Ich bin ein berliner
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Doutora não tem mais doentes.
Manuela
levantou a cabeça ligeiramente e apenas acenou à enfermeira. Hoje estava
particularmente cansada, ansiosa por regressar ao seu refúgio no extremo da
aldeia.
Saiu
rapidamente do pequeno consultório, mas a caminho da porta voltou atrás. Ficou
por momentos a olhar para o envelope em cima da secretária e meteu-o na mala.
Sabia os resultados e sabia que neste caso não podia adiar, um dia que fosse, a
revelação do que continha.
Já
procrastinara demasiado durante a vida, mas em questões profissionais e que
diziam respeito à saúde e à vida de uma criança não podia perder tempo.
Dirigiu-se
ao carro e mais uma vez as memórias a assaltaram. Estavam longe os tempos em
que se sentava confortavelmente num carro grande e percorria as principais
cidades. Aliás, tudo isso pertencia a uma outra vida que resolvera abandonar.
Manuela
era uma mulher fogosa e curvilínea dotada de uma pele morena e estonteantes
olhos verdes. Durante muito tempo detestara o seu tom de pele, salgada por
muitos passeios marítimos.
A
sogra era uma mulher que apesar da idade tinha uma imaculada pele de porcelana,
conjugada com aquele cabelo de um prateado radiante que atravessava os olhos de
quem se atrevia a confrontá-la. Tinha
uma figura imponente com que tentava dobrar os outros. A toda a hora insistia
para que Manuela perdesse o ar meio selvagem até que um dia trocaram rudes
palavras. Enquanto tentava explicar que a sua natureza era aquela, a sogra
respondera-lhe em tom perentório com um seco e sonoro: “Ich bin ein
berliner”.
O
primeiro impacto fora de estupefação, mas cedo se habituou àquele garrote que
cada vez mais a estrangulava.
Em
parte, sentia-se culpada de tudo o que tinha acontecido. Tinha sido demasiado
ingénua, sensível, sonhadora ao ponto de acreditar em fantasias que dificilmente
se realizariam. Pagara por isso antes de conseguir forças para seguir em
frente.
O
anterior carro era também isso, um produto de uma vida anterior e nada tinha a
ver com ela. Por isso aquele para onde agora se dirigia condizia muito mais com
a sua parte indomável e fazia bem todos os trilhos necessários.
Atravessou
rapidamente a vila. Os pensamentos tinham-na levado longe, muito mais do que
precisava, mas o passado era uma segunda pele da qual não se conseguia
desfazer.
Parou
numa aldeia próxima com o intuito de comprar o pão que a Alzira tão bem fazia.
Nada melhor para driblar as mágoas que um bom chá e uma fatia do cheiroso pão
com a manteiga maravilhosa de um dos vizinhos.
Antes
de sair do carro ficou a olhar para uma figura familiar que conhecia da vila. O
António saía de uma casa e abraçava um petiz de uns quatro anos que recebia das
suas mãos um pequeno saco de rebuçados.
Achou
aquilo curioso porque há duas semanas o vira fazer algo semelhante numa aldeia
a treze quilómetros dali.
Nessa
altura, pegara ao colo uma criança talvez com dois anos e pusera-lhe um laço no
cabelo.
Enquanto
dirigia ia matutando em muitas coisas de um modo muito seu e de que nunca se
desfizera. Seria mais fácil parar os pensamentos, deslizar para um momento
relaxante, embrenhar a mente num nevoeiro breve, mas que trouxesse paz. No
entanto, para além de ser uma mulher de ciência, era também uma sonhadora
profunda. Difícil, portanto, conseguir um momento, por breve que fosse, em que
as memórias não a assolassem, ou as mais diferentes teorias não desafiassem o
seu cérebro.
Por
exemplo aquelas coincidências do António, que seriam com certeza perfeitamente
normais, tinham-na deixado desconfiada, não sabia bem do quê, nem porquê.
Poderia
pensar-se que numa vila pequena e com muitas aldeias em redor, tudo se saberia.
Mas Manuela sabia que naquele caso não era assim. As pessoas viviam um bocado
isoladas e apesar de serem uns para os outros em caso de necessidade,
curiosamente entravam em casa e morriam para o mundo.
