07/01/22

Na Fragilidade do Barro - Capítulo 1

Luz ao Fundo do Túnel 
de 
Bartolomeu Frederico 


"Não busco a perfeição (isso não existe)... basta-me a excelência."

Quer chovesse, nevasse ou fizesse sol, não havia um dia em que António não saísse cedo de casa, montasse a sua bicicleta "pasteleira", atravessasse a aldeia e fosse pelos caminhos das matas, até entrar na velha estrada nacional. Aí chegado, pedalava durante uma hora, até chegar à vila. Parava no primeiro café e bebia um "abafadinho", em seguida pedia um bolo de arroz que embrulhava num guardanapo e colocava com todo o cuidado no bolso do casaco. Depois consultava o relógio, levantava-se, pegava de novo na "pasteleira" e subia a pé a rua íngreme em direcção ao castelo. Um pouco acima do meio da rua cortava numa estreita viela à sua mão direita e entrava a porta da 3ª casa à sua mão esquerda.

Adelaide esperava-o.

Era uma mulher quase da sua idade aparentando, porém, ser mais velha. Talvez resultado dos trabalhos excessivamente exigentes e da agressividade que a vida lhe tinha imposto. Ainda antes de a cumprimentar, perguntava: “A garota já saiu para a escola?”, ao que Adelaide abanava a cabeça afirmativamente. Ele retirava então, do bolso do casaco, com os mesmos cuidados com que o guardara, o bolo de arroz e colocava-o sobre a mesa tosca, no meio da exígua sala.

Nalguns dias, Adelaide aproximava-se dele, olhos varrendo o soalho esburacado pelos anos e o apodrecimento da madeira. Parava em frente a ele e erguia lentamente os olhos até encontrar os seus. Ficava alguns momentos em silêncio, tentando vislumbrar no fundo dos olhos dele o fogo que, até há dez anos antes, ardia por ela, pelos seus beijos, os seus abraços, o seu corpo. Por fim suspirava e sussurrava um desabafo, uma súplica, uma queixa. “Tenho tantas saudades tuas, António”. Ele, voltando lentamente o rosto na direcção da janela, olhando o nada lá fora, respondia: “Hoje, não”. Depois, sentava-se numa tosca cadeira junto da mesa, apoiava nela o braço esquerdo e dizia-lhe que não ficasse ali especada, que fosse fazer a sua vida. Então, ela voltava-se lentamente de olhos colocados no chão e, a passos lentos, regressava aos seus afazeres domésticos.

E ele ali ficava, sentado, olhando a janela e o mesmo nada para lá das vidraças. Passada uma hora, erguia-se e perguntava: “Como tem estado a garota?”. Bem, tem andado bem, respondia-lhe Adelaide. Ele resmungava qualquer interjeição e anuía com a cabeça. Antes de se dirigir à porta, sair, pegar na bicicleta e pedalar desenfreado, com raiva, só parando na aldeia, à porta da mercearia e da taberna que eram suas. Dava uma volta à chave, entrava, despia o casaco e, como sempre, ia percorrendo com um velho trapo o outrora tampo brilhante do balcão. E esperava. Os primeiros clientes ou, quantas vezes, nenhum. Então, sentava-se. Os olhos quase querendo fechar-se. Na espera do tempo que passa.

Naquele dia, ao entrar em casa de Adelaide, encontrou-a sentada num mocho, junto à pedra do lar, dobrada sobre si. Soluçava. Estremeceu, sentiu-se invadir por um medo incontrolável e, assustado, aproximou-se dela. Agachou-se, pegou-lhe nas mãos e tentou encontrar-lhe os olhos. A fala tolhida não lhe permitia formular qualquer pergunta, embora a ansiedade o impelisse a fazê-lo. Aos poucos, Adelaide foi erguendo o rosto. Quando os seus olhos se encontraram, ele estremeceu, sentiu que estava a ver aqueles olhos pela primeira vez. Embora os notasse húmidos, sentiu neles uma felicidade infinita. Continuaram mudos, só a olharem-se e a descobrir-se através do olhar. Por fim, num soluço profundo, quase numa súplica, Adelaide deu-lhe a notícia que lhe incendiou o coração.

“A nossa menina ficou bem no exame da quarta classe!”

Primeiro sentiu uma tontura, pareceu-lhe que toda a pequeníssima casa rodava consigo. Levantou o rosto, sorveu o ar impregnado pelo aroma do café que fervilhava no lume, apertou as mãos de Adelaide e ergueu-a consigo estreitando-a contra si. Num impulso, beijou-lhe os lábios habitualmente pálidos, mas subitamente rubros, e deliciou-se com aquele sabor que julgava já esquecido. Por fim, como criança obediente ao mestre-escola, repetiu com alegria crescente: “A nossa menina ficou bem no exame! A nossa menina ficou bem no exame!” O rosto de Adelaide iluminou-se, o seu corpo ganhou ânimo e então, abraçou-o com toda a força dos seus braços e do seu corpo, beijando-o e chorando de alegria.

Sem descolarem os lábios, António pegou-lhe ao colo. Lentamente levou-a até ao quarto, mais pequeno que a sala, sentou-a na cama e sentou-se a seu lado. Pegou-lhe nas mãos, beijou-as e repetiu a meia voz “A nossa menina ficou bem no exame da 4ª classe!”. Adelaide retirou-lhe então, carinhosamente, o casaco, fê-lo deitar-se e, levemente sorrindo, enroscou todo o seu corpo no corpo dele. Fizeram amor, um amor especial, cósmico, um amor que os complementava e completava no tempo que corria e lhes trazia agora, vindas da rua, as vozes de duas crianças. Num pulo, ergueram-se e vestiram-se, Adelaide correu para a porta, António logo atrás ainda a tempo de ver a sua menina chegar, acompanhada por outra menina que a ajudava a equilibrar sobre as pedras irregulares da calçada as duas toscas muletas em que se amparava. E que agora pareciam insuficientes para evitar uma queda iminente.

António correu para a rua e, em três passos, alcançou a filha, pegou-lhe ao colo, beijou-a com o maior carinho do mundo, fez uma festa na cabeça da outra menina e regressou rapidamente a casa, perante a perplexidade de Adelaide que, tão surpreendida como a filha, viu esta agarrar-se ao pescoço dele e beijá-lo como a um pai. Sem saber que, na realidade, era ele o pai que até àquele dia nunca conhecera.

«O mesmo homem que chora por medo, por vezes também chora de emoção»

 

                                                                                                       Bartolomeu Frederico 

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