14/01/22

Na Fragilidade do Barro - Capítulo 2

 


Ich bin ein berliner

- Doutora não tem mais doentes.

Manuela levantou a cabeça ligeiramente e apenas acenou à enfermeira. Hoje estava particularmente cansada, ansiosa por regressar ao seu refúgio no extremo da aldeia.

Saiu rapidamente do pequeno consultório, mas a caminho da porta voltou atrás. Ficou por momentos a olhar para o envelope em cima da secretária e meteu-o na mala. Sabia os resultados e sabia que neste caso não podia adiar, um dia que fosse, a revelação do que continha.

Já procrastinara demasiado durante a vida, mas em questões profissionais e que diziam respeito à saúde e à vida de uma criança não podia perder tempo.

Dirigiu-se ao carro e mais uma vez as memórias a assaltaram. Estavam longe os tempos em que se sentava confortavelmente num carro grande e percorria as principais cidades. Aliás, tudo isso pertencia a uma outra vida que resolvera abandonar.

Manuela era uma mulher fogosa e curvilínea dotada de uma pele morena e estonteantes olhos verdes. Durante muito tempo detestara o seu tom de pele, salgada por muitos passeios marítimos.

A sogra era uma mulher que apesar da idade tinha uma imaculada pele de porcelana, conjugada com aquele cabelo de um prateado radiante que atravessava os olhos de quem se atrevia a confrontá-la.  Tinha uma figura imponente com que tentava dobrar os outros. A toda a hora insistia para que Manuela perdesse o ar meio selvagem até que um dia trocaram rudes palavras. Enquanto tentava explicar que a sua natureza era aquela, a sogra respondera-lhe em tom perentório com um seco e sonoro: “Ich bin ein berliner”.

O primeiro impacto fora de estupefação, mas cedo se habituou àquele garrote que cada vez mais a estrangulava.

Em parte, sentia-se culpada de tudo o que tinha acontecido. Tinha sido demasiado ingénua, sensível, sonhadora ao ponto de acreditar em fantasias que dificilmente se realizariam. Pagara por isso antes de conseguir forças para seguir em frente.

O anterior carro era também isso, um produto de uma vida anterior e nada tinha a ver com ela. Por isso aquele para onde agora se dirigia condizia muito mais com a sua parte indomável e fazia bem todos os trilhos necessários.

Atravessou rapidamente a vila. Os pensamentos tinham-na levado longe, muito mais do que precisava, mas o passado era uma segunda pele da qual não se conseguia desfazer.

Parou numa aldeia próxima com o intuito de comprar o pão que a Alzira tão bem fazia. Nada melhor para driblar as mágoas que um bom chá e uma fatia do cheiroso pão com a manteiga maravilhosa de um dos vizinhos.

Antes de sair do carro ficou a olhar para uma figura familiar que conhecia da vila. O António saía de uma casa e abraçava um petiz de uns quatro anos que recebia das suas mãos um pequeno saco de rebuçados.

Achou aquilo curioso porque há duas semanas o vira fazer algo semelhante numa aldeia a treze quilómetros dali.

Nessa altura, pegara ao colo uma criança talvez com dois anos e pusera-lhe um laço no cabelo.

Enquanto dirigia ia matutando em muitas coisas de um modo muito seu e de que nunca se desfizera. Seria mais fácil parar os pensamentos, deslizar para um momento relaxante, embrenhar a mente num nevoeiro breve, mas que trouxesse paz. No entanto, para além de ser uma mulher de ciência, era também uma sonhadora profunda. Difícil, portanto, conseguir um momento, por breve que fosse, em que as memórias não a assolassem, ou as mais diferentes teorias não desafiassem o seu cérebro.

Por exemplo aquelas coincidências do António, que seriam com certeza perfeitamente normais, tinham-na deixado desconfiada, não sabia bem do quê, nem porquê.

Poderia pensar-se que numa vila pequena e com muitas aldeias em redor, tudo se saberia. Mas Manuela sabia que naquele caso não era assim. As pessoas viviam um bocado isoladas e apesar de serem uns para os outros em caso de necessidade, curiosamente entravam em casa e morriam para o mundo.

