20/06/22

O Alípio Morreu - Capítulo 1

 

Fotografia: Tixa Falchetto

O Alípio... morreu???

Como?? Assim que soube da notícia, corri à sua casa para certificar-me dessa tragédia.

Ao lá chegar, vi umas pessoas que nunca encontrei nas vezes em que estive com ele. Pareciam todos tão estarrecidos quanto eu.

Ah, Alípio, o que te foi acontecer, meu querido amigo? Que notícia devastadora!

E logo hoje, véspera do meu aniversário, vêm-me com esta notícia... quanta tristeza! Tínhamos tantas coisas ainda a nos dizer, Alípio! Tantos planos, tantos sonhos, tantas conversas regadas a bom vinho, que agora, não mais acontecerão.

Lembras-te Alípio, da nossa última conversa? Estávamos na tasquinha do José Carlos, a falar sobre o livro que pensávamos começar a escrever…

Desde meninos, sempre ficámos horas a contar histórias um ao outro, e as nossas conversas eram tão agradáveis, que esqueciamo-nos da hora e os nossos pais ralhavam conosco para que entrássemos, já passada a hora da ceia.

Éramos tão felizes quando crianças... mas tu nunca me viste como mulher, Alípio. Sempre a tratar-me como uma irmãzinha que eu não queria ser! Quantas vezes quis sacudir-te, bater-te, gritar contigo, dizer que sou uma mulher e não tua irmã!!

Quantas vezes perfumei-me e vesti-me para te encantar, e tu nem sequer olhavas para mim. Todos os poemas de amor que escrevi, e que tu gostavas, mas rias-te, a perguntar quem era esse meu amor secreto. Nunca me viste, Alípio. Quanta gana me dava quando rias dos meus escritos! Por dentro, eu gritava: “És tu, tonto!!” Mas nunca tive coragem de falar contigo às claras... porque nunca vi de ti um olhar que fosse a incentivar-me. Tu nunca olhaste para os meus olhos, Alípio! Nunca!!  

E agora, quando finalmente te estavas a chegar mais para mim, aparece aquela rapariga a fazer-se para ti! Aquela sujeita!! A mesma que anos atrás deixou-te a trocar os pés pelas mãos, às vésperas do teu casamento.

Já não foi fácil aceitar que te ias casar com outra, foi horrível ter sido convidada para madrinha do teu casamento, mas lá fui eu, com minha máscara de impassividade e falsa alegria, fazer as vezes de tua madrinha.

Agora que não me podes ouvir, ou talvez possas, ninguém sabe o que se passa quando morremos... agora te posso dizer, Alípio, posso gritar: Era eu que deveria sair daquela Igreja casada contigo, Alípio, e nunca te perdoei por isso! Mas, não sei se por culpa do destino, o teu casamento pouco durou. A tua mulher faleceu pouco depois, nem sequer filhos tiveram. E tu nunca mais te casaste. E nunca eras visto com outras mulheres. Mesmo os nossos encontros, não eram em lugares muito frequentados. Poucas vezes vinhas à minha casa. Mas quando vinhas, sentias-te livre e em paz, eu sei. Eu conheço-te como ninguém, Alípio! Viveste sempre esquivo, poucos amigos tiveste. Amigos de verdade, daqueles com os quais podemos contar nos maus momentos. Todos gostavam de ti, todos os que te conheciam, mas não deixavas que se aproximassem demais. Vivias para as letras e para ajudar pessoas que não conhecias. Por isso eras muito querido. Mesmo a mim, que fui tua amiga desde a infância, impunhas uma barreira impenetrável, cuja explicação não consigo atinar. Mas eu conheço-te, Alípio. Sei que tinhas medo de apegar-te a alguém e correres o risco de mais uma perda. Perdeste o teu pai ainda miúdo, aos cinco anos. Depois a tua mãe, às vesperas de fazeres dezanove anos. Nem consigo perceber como foi que te decidiste casar com a Almerinda, que Deus a tenha. Mas sei que tinhas em mim uma amiga, que gostavas de passar momentos comigo, à volta dos livros, a fazer planos e imaginar novos livros.

Ah, Alípio, não sei se te perdoo por teres morrido à véspera dos meus anos! Não tinhas esse direito!! Isso não se faz!!

Quantas vezes te quis esganar por não perceberes que podias ser feliz ao meu lado!! Quantas vezes senti mesmo ódio quando dizias que vinhas visitar-me e acabavas por esquecer-te! E quantas vezes fiquei à espreita à porta da tua casa, às escondidas, a ver se entrava alguma rapariga contigo, ou se saía... nunca vi nenhuma, mas se visse, nem sequer sei o que fazia!

Devo confessar-te Alípio... muitas vezes tive ganas de acabar contigo! Como é possível um homem tão letrado, tão afeito à leitura de grandes romances, não ter percebido que o amor estava ao teu lado?

Ainda esta semana perguntaste-me por que nunca me casei. Estive a um passo de responder-te “Porque nunca me pediste!” Mas não tive coragem... E tu foste sempre cego! Estava a pensar em dizer-to no próximo encontro, mas vi-te a conversar com aquela malfadada sujeita outra vez em frente ao teu escritório.

Alípio. Vou-te ser franca, muito franca!! Se não tivesses morrido, matava-te eu!

 

     Tixa Falchetto

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