27/09/19

Variações em Quadrilha - Capítulo 8


          Elvira

Imagem de S. Hermann & F. Richter por Pixabay

         - Passport please!
     Depois de recolher a escassa bagagem e cumprir as rigorosas e intermináveis formalidades de entrada no país, Elvira abandonou o Aeroporto Internacional de Lhasa. A esperá-la no exterior, encontrava-se o guia que iria acompanha-la durante os 8 dias que duraria a visita.
      Sem prestar grande atenção ao rapaz e ao movimento frenético que a rodeava, quase desprezando a oferta da tradicional Kha-Tag, atirou-se literalmente para o interior do táxi que os aguardava rumo à cidade, capital do Tibete.
      Depois de acomodada no banco traseiro, o guia, sentado ao lado do motorista, indicou - Shangri-La Lhasa Hotel.
       Mal acabou de se instalar no quarto que tinha reservado, Elvira deixou que o seu corpo se entregasse de forma abandonada a um longo e relaxante banho de imersão.
      Antes mesmo de desfazer por completo a sua bagagem, vestiu-se e decidiu sair para um pequeno passeio.
       De novo na rua, e acompanhada do guia que se desfazia em mesuras, dedicou-se a admirar os tradicionais edifícios, deixando-se aos poucos envolver naquela atmosfera estranha, impregnada de cores, tradições e aromas.
      Sem notar, os passos de ambos levaram-nos até junto do Palácio Potala, onde o guia, sempre excedendo-se em simpatia, a convidou a descansar um pouco enquanto esperavam pelo pôr-do-Sol, espetáculo que garantia ser único no mundo.
      Não ficou desiludida, o momento foi mágico, algo a que nunca tinha assistido e que sentiu desejo de que viesse a repetir-se todos os restantes dias da sua vida. Agradeceu ao guia e retomaram o passeio.
       Enquanto absorvia e se deixava absorver, absolutamente deslumbrada, por aquele incomensurável e grandioso espetáculo que a cercava, começou lentamente a recordar os últimos acontecimentos, e tudo o que a tinha levado a iniciar uma abrupta e radical mudança de vida.
     Na verdade, toda a sua vida, desde que se conhecia, decorrera a um ritmo alucinante. Os acontecimentos que marcaram todos os momentos importantes da sua existência revestiam-se tanto de imprevisibilidade como de inconstância, de alguma frivolidade e de completa falta de programação. O acaso e o caos regiam a sua vida desde o dia em que nasceu, moldando-lhe um caráter pragmático, desapegado das coisas mundanas, profano. O mesmo acaso e caos regeram também a sua vida sentimental e amorosa, tendente exclusivamente para a obtenção do prazer imediato, sem nunca estabelecer qualquer vínculo de afeto.
       Passou-se assim desde o fim da adolescência, quando a curiosidade a levou a descobrir o prazer, através das carícias e do contacto físico com Leonor.
        A sua “irmã de leite” herdara da mãe uma aptidão excecional para a prática de intimidades, as quais aperfeiçoava consigo própria e potenciava quando se encontrava nos braços de Elvira, levando-a a atingir o êxtase e algo mais, indefinível, indecifrável mas que não tinha o poder de a deixar confortável consigo própria.
      Com a fase da juventude chegaram os contactos masculinos, efémeros mas sempre muito intensos. Contudo, aquele desconforto parecia não querer abandona-la, por mais homens que conhecesse e fingisse amar.
      Certo dia, já adulta e na posse das propriedade que herdara, decidiu abruptamente tomar uma decisão radical: terminar de uma cutilada com a relação unicamente sexual que mantinha com Alberto, o último protagonista das suas “maratonas” sexuais e... perder-se no mundo.
     Vendera uma enorme propriedade que possuía em Nelas e com a ajuda e aconselhamento do seu gestor bancário, aplicara parte do produto da venda em ações que lhe garantiam um rendimento muito confortável e a possibilidade de concretizar um sonho antigo; viajar, conhecer países, culturas, paisagens. Era esta a sua forma de entender a liberdade e de não estar sujeita a viver num espaço único e a conhecer pessoas que esperavam dela sentimentos que não possuía.
      Talvez esta sua forma de ser estivesse relacionada com o modo como veio ao mundo e como foi criada e educada até à idade adulta. Estes pensamentos fizeram-na acordar e reavivar memórias, transportando-a a uma tenebrosa noite de trovoada em que, muito abraçada a Leonor, a sua “irmã de leite”, recebera a revelação acerca da forma como fora parar ao palacete de Mm Blanche.
        Recordava essa noite tenebrosa e as revelações que Leonor lhe fizera em modo de discurso direto, como se ainda ouvisse nitidamente o som da sua voz entre-cortado pelo ribombar do trovões. Recordava o calor aconchegante do corpo de Leonor e o sabor do entrelaçado das suas pernas nas dela. Na escuridão do quarto, quando a trovoada se afastou e terminou o relato da história que Leonor ouvira contar a sua mãe, sentiu uns lábios húmidos unirem-se voluptuosamente aos seus. Ainda trémula, esperou pelo que viria em seguida. O que veio foi estranho, foi estonteante, foi irrecusável, foi consentido e correspondido. Aquela noite, gravada na sua mente e no seu corpo a vários fogos, repetiu-se com uma frequência e uma intensidade indescritíveis. De súbito, e sem motivo estruturado, terminou de forma tão abrupta como o ribombar do primeiro trovão da primeira noite.
        Elvira fora abandonada à nascença, à porta de um prostíbulo numa fria noite de Dezembro decorria o ano 1970.