Finalmente chegou ao seu pequeno paraíso. Entrou, atirou os sapatos pelo ar e aterrou no sofá preparada para o enorme abraço de Átila. O enorme cão de raça samoieda era agora a sua família e apesar do nome, tinha a doçura de um cachorrinho. Não havia maior prazer do que trocar carícias com aquele que lhe mostrava incondicionalmente o seu afeto.

Curiosamente o cão tinha sido oferecido pelo marido. Todos os bens materiais tinham ficado para trás, bem como as traições, a tortura psicológica e tudo o mais que evitava recordar, mas que muitas vezes aflorava aqui e ali. Anos que a tinham derrubado, mas que ao mesmo tempo a tinham fortalecido. Pior do que tudo, tinham sido todos os obstáculos que criara à sua carreira de médica, usando todos os subterfúgios e palavras grosseiras e rancorosas, ditas num português arranhado, fruto da sua origem alemã, como se o uso da língua dela fosse mais humilhante e arrasador. No fim, depois de tudo o que ela pedia, nem um pedido de desculpas, apenas a frase lapidar da mãe. “Ich bin ein berliner”. De cada vez que a frase lhe era gritada, Manuela cerrava os ouvidos e mentalmente apenas ouvia o célebre discurso de Kennedy, bem longe da patética afirmação do marido, que estava apenas eivada de um orgulho machista e militarista.

Afastou o passado com um movimento da longa cabeleira castanha com reflexos vagamente acobreados e antes que o sol se pusesse, resolveu rumar ao pequeno riacho no meio de um verde estonteante.

Fora um golpe de sorte que lhe ditara a vida de agora. Uma tia afastada que mal conhecera, morrera sem mais descendentes do que ela. Ao princípio nem acreditara! Tinha sido assim que conseguira deixar tudo e mudar de vida. No início estava à espera de um casebre ou pouco mais. Ficou espantada quando se deparou com uma vivenda muito bem conservada num local maravilhoso e que lhe despertava todos os sentidos. Brincou de decoradora a pôr a casa a seu jeito, de jardineira a arranjar o jardim e quase todos os dias ia ao regato molhar os pés e rebolar na erva de onde colhia azedas para chupar.

Da primeira vez que o fizera, rira descontroladamente, dançara num frenesim e gritara a plenos pulmões: “Ich bin ein berliner, ich bin ein berliner” mas desta vez com todo o sentido e sentimento que o presidente americano lhe dera. Agora sim, a frase fazia sentido para ela que deste modo exorcizara a antiga vida.

Cedo arranjou colocação na vila porque infelizmente ali não abundavam médicos e era feliz num local onde precisavam dela.

Amanhã passaria pela casa da Adelaide para a convencer a levar a Clarinha ao seu consultório.

Era uma menina tão inteligente e curiosa, sempre pronta a aprender, a brincar e a aproveitar a vida. Esta já lhe tinha sido madrasta por mais do que uma vez, mas ela continuava cheia de alegria e deixava-lhe muitas vezes no consultório, uns magníficos desenhos que prometiam uma artista.

Adelaide com aquele seu ar acabrunhado, que parecia esconder mil segredos e frustrações, tinha por ela um imenso amor. E tudo isso se notava no orgulho e encantamento que tinha pela filha.

Uma sensação terrível no estômago fê-la regressar a casa. Mergulhou nos olhos ternurentos do cão como se ele tivesse o remédio para todas as coisas. Clarinha ia por vezes a sua casa e brincava com Átila. Este era de uma enorme delicadeza com a criança, apercebendo-se, talvez, das suas fragilidades.

Nesta altura já nem se lembrava do episódio do António, que tanto a intrigara.

Algo mais assustador varrera o seu espírito detectivesco e obrigava-a a enfrentar outra questão.

Da mesinha, rodeado de livros e perto da chávena de chá, o envelope olhava-a desafiador. Pegou nele e pensou: Amanhã, sim amanhã, veria a Adelaide e a Clarinha.

Apertou o envelope contra o peito e uma lágrima rolou.

 

Margarida Piloto Garcia

3 comentários:

  1. Muito bom! Mistério do início até ao ponto final. Este mistério vai ser uma excelente inspiração para a continuação do conto. Parabéns! "Ich bin ein guter schriftsteller" ;)

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