09/08/19

Variações em Quadrilha - Capítulo 5

       
           Joaquim 

Imagem de M P por Pixabay

Sempre soubera que Maria era fraca, mas que o caso do jovem padre a fosse afectar daquela maneira, jamais imaginara. Afinal, já tinham sido tantos os incautos a cair na sua excentricidade aparentemente maléfica… é certo que, possivelmente, nenhum outro chegara a saber o verdadeiro propósito do assédio de que tinha sido alvo, porque assédios verdadeiramente não eram, mas que raio, não era caso para se desesperar até à morte. E Maria, também porque é que tinha de tomar as dores do rapaz? Se o tivesse esquecido, como havia feito com os outros, não tinha sabido do acidente e consequente morte e tudo teria continuado na mesma: ela a caçar presas durante o dia, para à noite, os dois se deleitarem com os seus segredos de alcova.
Agora, da jovem fogosa e apaixonada, nada mais restava que os pequenos resquícios de beleza que ainda vislumbrava naquele corpo magro, quando às escondidas a vigiava. Sabia que ela não o queria ver mais, mas ele sentia essa necessidade, como uma obrigação. Quando a conhecera era tão jovem, tão inexperiente das coisas da vida, que só aquele palco e o xaile no gingar do microfone podiam tê-lo levado ao engano. Talvez a culpa de tudo aquilo, de toda a situação por que Maria passava agora, fosse dele. Incentivara a frieza e a ausência de carácter, que logo lhe reconhecera, em proveito próprio, sem sequer se preocupar com os danos que toda aquela clandestinidade poderia provocar numa mente de estrutura frágil.
 Por isso a ajudou, para expurgar a culpa que ainda não tinha a certeza se sentia. Procurou ajuda profissional e deixou-a continuar em sua casa. Antes não o tivesse feito!
Lili, com a sua postura arejada e jeito falsamente meigo de ser, fê-lo apaixonar-se. Em pouco tempo, absorveu toda a sua atenção e disponibilidade para se dedicar a outra pessoa. Os olhares, os toques inusitados, as palavras quase codificadas… tudo isso, Maria observava com um sofrimento profundo. Até que um dia, fingiu estar bem e foi para a casa que herdara. Sim, Joaquim tinha a certeza que Maria fingira.
Ninguém muda de um dia para o outro o que lhe foi cimentado desde a raiz. Maria até poderia iludir-se a si própria, convencer-se que era capaz de enveredar pelo caminho altruísta que planeava com extremo afinco, mas um dia viria em que a construção desmoronaria. Porque ela não era assim, ela não tinha sido feita assim. Ela tinha sido feita para ser servida e não para servir. E nesse dia, ele tinha de lá estar. Já que não tinha estado quando Maria pedira socorro, em silêncio.
Envolvera-se numa paixão maldita que o cegara por completo. Paixão essa que ainda o consumia… mas já não lhe tirava a lucidez, como acontecera até então.
Lili era o demónio em forma de mulher. Mulher sensual é verdade, mas demoníaca na mesma proporção. Enfeitiçara-o com o prazer da carne e ainda mais com o delírio da mente, nas alvoradas em que juntos ascendiam aos céus. Durante dias e principalmente noites fizera-o esquecer Maria, a sua doença e a sua necessidade de protecção. Quando por momentos a lembrava e tentava chamar a atenção de Lili para o facto de Maria se encontrar no quarto ao lado, esta logo o tranquilizava com a maior desfaçatez, dizendo que passara por lá antes de vir ao encontro dele e que a coitadinha dormia o sono dos anjos. De seguida enrolava-o em luxúria e de imediato, Joaquim entrava na rota do torpor em que vivia por aqueles dias.
Até ao momento em que, a altas horas de uma madrugada, num esgueirar de olhos se viu confrontado com a expressão desesperada de Maria, pela porta entreaberta. Olhou para Lili e viu o riso pérfido soltar-se-lhe em sonoras gargalhadas. Percebeu, naquele instante, o que Lili tinha andado a fazer: usara-o para enlouquecer Maria, pois sabia que Maria o amava. O pior é que também ele já a amava irremediavelmente a ela: Lili!
