19/05/22

Na Fragilidade do Barro - Capítulo 15 - Final

 

Fotografia: Estela Fonseca 

Não se fez muito pela morte de António, súbita, mas explicável. Imperdoável para quem ousava desafiar os meandros de um regime político podre. António era raia miúda, mas também era a raia miúda a cair primeiro, até para dar o exemplo e talvez assim, travar os ímpetos de um novo ideal político, neste país à beira mar plantado e de costumes hipocritamente brandos. António não se levantou mais depois daquela pancada seca e decisiva. O mensageiro deixou cair por terra as mensagens do partido, que em surdina levantava vozes, que mais tarde se ouviriam alto, sem medo, sem amarras e sem mordaças. Mas isso foi depois. Naquela altura, António foi mais um número silencioso e só as suas mulheres devotas é que choraram a sua morte. Clara pensava exatamente no seu pai, quando ouvia na rádio a voz inconfundível do Paulo de Carvalho. Faltava pouco para as onze da noite, daquele dia de 24 de abril de 1974. Clara chegou a casa completamente esgotada depois de um dia intenso no escritório de advogados, onde tinha começado a trabalhar, um mês depois de finalmente ter terminado o seu curso de Direito. Não tinha ainda escolhido ainda a área em que se iria especializar. Talvez Direito da Família ou Direito do Trabalho. Talvez pudesse ser interventiva e ajudar as mulheres que se viam a braços com filhos de pais sem nome ou talvez pudesse lutar pelo direito ao trabalho das mulheres sem amarras e sem dogmas. A sua amiga Valentina, não compreendia por que razão teve que pedir autorização para casar com o Rodrigues. Era enfermeira no Hospital de Santa Maria, quando conheceu o Rodrigues, mas pelos vistos as senhoras enfermeiras, tinham que dedicar a alma e o corpo, estritamente à paixão pela profissão. A paixão da cama não lhes era permitido legalmente ou o afeto do colo e do talvez «instinto» maternal também não, a não ser com prévia autorização do Estado. Mas voltando àquela hora daquela noite, também Clara queria saber quem era, o que fazia ali. Tinha dito adeus à aldeia, ao limoeiro, ao amor morno do primeiro amor. Queria muito mais do que a sua mãe, doméstica, sofrida e sofrível enquanto mulher. E do pai, ficou apenas a memória freudiana de um pai ausente. Suspirou com uma lentidão preguiçosa. Desligou a rádio. Despiu o saia-casaco tradicional, uma imitação Chanel, azul marinho, que tinha comprado com o seu primeiro ordenado. Deixou correr as gotas intermitentes do chuveiro, pelo seu corpo já não virgem ao toque. Dormiu profundamente essa noite e foi com espanto e incrédula que percebeu, viu e sentiu a revolução drástica que tinha acontecido durante a madrugada. Chegou ao escritório por ali perto do Chiado, espantada com os gritos, as canções proibidas, mas também com o castanho e verde dos soldados que impunham ainda as armas, caladas com cravos vermelhos. No escritório restava apenas o Sr. doutor, Mascarenhas Vaz, assustado e cinzento, por detrás dos seus óculos tartaruga. Aliás, apenas assustado, porque cinzento e antipático sempre tinha sido.

 - Vou fechar o escritório, menina Clara. Isto está muito perigoso. Dizem que já se ouviu tiros, ali para o Carmo. O Sr. doutor Pimenta e Castro já está a caminho da sua quinta no Douro com a sua família. Vá para casa, menina Clara. Se é perigoso para nós homens, imagine para uma senhorita como a menina.

Clara não tinha ainda direito a ser tratada por senhora doutora! Clara saiu. Pegou nos documentos do processo desenxabido que lhe deram para tratar, e saiu. Mas não foi para casa! Não foi fácil chegar ao Bairro Alto. A multidão fechava ruas e ruelas. Imponham-se as vozes de revolta silenciada por 47 anos, impunha-se finalmente a liberdade, impunha-se a vingança por todos os Antónios amordaçados pela morte. Subiu a custo a calçada íngreme, natural nela, pois aquele seu problema físico não a tinha deixado. Estava longe da sentença inicial dada pelos médicos, contudo permanecia em resquício.

Manuel abriu a porta do quarto com um sorriso que Clara ainda não tinha visto. Manuel! O futuro médico, rapaz que veio da província para concluir o seu sonho de curar as enfermidades dos outros. Vivia num quarto alugado, com cheiro a mofo, o único que encontrou que não iria sobrecarregar o orçamento dos seus pais. Clara chegou ofegante.

- Já sabes o que aconteceu? Livres? Finalmente livres? Porque não é só em Lisboa. No Porto, em Coimbra e…

Mas Manuel não a deixou falar mais. Esmagou-lhe a boca com o seu sorriso. Os papéis na pasta de cartolina parda, espalharam-se no chão. O processo aborrecido do escritório deu lugar à cama, à desarrumação das roupas despidas e dos corpos escandalosamente possuídos entre os lençóis puídos. Clara e não Clarinha! Manuel subiu-lhe a combinação de renda, que pudicamente cobria a nudez do corpo sem vergonha. Clara entrelaçou as pernas em torno do tronco de Manuel e deixou-se possuir livre. Finalmente livre. Um turbilhão de sensações em todos os poros. O vermelho dos cravos, o moreno de Grândola, o ficarem sós. Não era Manuel que a desfolhava. Clara era a mulher que libertava todas as mulheres submissas que tinham feito parte da sua vida, as suas mães, as mães dos seus irmãos que desconhecia, as mães que iam descobrir, por causa daquele 25 de abril o que é ser Mulher antes e categoricamente de qualquer rótulo, sem qualquer imposição.

 

Passaram-se uns 15 anos depois daquele dia. A liberdade ali estava. Clara é mãe. Advogada. O casamento com Manuel tinha sido um mero contrato de trabalho não remunerado que ela não podia admitir. Compatibilizava na perfeição a mulher profissional, com a mulher mãe e a mulher política, mas não a mulher domesticada pelo sexo masculino.  1989. Quinze anos depois, em Portugal foi pela segunda vez revista a Constituição. O partido de Clara tinha sido vencedor. O socialismo imperava. A leste, finalmente a liberdade chegaria também. Novembro seria a primavera de Berlim.

Clara mantinha a esperança de que a utopia de um mundo livre se desse aos quatro ventos.

Talvez não seja assim! Questiona-se que socialismo temos hoje, questiona-se que democracia queremos. A guerra voltou à nossa realidade quotidiana. Os extremismos adensam-se. A utopia deixou de o ser.

Afinal de que liberdade falamos nós? Mas isso será para contar depois de se acrescentar mais um conto a um ponto final sem parágrafo.

 

            Estela Fonseca

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