Leonor pessoalmente.
E
outros pronomes.
TU:
Esperava-te
na sala de pilotos tricotando-te camisolas de malha enquanto fazias
voltas-de-pista contemplando aquele ponto móvel sempre previsível,
tocou, andou, subiu, voltou, tocou, andou, subiu, voltou, sempre à
mesma altura do horizonte, a mesma sombra reflectida no solo, o
ronronar monótono do motor, redondo, calmo, confiante, concorrendo
com o tic-tic sistemático das agulhas compridas, que, ponto após
ponto, linha após linha, avançavam, hoje o peito, amanhã a manga,
depois a gola; e pensava como serías comigo na vida inteira.
Por
inteiro.
Depois
regressaste sorridente de mais um voo solo no ar laminado de Janeiro
e
eu, antecipadamente doméstica, em espera mais uma tarde inteira.
Por
inteiro.
Tomei
conhecimento que tinhas combinado estudar com a Amélia navegação
em regime de voo nocturno, e desculpa não te ter avisado, esqueci-me
completamente, mas tem de ser, faremos viagem para a semana que vem…
Vem…
De
repente vejo que quem andava com a cabeça nas nuvens era eu, que,
mesmo quando após o baptismo abraçaste e beijaste calorosamente a
colega de curso, vi na alegria do momento a justificação para o
ímpeto e a comunhão. Nada mais.
Sim…
foi melhor ires…
ELA:
Irmã.
Foi como a vi sempre para além das descobertas.
Quando
no liceu nos espiavam curiosos e admirados da intimidade constante,
não disfarçávamos. Ela viveu sempre comigo, irmã colaça, os
brinquedos dela foram os meus, os meus os dela, tudo-tudo mútuo.
Defendidas
pela madrinha de todas as movimentações alheias a uma família,
vivemos com aulas domésticas e outras mordomias pagas pelo sr. Conde
até sermos crescidas. Nunca desconfiamos se tínhamos algum grau de
parentesco, nem isso tinha qualquer importância. Mais tarde, aquela
era uma casa especial para duas adolescentes…
Éramos
nós.
Temperamento
impetuoso, querer imenso, hoje nisto amanhã naquilo, mais tarde
sabe-se lá; dava-lhe, dá-lhe!, um poder de atracção que tem feito
a vontade da sua vida.
E
da minha.
Se
ela tem pretendentes? Sim, vários, mas a sua independência leva-os
a desistirem passados os primeiros dias de deslumbramento. De todos
voltou para mim.
Ela
era minha.
O
único caso com algum assunto foi o do Alberto, um bisonte sexual,
carnal como ela, espontâneo, uma débil inteligência encoberta num
semblante grave. O Alberto, dizia-vos, com que ela teve um calculado
e esbraseado romance, terminou com um papelito, sem comprometer nem
sofrer, libertando-o na sua intenção de casar. Conheci-o quando ela
finalmente se mudou, eram vizinhos frescos, e ela não descansou
enquanto não o seduziu dominando-o. Até que um dia lhe falou de
mim; mudando-me o sexo!
Vejam.
Que ironia…
Depois,
voltou para mim. Voltou sempre.
E
agora, sem mais, este misterioso telegrama.
--/--
-
Querida mana.
-
Vou tornar-me monja aqui.
-
O advogado já transferiu todas as acções para a tua posse.
Despojo-me
em ti.
-
Lembras-te quando te dizia que a crença era o esteio dos fracos?
-
Não é!
-
Um beijo sempre. Amo-te.
--/--
NÓS:
Só
com ela atingi a desejada plenitude na compreensão dos meus afectos.
Cresceram
num lugar de especulativas liberdades e sensações onde nada, ou
quase nada, era constrangimento; dizia-nos o Pedro sem conhecimento
de causa, mas adivinhando, quando se sentia agredido pelas nossas
intimidades.
Mas
era a ele que eu amava.
Nele
via a segurança, a alegria, a força, a desenvoltura que me faltava.
Um companheiro, um amigo.
Um
marido?
Não
sei o que é ser-se marido, mas era com ele que eu gostaria de
passear de braço dado no jardim da cidade, de comer um gelado no bar
da praia, ir de férias para um local exótico, quem sabe até,
acampar.
É
isso, talvez ser-se marido seja ser compincha, como ouvi um dia dizer
um cliente à Mdme. Blanche «sabe o que me falta faz na minha
mulher? É que ela seja compincha.» E creio que é essa mutualidade
que faz os casais felizes. A íntima cumplicidade de ser compincha.
Não
era fácil a convivência em nós, enquanto o Pedro tinha em mim a
posse, talvez resultado de um reminiscente abandono inicial, era na
Elvira que estava a minha identidade, quase uterina, originária numa
desordem de sentimentos que implodiu a nossa amizade e demoliu planos
futuros de vida conjunta.
Percebi
tardiamente que os triângulos têm demasiadas arestas.
VÓS:
E
vós?...