        Quem cometeu o terrível ato de abandono, premeditou que aquela seria a hora de maior afluência ao local, pelo que, provavelmente não demoraria a ser encontrada. Efetivamente, a pequena Elvira fora encontrada por um distinto senhor, que visitava regularmente a casa de Mm Blanche, no preciso momento em que as suas cordas vocais iniciaram um estrepitoso choro.
       Quando a dona do palacete - mulher garbosa já entrada na idade, mas ainda altiva, detentora de uma personalidade férrea e um auto-domínio que os anos de experiência no "ramo" lhe conferiam – abriu a porta, encontrou o seu cliente habitual segurando um cesto de verga que transportava uma ternurenta bebé.
         Deu-se um momento de estupefação e de indecisão, que fizeram Mm Blanche ficar como que pregada à soleira da porta, de olhos muito abertos, fitando ora o Sr. Conde, ora a pequena criança.
          - Então Mm Blanche, vai querer que a pobre criança enregele? Permite-nos que entremos?
     Como que acordada à força de um pesadelo, Mm Blanche afastou-se dando passagem ao Sr. Conde e à sua protegida.
         - Mas Sr. Conde, pode explicar-me o que se está a passar?
Sem prestar atenção à pergunta formulada, o Conde do Monte a Nelas passou a entrada, poisou o cestinho sobre uma poltrona e aliviou-se dos abafos que lhe mantinham o já velho corpo aquecido. Depois, pegando a pequena Elvira nos braços, chegou-a perto da luz mortiça de um aplique de parede e perguntou como que afirmando; é linda, não é?!
        Mm Blanche, ainda insegura da situação, acercou-se um pouco mais e confirmou.
        - Sim, de facto é uma linda bebé. Mas, a quem pertence, Sr. Conde?
        Lentamente o velho conde virou-se, e de olhar penetrante e arguto concluiu:
      - Esperava que fosse a senhora a esclarecer-me essa questão. Não será obra de alguma das suas “pupilas”?
      - Não estou a perceber a lógica da sua dúvida senhor conde, pelo facto de nos encontrarmos numa casa de prostituição, não quer dizer que sejamos pessoas desumanas, capazes de abandonar uma recém-nascida a um destino tão desfavorável.
      - Bom, assim sendo, crendo na veracidade das suas palavras, tenho um enorme favor a pedir-lhe.
     - Se estiver ao meu alcance, pode estar certo que atenderei ao seu pedido Sr. Conde.
       - Estará certamente, Mm Blanche. Como poderá imaginar, ficar-lhe-ia muito grato se tomasse a seu cargo a responsabilidade de criar esta menina. Estou certo que lhe saberá proporcionar o conforto e educação apropriados.
      - E, para suportar todas as despesas com a alimentação e educação da pequena, providenciarei amanhã mesmo com o meu advogado, o usufruto de uma das minhas propriedades de Nelas, que será administrado por si e passará para a posse da menina, logo que ela atinja a maioridade.
       Perplexa e sem reacção, Mm Blanche não ousa sequer contrariar a vontade do Sr. Conde. Chama imediatamente uma das meninas e ordena-lhe que recolha a bebé, lhe dê banho e procure com urgência uma ama que a amamente. Ao pegar no cestinho onde Elvira fora encontrada, Mm Blanche descobre um pequeno papel onde um nome se encontra garatujado: Elvira Clara das Neves.
      Uma hora depois, chega ao palacete de Mm Blanche, acompanhada por uma das “meninas”, uma anafada e andrajosa mulher, transportando no colo uma bebé quase a completar um ano de idade.
       Mm Blanche reconheceu-a de imediato. Tratava-se de uma antiga “funcionária” da casa que um ano antes, tinha abandonado a profissão para se juntar com o Zé-Naifas; um ladrãozeco de vielas que lhe prometera vida de princesa e lhe oferecera fome e tareia sem parar, acabando por a abandonar, prenhe e sem poiso minimamente decente onde pudesse criar o ser que lhe crescia no ventre.
     Mm Blanche recebeu-a com rispidez e clarificou logo ali, de uma penada, a situação; precisava que amamentasse Elvira. Em troca, oferecia-lhe alimentação e uma dependência no piso superior do palacete, quase nunca utilizada. Zaldemira - era o nome da ex-rameira - aceitou a oferta de imediato sem pestanejar. Quando já se encaminhava para a sua nova morada, Mm Blanche perguntou-lhe o nome da criança que trazia ao colo.
        - Chama-se Leonor… é uma menina, linda como o Sol.
        - Miss Elvira ???
       Como que acordada de um sonho pelo chamamento, Elvira abriu os olhos. O Sol tinha desaparecido por completo, restando no céu uma ténue névoa em tons vermelho-sangue.
        Levantou-se com a ajuda do seu guia e dirigiram-se de novo ao hotel.
      Nos lábios de Elvira bailava um sorriso estranhamente luminoso que não passou despercebido ao seu guia, levando-o a questiona-la se estaria tudo bem.
      Elvira alargou o sorriso e respondeu, como estando a responder a uma pergunta que carregava desde que se conhecia: Estou ótima! Há poucos dias decidi abandonar a vida que levava, as pessoas e os lugares que conhecia e… perder-me no mundo. Percebo agora que afinal buscava encontrar-me comigo própria e com o mundo. Este é o meu verdadeiro primeiro dia de vida. E abrindo os braços declarou bem alto: Acabei de nascer! Sou eu, Elvira!
        Elvira…

                                                                                                                   Bartolomeu Frederico 

5 comentários:

  1. Agradeço também a Luísa Tavares a imagem que encabeça o texto. Uma escolha muito no contexto e que só por si é mais de metade do conto. Obrigado. ;)

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  2. Formalidades em aeroportos é o que me espera a partir de amanhã.

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