Maria ainda ficou mais uns dias em casa de Joaquim, depois de ele mandar Lili embora, mas quando saiu foi para não mais voltar.
Estranhamente, ou talvez não, Joaquim começou a preocupar-se com Maria, por entremeio aos sonhos acordados e adormecidos que tinha com Lili. E o seu tempo tornou-se algo sem nexo, que o atormentava cada vez mais. Entre as idas e vindas do hospital, vigiava Maria, mas não procurava Lili. Ainda não percebia o porquê do seu comportamento, mas naquele momento, nem o seu próprio compreendia.
No entanto, mais cedo do que previra, veio o esclarecimento. Lili esperava-o, no consultório, numa manhã ao chegar para trabalhar.
- Bom dia, meu amor!
- O que é que fazes aqui?
- Então, não gostaste da surpresa? - Lili exibia um sorriso irónico - Não tens vontade de recordar os velhos tempos? Oh, que pena… tinha umas coisinhas para te sussurrar ao ouvido.
- Lili, sai daqui!
- Já? Mas ainda não te disse o que vim cá fazer…
- Não quero saber, sai!
- Pensei que me amavas…
- O que é que isso interessa? Tu não me amaste.
- Hum, hum… aí é que tu te enganas. Interessa e muito! É aborrecido sentirmos na pele o mal que fizemos aos outros, não é?
- Mas tu enlouqueceste ou quê? Do que é que estás para aí a falar?
- Do futuro padre… Raimundo. Lembras-te?
- Esse é o padre que morreu em consequência de um atropelamento.
- Que tu e ela mataram, queres tu dizer!
- O quê? Mas onde raio foste buscar essa ideia?!
- Eu sei de tudo, Joaquim. Sei que ela, a tua amiguinha, fez com que ele se apaixonasse e os dois esfregaram-lhe na cara o gozo de que tinha sido alvo.
- Isso não faz com que tenhamos tido alguma coisa a ver com a sua morte.
- É como se o tivessem matado com as próprias mãos, não vês?
- Não, não vejo… mas o que é tu tens a ver com isso? Amava-lo?
- Amar? – Lili soltou a sonora gargalhada, aquela que ele tão bem conhecia. – Oh meu querido, amar é para os fracos.
- Então… não entendo…
- O Raimundo era de uma família riquíssima. Essa riqueza ia ser toda minha… se aquela… se tu e aquela cabra não tivessem estragado o meu plano.
- Ele era padre.
- Quase padre! Ainda não era padre, nem nunca seria. Estava quase a fazê-lo desistir da ideia, quando ela apareceu.
Joaquim, atónito com tais revelações, deixou-se cair na cadeira atrás da secretária. Mas Lili ainda não tinha terminado e aproximou-se, olhando-o no fundo dos olhos.
- É claro que já relatei os acontecimentos à polícia, numa versão cheia de pormenores bem requintados. Afinal, manipulação é rotina para mim, como tu bem sabes!
Joaquim levantou-se rapidamente da cadeira para tentar agarrar Lili, que saía apressada, com um sorriso no rosto, mas foi interrompido pela recepcionista:
- Sr. Doutor, estão ali dois agentes da polícia judiciária que querem falar consigo.
- Peça-lhes para esperarem cinco minutos e depois mande-os entrar…

Naquele dia, as primeiras páginas de todos os jornais vespertinos exibiam o mesmo título:
MÉDICO SUICIDOU-SE NA CASA DE BANHO DO HOSPITAL



                                                                                  Luísa Vaz Tavares


14 comentários:

  1. Fiuuuuu!!! Quase perdi o fôlego.
    Mas que grande "pedalada"!!!
    Fantástico!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O Joaquim andava numa montanha russa emocional... eheheh
      Obrigada!

      Eliminar
  2. Bom ritmo narrativo e construção de diálogos.

    Ideia muito original.

    Bjs

    ResponderEliminar
  3. Um conto de tirar o fôlego
    Obrigada pela carinhosa visita
    Um abraço

    ResponderEliminar
  4. Respostas
    1. O Joaquim andava mesmo numa montanha russa emocional... e suicidou-se.
      Boa quinta-feira, Pedro!

      Eliminar
  5. Ritmo narrativo interessante...

    ResponderEliminar

Esperamos que tenha apreciado a nossa escrita e que volte a visitar-nos. Deixe-nos a sua opinião. Obrigado!