ELES:
Quando
à tardinha começam a entrar aureolados pela luz azul do candeeiro
equidistante aos dois ananases que ombream coloridos a porta de duas
folhas, começa o dia. Primeiro timidamente no bar, saboreando
prolongadamente um cocktail, depois, já sentados nos sofás, metendo
conversa, desenhando o ambiente de soirée que se quer morno, calmo e
demorado.
Vêm
de todos os tipos e idades, porém, todos das classes privilegiadas
que dão aos seus nascituros o fino gosto e a elegância da
convivência.
Consegue-se
em pouco tempo um ambiente de aconchego familiar, não fossem as
origens e pergaminhos do palacete, um boudoir em que um frou-frou de
bom gosto e donaire femininos exaltam a clientela exclusiva.
As
meninas, que gastaram tarde e saber em convidativos apuros de
estética escolhendo aprimoradamente os reduzidos trajes de convívio,
vão chegando parecendo sempre, noite após noite, ser um fortuito
encontro de gente que se gosta.
Não
raro se dança ao quente sabor do jazz inventando em cada acorde um
afago, um carinho, uma atenção a que a música era alheia.
O
que os traz aqui?
A
elegância de privar nos afectos treinados para ouvir e agradar sem
responder; o ido carinho maternal agora sem a ascendência da
progenitura; a falta doméstica?
Não
será a aventura, senão do momento, uma vez que estão vedadas as
excursões exteriores.
Os
celibatários, e os muito ocupados, talvez o preenchimento do vazio
quotidiano, talvez; os maridos, quem sabe, procurem pagando o amor
que lhes falta em casa, talvez. Mas porque entram sempre alegres e
expectantes e saem, sempre, sorumbáticos e culpados?
O
que os faz regressar, leves e airosos, sabendo que sairão pesados e
soturnos?
(Falemos
baixinho… Quando os dirijo e assisto penso no que sería um
palacete para senhoras necessitadas, envergonhadas, e escondidas no
desencanto do bem parecer conjugal. Como se comportariam cá? O meu
mundo invertido – elas chegando, eles esperando…
Deixem!
São devaneios...)
A
Mad. Nós nunca lhe chamamos Madame, para nós foi sempre a madrinha.
A madrinha teve ao longo dos anos o cuidado duma selecção esmerada
e só trabalha no palacete o crème de la crème. Todas chegam sem
problemas nem pressões e assim se mantêm, sendo o rendimento e
estada de superior qualidade. Não é nada elegante salientar estes
aspectos, que, não sendo discretos, são, porém, do foro privado.
Mas
porque vos contos isto, a vós?
EU:
Até que enfim…
Cá
estou…
Não
foi um regresso à casa de infância, nem à família que conheci.
Nem as pessoas são as mesmas, não; umas foram com Deus e outras
foram para longe envelhecer sozinhas.
Tal
como aconteceu com a vossa e amigos, talvez, desapareceram... Quem
ficou?
Não
regressei senão à prometida posse, agora que a madrinha faltou.
Quem, senão eu?
E
à segurança. Só quando somos donos estamos seguros, a fruição é
passageira.
No
entanto é uma clausura, não fora o convívio da arbitragem e as
viagens para os jogos estava sempre aqui onde me vedes, sozinha nos
meus compromissos de gerir uma casa de mulheres achadas com homens
passageiros. Vocês sabem lá…
Uma
encenação diária com actrizes habituais para espectadores
assíduos. Alguns dramas. Quando me dou conta que passamos a nossa
infância numa casa de ilusões perdidas e comportamentos desviantes
e não ficamos afectadas…
Bem,
o meu psicólogo chamou-lhe um dia um palavrão comprido, difícil
lembrar-me.
Mas
está-se bem…
O
Pedro vai assistir aos jogos. Eu vejo-o. Gola levantada, boné
grande, óculos escuros, lugar remoto. Disseram-me que pergunta como
estou.
É
tarde…
Consta-me
que tem filhos, mulher gorda, prestações a pagamento, emprego
periclitante, uma correria, adianta-se-lhe a barriga, poucos
prazeres. Diabo! Podia ter sido comigo…
Uma
família…
Faz
tempo que não sei dela. Escrevo-lhe e devolvem-me as cartas com
qualquer coisa escrito. Parece que vive incomunicável e sem afectos.
Também
eu…
Procrastinação!
É isso!... O médico diz que eu me transformei numas reticências,
adiando, estagnando, com medo de apegos…
E
se lhe telefonasse… Parece que se vai divorciar. Constou-se-me…
José
Bessa
Este é o meu sonho desde a adolescência: viajar conhecer do mundo o mais possível e por fim, recolher-me juntamente com as memórias e as experiências, a uma casa-de-passe, distinta, com classe e com "colaboradoras" formadas superiormente na ancestral mas sempre actual arte de bem se relacionar. Por certo, iria ser a minha ruína e os meus dias finariam como os de Camões. https://www.youtube.com/watch?v=eb3vEZZQO_I
ResponderEliminarParabéns
ResponderEliminarRitmado, interessante, inovador
Sempre tive muitos sonhos. Viajar e conhecer o Brasil, principalmente!
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