornecem apelidos onde se quiser) na primeira
inicial do nome, mais snob por diferente – cujo apelido, dizíamos, lhe abrirá
portas à velhice que merece. Fiel à sua linha de conduta, Lili não o amará. Não
porque seja feio. O seu estrabismo e os pêlos a evadirem-se pelas narinas até
lhe dão um ar engraçado. E não tem os dentes todos, mas quando ele lhe
confessar que os substituirá por uns de ouro, ela irá pensar em como partir-lhe
os restantes. Para além disso, chama-se Pinto e, os pintos, vêm a nós quando
lhes damos comida e deixam-nos em paz quando nada lhes damos. Nunca ela lhe
confessará que não o ama, mas exigirá dele o amor, quanto baste, que
obrigatoriamente ele lhe terá de dar. Só assim se consolidam os matrimónios. Assim,
ou numas idas ao dentista para que removam os dentes postos, porque mesmo de
ouro, há próteses que não encaixam bem. Cereja em cima do bolo, verá nele uma
enorme qualidade – lida em tempos idos num livro antigo – nunca encontrada em
homem algum. A de ter inteligência suficiente para reconhecer que é estúpido.
Quem sabe – desconhecemos sempre o que a idade nos reserva – se não conseguirá
amá-lo um bocadinho por isso?
João
J. A. Madeira
Excelente texto/conto, em que cada poro de cada letra, destila João Madeira em doses generosas.
ResponderEliminarEste texto/conto, oferece ainda ao leitor, um bónus… uma pérola, um precioso ensinamento que andaremos todos bem se o retivermos e guardarmos como se guarda um imenso tesouro: "... obviamente, se um casaco tem de ter botões, melhor será que sejam de madrepérola que de latão ou cordel. E se o puder ganhar com esperteza, antes isso que com trabalho. Não se transpira tanto e a recompensa é quase sempre maior."
Obrigado, Bartolomeu. Um abraço
ResponderEliminarChamava-se Lili, vestia de organdi, e fumava.
ResponderEliminarAquele abraço, boa semana
lol. Essa era Nini :) Obrigado, Pedro, um abraço também
ResponderEliminarMuito bom!
ResponderEliminarObrigado, Albino. Um abraço
ResponderEliminarUm lindo testo, gostei bastante.
ResponderEliminarVotos de ótima sexta-feira.
Abraços!