11/10/19

Variações em Quadrilha - Capítulo 9


          Leonor pessoalmente.
          E outros pronomes.
@José Bessa

         TU:
     Esperava-te na sala de pilotos tricotando-te camisolas de malha enquanto fazias voltas-de-pista contemplando aquele ponto móvel sempre previsível, tocou, andou, subiu, voltou, tocou, andou, subiu, voltou, sempre à mesma altura do horizonte, a mesma sombra reflectida no solo, o ronronar monótono do motor, redondo, calmo, confiante, concorrendo com o tic-tic sistemático das agulhas compridas, que, ponto após ponto, linha após linha, avançavam, hoje o peito, amanhã a manga, depois a gola; e pensava como serías comigo na vida inteira.
Por inteiro.
       Depois regressaste sorridente de mais um voo solo no ar laminado de Janeiro e 
eu, antecipadamente doméstica, em espera mais uma tarde inteira. 
       Por inteiro.
     Tomei conhecimento que tinhas combinado estudar com a Amélia navegação em regime de voo nocturno, e desculpa não te ter avisado, esqueci-me completamente, mas tem de ser, faremos viagem para a semana que vem…
       Vem…
      De repente vejo que quem andava com a cabeça nas nuvens era eu, que, mesmo quando após o baptismo abraçaste e beijaste calorosamente a colega de curso, vi na alegria do momento a justificação para o ímpeto e a comunhão. Nada mais.
Sim… foi melhor ires…

        ELA:
        Irmã. Foi como a vi sempre para além das descobertas.
       Quando no liceu nos espiavam curiosos e admirados da intimidade constante, não disfarçávamos. Ela viveu sempre comigo, irmã colaça, os brinquedos dela foram os meus, os meus os dela, tudo-tudo mútuo.
    Defendidas pela madrinha de todas as movimentações alheias a uma família, vivemos com aulas domésticas e outras mordomias pagas pelo sr. Conde até sermos crescidas. Nunca desconfiamos se tínhamos algum grau de parentesco, nem isso tinha qualquer importância. Mais tarde, aquela era uma casa especial para duas adolescentes…
       Éramos nós.
       Temperamento impetuoso, querer imenso, hoje nisto amanhã naquilo, mais tarde sabe-se lá; dava-lhe, dá-lhe!, um poder de atracção que tem feito a vontade da sua vida.
        E da minha.
     Se ela tem pretendentes? Sim, vários, mas a sua independência leva-os a desistirem passados os primeiros dias de deslumbramento. De todos voltou para mim.
Ela era minha.
       O único caso com algum assunto foi o do Alberto, um bisonte sexual, carnal como ela, espontâneo, uma débil inteligência encoberta num semblante grave. O Alberto, dizia-vos, com que ela teve um calculado e esbraseado romance, terminou com um papelito, sem comprometer nem sofrer, libertando-o na sua intenção de casar. Conheci-o quando ela finalmente se mudou, eram vizinhos frescos, e ela não descansou enquanto não o seduziu dominando-o. Até que um dia lhe falou de mim; mudando-me o sexo!
        Vejam. Que ironia…
        Depois, voltou para mim. Voltou sempre.
        E agora, sem mais, este misterioso telegrama.

--/--

     - Querida mana.
     - Vou tornar-me monja aqui.
     - O advogado já transferiu todas as acções para a tua posse.
     Despojo-me em ti.
     - Lembras-te quando te dizia que a crença era o esteio dos fracos?
     - Não é!
     - Um beijo sempre. Amo-te.

--/--

      NÓS:
      Só com ela atingi a desejada plenitude na compreensão dos meus afectos.
    Cresceram num lugar de especulativas liberdades e sensações onde nada, ou quase nada, era constrangimento; dizia-nos o Pedro sem conhecimento de causa, mas adivinhando, quando se sentia agredido pelas nossas intimidades.
      Mas era a ele que eu amava.
   Nele via a segurança, a alegria, a força, a desenvoltura que me faltava. Um companheiro, um amigo.
       Um marido?
      Não sei o que é ser-se marido, mas era com ele que eu gostaria de passear de braço dado no jardim da cidade, de comer um gelado no bar da praia, ir de férias para um local exótico, quem sabe até, acampar.
      É isso, talvez ser-se marido seja ser compincha, como ouvi um dia dizer um cliente à Mdme. Blanche «sabe o que me falta faz na minha mulher? É que ela seja compincha.» E creio que é essa mutualidade que faz os casais felizes. A íntima cumplicidade de ser compincha.
      Não era fácil a convivência em nós, enquanto o Pedro tinha em mim a posse, talvez resultado de um reminiscente abandono inicial, era na Elvira que estava a minha identidade, quase uterina, originária numa desordem de sentimentos que implodiu a nossa amizade e demoliu planos futuros de vida conjunta.
        Percebi tardiamente que os triângulos têm demasiadas arestas.

        VÓS:
        E vós?...

