08/07/22

O Alípio Morreu - Capítulo 3

Fotografia: Horst Neumann

“Acarinhado homem de letras e venerado filantropo” - verdade seja dita: era um excelente escritor. E também cooperava com instituições sociais. Mas não por ser alma generosa, como todos pensam. Apenas para construir uma imagem que nada tinha a ver com a realidade. O Alípio precisava de elogios como de pão para a boca. E, não lhe chegando os provocados pela sua escrita, procurava igualmente aplausos exercendo a caridade.

Bem, é verdade, caro Alípio, que ajudaste muita gente. Mas, quanto ao teu verdadeiro carácter, estamos conversados!

Tivemos um namorico nos tempos do liceu. Durou pouco. O assunto preferido de conversa do Alípio era ele próprio. Nunca queria saber o que eu pensava, o que fazia, opiniões, preferências, nada. Era só ele: como era bom aluno, como escrevia bem, que planos tinha para o futuro. Dava-me os seus contos a ler. Elogiava-o e ele inchava como um pavão. No início, achava-lhe piada. Até ao dia em que timidamente lhe disse que também escrevia umas coisas, mas, por receio, ainda não tinha dado a ninguém para ler. Não queria ele fazê-lo? Gostaria tanto de saber a sua opinião…

Nunca mais esqueci o desprezo com que me mirou, as palavras de troça escritas nos olhos: “mas quem te julgas tu?”. Calei-me e nunca mais falámos nisso. Mas, a partir desse dia, tudo se modificou. A graça que eu achava aos seus monólogos transformou-se num imenso fastio. E, quando notei que a minha paixoneta tomava contornos de ódio, acabei com tudo, antes que o esganasse.

O Alípio nunca me perdoou. Não por eu lhe ter partido o coração, ele nunca conseguiu amar ninguém. Mas por ter tido a ousadia de o rejeitar. Transformou a minha vida num inferno, nesses dois últimos anos de liceu. Intrigava contra mim. Às raparigas, dizia para terem cuidado, que eu apenas lhes queria roubar os namorados, conseguindo afastar de mim boas amigas. Junto dos rapazes, inventava coisas que teriam acontecido entre mim e ele, provocando comportamentos indesejáveis de alguns dos moços em relação a mim. E chegou a intrigar junto dos professores, como daquela única vez, em que tirei melhor nota do que ele, num teste. O Alípio declarou então, alto e bom som, no meio da turma, que me tinha visto a copiar. Por mais que eu o negasse, a professora acreditou nele, o melhor aluno, bem parecido, confiante. Já nessa altura era um mestre da manipulação. E, no final do ano letivo, a professora deu-me uma nota abaixo da média dos meus testes.

Cheguei a pensar mudar de escola, mas que razão invocaria junto dos meus pais? Aguentei, que remédio. E suspirei de alívio, quando terminámos o liceu. Finalmente me livrava do Alípio!

Passados vinte anos, porém, tornei a contactá-lo. Ele era já um escritor consagrado e eu andava cheia das recusas das editoras e de participar debalde em concursos. Hesitei muito, lembrava-me do desprezo dele, quando lhe quis entregar aquelas cinco páginas escritas na ingenuidade dos meus dezasseis anos. Por outro lado, pensei, ele deve ter-se modificado, pois se se tornou um filantropo… E o mais certo era nem se lembrar de mim. Nesse caso, talvez nem chegasse a ler o original que lhe pretendia entregar, mas… “quem não arrisca, não petisca”.

«Claro que me lembro de ti», disse-me, ao telefone. E logo marcámos um encontro. Foi de uma simpatia sem limites! Ao contrário dos tempos de liceu, mostrou muito interesse por mim e pela minha vida. Quando lhe perguntei pela dele, riu-se:

- Ora, mas a quem isso interessa? Sou um solitário, a quem concederam a graça de ser famoso.

- Merecidamente. Escreves tão bem…

Encolheu os ombros:

- Há muita gente a escrever bem. Apenas tive sorte.

Fiquei estupefacta. Seria o mesmo Alípio? Retorqui:

- Quer isso dizer que vais ler o meu original?

- Claro! E com muito interesse. Estou mesmo curioso.

Disse-me aquilo a olhar-me nos olhos, sorrindo.

Durante os cinco anos seguintes, não ouvi mais uma palavra dele.

Quando ele ganhou o mais importante Prémio Literário do nosso país, resolvi ir à cerimónia de entrega. Ainda não tinha lido o livro em questão e aproveitaria a oportunidade para o comprar autografado. Além disso, queria ver a reação dele, quando me visse à sua frente.

Escusado será dizer que foi uma cerimónia muito concorrida, com a fina-flor do nosso meio literário. Mas, quanto mais falavam do livro e o elogiavam, mais se ia instalando em mim um grande desconforto. Quando tomei o meu lugar na fila, para conseguir o almejado autógrafo, mais incomodada fiquei, ao ler a sinopse, na contracapa. Controlei o nervosismo e, chegada a minha vez, olhei-o nos olhos, a testar a sua reação.

O Alípio fingiu, com a maior das naturalidades, não me conhecer! Perguntou mesmo qual era o meu nome, para a dedicatória. Passados quase trinta anos sobre o nosso namorico, tornei a sentir vontade de o esganar. Merecia, pelo menos, uma resposta à altura, mas, com todos aqueles famosos à volta dele e a fila atrás de mim, cheia de gente a venerá-lo, passaria por mentirosa, antipática, rancorosa. Tal como acontecera no dia em que ele me acusara de ter copiado, à frente de toda a turma.

Mais uma vez, o Alípio me obrigava a engolir em seco. Limitei-me a dizer o meu nome (ele continuava à espera, como se não fizesse mesmo ideia), a agradecer e a fugir dali. Chegada a casa, abri o livro e comecei a ler. Li-o de uma vez, pela noite dentro. Já o sol rompia, quando o lancei com toda a minha força contra a parede. O Alípio roubara-me a ideia! Admito que escrevera melhor do que eu. Mas o enredo era o mesmo, alguns diálogos também. E nem se dera ao trabalho de mudar o nome a certas personagens.

Eram sete da manhã, quando lhe telefonei, a insultá-lo, ameacei levá-lo a tribunal. E ameacei várias vezes matá-lo. O Alípio não disse nada. Nem desligou. Aturou todos os meus berros e, quando se me acabou o latim, até tive de ser eu a desligar, perante o silêncio que se instalou.

Agora, perante a sua morte, pergunto-me se ele terá gravado aquilo tudo, a fim de alegar eu sofrer de um transtorno psicológico, caso o acusasse de plágio. Nunca arranjei coragem para dar esse passo, com receio de novamente fazer figura triste, perante o grande Alípio Belmonte. Mas, se realmente existe essa gravação e ela cair nas mãos da polícia, não faço ideia do que lhes vou dizer.

 

Cristina Torrão


5 comentários:

  1. Um pormenor: por algum motivo, a primeira frase saiu truncada. Era a citação da frase do capítulo introdutório, de autoria de José Bessa: “Acarinhado homem de letras e venerado filantropo”.

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  2. Que texto, Cristina!!! Que belo texto!!! Tenho ainda mais ganas de esganar o Alípio, aquele aldrabão desalmado!

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  3. Realmente melhor afastar-se desse tipo de personagem!
    um bom texto bem conduzido, e acreditamos que essas pessoas nunca mudam a sua vivência egoísta em relação aos outros:)

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  4. Uma pessoa encantadora esse refinado fdp
    Boa semana

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