Finalmente
chegou ao seu pequeno paraíso. Entrou, atirou os sapatos pelo ar e aterrou no
sofá preparada para o enorme abraço de Átila. O enorme cão de raça samoieda era
agora a sua família e apesar do nome, tinha a doçura de um cachorrinho. Não
havia maior prazer do que trocar carícias com aquele que lhe mostrava
incondicionalmente o seu afeto.
Curiosamente
o cão tinha sido oferecido pelo marido. Todos os bens materiais tinham ficado
para trás, bem como as traições, a tortura psicológica e tudo o mais que
evitava recordar, mas que muitas vezes aflorava aqui e ali. Anos que a tinham derrubado,
mas que ao mesmo tempo a tinham fortalecido. Pior do que tudo, tinham sido
todos os obstáculos que criara à sua carreira de médica, usando todos os
subterfúgios e palavras grosseiras e rancorosas, ditas num português arranhado,
fruto da sua origem alemã, como se o uso da língua dela fosse mais humilhante e
arrasador. No fim, depois de tudo o que ela pedia, nem um pedido de desculpas,
apenas a frase lapidar da mãe. “Ich bin ein berliner”.
De cada vez que a frase lhe era gritada, Manuela cerrava os ouvidos e
mentalmente apenas ouvia o célebre discurso de Kennedy, bem longe da patética
afirmação do marido, que estava apenas eivada de um orgulho machista e
militarista.
Afastou
o passado com um movimento da longa cabeleira castanha com reflexos vagamente
acobreados e antes que o sol se pusesse, resolveu rumar ao pequeno riacho no
meio de um verde estonteante.
Fora
um golpe de sorte que lhe ditara a vida de agora. Uma tia afastada que mal
conhecera, morrera sem mais descendentes do que ela. Ao princípio nem
acreditara! Tinha sido assim que conseguira deixar tudo e mudar de vida. No
início estava à espera de um casebre ou pouco mais. Ficou espantada quando se
deparou com uma vivenda muito bem conservada num local maravilhoso e que lhe
despertava todos os sentidos. Brincou de decoradora a pôr a casa a seu jeito,
de jardineira a arranjar o jardim e quase todos os dias ia ao regato molhar os
pés e rebolar na erva de onde colhia azedas para chupar.
Da
primeira vez que o fizera, rira descontroladamente, dançara num frenesim e
gritara a plenos pulmões: “Ich bin ein berliner, ich bin ein berliner”
mas desta vez com todo o sentido e sentimento que o presidente americano lhe
dera. Agora sim, a frase fazia sentido para ela que deste modo exorcizara a
antiga vida.
Cedo
arranjou colocação na vila porque infelizmente ali não abundavam médicos e era
feliz num local onde precisavam dela.
Amanhã
passaria pela casa da Adelaide para a convencer a levar a Clarinha ao seu
consultório.
Era
uma menina tão inteligente e curiosa, sempre pronta a aprender, a brincar e a
aproveitar a vida. Esta já lhe tinha sido madrasta por mais do que uma vez, mas
ela continuava cheia de alegria e deixava-lhe muitas vezes no consultório, uns
magníficos desenhos que prometiam uma artista.
Adelaide
com aquele seu ar acabrunhado, que parecia esconder mil segredos e frustrações,
tinha por ela um imenso amor. E tudo isso se notava no orgulho e encantamento
que tinha pela filha.
Uma
sensação terrível no estômago fê-la regressar a casa. Mergulhou nos olhos
ternurentos do cão como se ele tivesse o remédio para todas as coisas. Clarinha
ia por vezes a sua casa e brincava com Átila. Este era de uma enorme delicadeza
com a criança, apercebendo-se, talvez, das suas fragilidades.
Nesta
altura já nem se lembrava do episódio do António, que tanto a intrigara.
Algo
mais assustador varrera o seu espírito detectivesco e obrigava-a a enfrentar
outra questão.
Da
mesinha, rodeado de livros e perto da chávena de chá, o envelope olhava-a
desafiador. Pegou nele e pensou: Amanhã, sim amanhã, veria a Adelaide e a
Clarinha.
Apertou
o envelope contra o peito e uma lágrima rolou.
Margarida Piloto Garcia
Muito bom! Mistério do início até ao ponto final. Este mistério vai ser uma excelente inspiração para a continuação do conto. Parabéns! "Ich bin ein guter schriftsteller" ;)
ResponderEliminarContinuo a acompanhar.
ResponderEliminarBoa semana
Muito boa e misteriosa narrativa!
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