        ELES:
   Quando à tardinha começam a entrar aureolados pela luz azul do candeeiro equidistante aos dois ananases que ombream coloridos a porta de duas folhas, começa o dia. Primeiro timidamente no bar, saboreando prolongadamente um cocktail, depois, já sentados nos sofás, metendo conversa, desenhando o ambiente de soirée que se quer morno, calmo e demorado.
     Vêm de todos os tipos e idades, porém, todos das classes privilegiadas que dão aos seus nascituros o fino gosto e a elegância da convivência.
    Consegue-se em pouco tempo um ambiente de aconchego familiar, não fossem as origens e pergaminhos do palacete, um boudoir em que um frou-frou de bom gosto e donaire femininos exaltam a clientela exclusiva.
    As meninas, que gastaram tarde e saber em convidativos apuros de estética escolhendo aprimoradamente os reduzidos trajes de convívio, vão chegando parecendo sempre, noite após noite, ser um fortuito encontro de gente que se gosta.
       Não raro se dança ao quente sabor do jazz inventando em cada acorde um afago, um carinho, uma atenção a que a música era alheia.
       O que os traz aqui?
       A elegância de privar nos afectos treinados para ouvir e agradar sem responder; o ido carinho maternal agora sem a ascendência da progenitura; a falta doméstica?
     Não será a aventura, senão do momento, uma vez que estão vedadas as excursões exteriores.
     Os celibatários, e os muito ocupados, talvez o preenchimento do vazio quotidiano, talvez; os maridos, quem sabe, procurem pagando o amor que lhes falta em casa, talvez. Mas porque entram sempre alegres e expectantes e saem, sempre, sorumbáticos e culpados?
        O que os faz regressar, leves e airosos, sabendo que sairão pesados e soturnos?
       (Falemos baixinho… Quando os dirijo e assisto penso no que sería um palacete para senhoras necessitadas, envergonhadas, e escondidas no desencanto do bem parecer conjugal. Como se comportariam cá? O meu mundo invertido – elas chegando, eles esperando…
        Deixem! São devaneios...)
    A Mad. Nós nunca lhe chamamos Madame, para nós foi sempre a madrinha. A madrinha teve ao longo dos anos o cuidado duma selecção esmerada e só trabalha no palacete o crème de la crème. Todas chegam sem problemas nem pressões e assim se mantêm, sendo o rendimento e estada de superior qualidade. Não é nada elegante salientar estes aspectos, que, não sendo discretos, são, porém, do foro privado.
       Mas porque vos contos isto, a vós?

       EU: Até que enfim…
       Cá estou…
     Não foi um regresso à casa de infância, nem à família que conheci. Nem as pessoas são as mesmas, não; umas foram com Deus e outras foram para longe envelhecer sozinhas.
       Tal como aconteceu com a vossa e amigos, talvez, desapareceram... Quem ficou?
     Não regressei senão à prometida posse, agora que a madrinha faltou. Quem, senão eu?
       E à segurança. Só quando somos donos estamos seguros, a fruição é passageira.
     No entanto é uma clausura, não fora o convívio da arbitragem e as viagens para os jogos estava sempre aqui onde me vedes, sozinha nos meus compromissos de gerir uma casa de mulheres achadas com homens passageiros. Vocês sabem lá…
    Uma encenação diária com actrizes habituais para espectadores assíduos. Alguns dramas. Quando me dou conta que passamos a nossa infância numa casa de ilusões perdidas e comportamentos desviantes e não ficamos afectadas…
       Bem, o meu psicólogo chamou-lhe um dia um palavrão comprido, difícil lembrar-me.
       Mas está-se bem…
       O Pedro vai assistir aos jogos. Eu vejo-o. Gola levantada, boné grande, óculos escuros, lugar remoto. Disseram-me que pergunta como estou.
       É tarde…
  Consta-me que tem filhos, mulher gorda, prestações a pagamento, emprego periclitante, uma correria, adianta-se-lhe a barriga, poucos prazeres. Diabo! Podia ter sido comigo…
       Uma família…
       Faz tempo que não sei dela. Escrevo-lhe e devolvem-me as cartas com qualquer coisa escrito. Parece que vive incomunicável e sem afectos.
       Também eu…
    Procrastinação! É isso!... O médico diz que eu me transformei numas reticências, adiando, estagnando, com medo de apegos…
       E se lhe telefonasse… Parece que se vai divorciar. Constou-se-me…

                                                                                                                                       José Bessa

3 comentários:

  1. Este é o meu sonho desde a adolescência: viajar conhecer do mundo o mais possível e por fim, recolher-me juntamente com as memórias e as experiências, a uma casa-de-passe, distinta, com classe e com "colaboradoras" formadas superiormente na ancestral mas sempre actual arte de bem se relacionar. Por certo, iria ser a minha ruína e os meus dias finariam como os de Camões. https://www.youtube.com/watch?v=eb3vEZZQO_I

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  2. Sempre tive muitos sonhos. Viajar e conhecer o Brasil, principalmente!

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