Fotografia: Horst Neumann |
“Acarinhado homem de letras e venerado filantropo” - verdade seja dita: era um excelente escritor. E também cooperava
com instituições sociais. Mas não por ser alma generosa, como todos pensam. Apenas
para construir uma imagem que nada tinha a ver com a realidade. O Alípio
precisava de elogios como de pão para a boca. E, não lhe chegando os provocados
pela sua escrita, procurava igualmente aplausos exercendo a caridade.
Bem, é verdade, caro Alípio, que ajudaste
muita gente. Mas, quanto ao teu verdadeiro carácter, estamos conversados!
Tivemos um namorico nos tempos do liceu. Durou
pouco. O assunto preferido de conversa do Alípio era ele próprio. Nunca queria
saber o que eu pensava, o que fazia, opiniões, preferências, nada. Era só ele:
como era bom aluno, como escrevia bem, que planos tinha para o futuro. Dava-me
os seus contos a ler. Elogiava-o e ele inchava como um pavão. No início, achava-lhe
piada. Até ao dia em que timidamente lhe disse que também escrevia umas coisas,
mas, por receio, ainda não tinha dado a ninguém para ler. Não queria ele
fazê-lo? Gostaria tanto de saber a sua opinião…
Nunca mais esqueci o desprezo com que me mirou,
as palavras de troça escritas nos olhos: “mas quem te julgas tu?”. Calei-me e
nunca mais falámos nisso. Mas, a partir desse dia, tudo se modificou. A graça
que eu achava aos seus monólogos transformou-se num imenso fastio. E, quando
notei que a minha paixoneta tomava contornos de ódio, acabei com tudo, antes
que o esganasse.
O Alípio nunca me perdoou. Não por eu lhe
ter partido o coração, ele nunca conseguiu amar ninguém. Mas por ter tido a
ousadia de o rejeitar. Transformou a minha vida num inferno, nesses dois
últimos anos de liceu. Intrigava contra mim. Às raparigas, dizia para terem
cuidado, que eu apenas lhes queria roubar os namorados, conseguindo afastar de
mim boas amigas. Junto dos rapazes, inventava coisas que teriam acontecido
entre mim e ele, provocando comportamentos indesejáveis de alguns dos moços em
relação a mim. E chegou a intrigar junto dos professores, como daquela única vez,
em que tirei melhor nota do que ele, num teste. O Alípio declarou então, alto e
bom som, no meio da turma, que me tinha visto a copiar. Por mais que eu o
negasse, a professora acreditou nele, o melhor aluno, bem parecido, confiante.
Já nessa altura era um mestre da manipulação. E, no final do ano letivo, a
professora deu-me uma nota abaixo da média dos meus testes.
Cheguei a pensar mudar de escola, mas que razão
invocaria junto dos meus pais? Aguentei, que remédio. E suspirei de alívio,
quando terminámos o liceu. Finalmente me livrava do Alípio!
Passados vinte anos, porém, tornei a
contactá-lo. Ele era já um escritor consagrado e eu andava cheia das recusas
das editoras e de participar debalde em concursos. Hesitei muito, lembrava-me
do desprezo dele, quando lhe quis entregar aquelas cinco páginas escritas na
ingenuidade dos meus dezasseis anos. Por outro lado, pensei, ele deve ter-se
modificado, pois se se tornou um filantropo… E o mais certo era nem se lembrar
de mim. Nesse caso, talvez nem chegasse a ler o original que lhe pretendia entregar,
mas… “quem não arrisca, não petisca”.
«Claro que me lembro de ti», disse-me, ao
telefone. E logo marcámos um encontro. Foi de uma simpatia sem limites! Ao
contrário dos tempos de liceu, mostrou muito interesse por mim e pela minha
vida. Quando lhe perguntei pela dele, riu-se:
- Ora, mas a quem isso interessa? Sou um
solitário, a quem concederam a graça de ser famoso.
- Merecidamente. Escreves tão bem…
Encolheu os ombros:
- Há muita gente a escrever bem. Apenas
tive sorte.
Fiquei estupefacta. Seria o mesmo Alípio?
Retorqui:
- Quer isso dizer que vais ler o meu
original?
- Claro! E com muito interesse. Estou
mesmo curioso.
Disse-me aquilo a olhar-me nos olhos,
sorrindo.
Durante os cinco anos seguintes, não ouvi
mais uma palavra dele.
Quando ele ganhou o mais importante Prémio
Literário do nosso país, resolvi ir à cerimónia de entrega. Ainda não tinha
lido o livro em questão e aproveitaria a oportunidade para o comprar autografado.
Além disso, queria ver a reação dele, quando me visse à sua frente.
Escusado será dizer que foi uma cerimónia
muito concorrida, com a fina-flor do nosso meio literário. Mas, quanto mais
falavam do livro e o elogiavam, mais se ia instalando em mim um grande
desconforto. Quando tomei o meu lugar na fila, para conseguir o almejado
autógrafo, mais incomodada fiquei, ao ler a sinopse, na contracapa. Controlei o
nervosismo e, chegada a minha vez, olhei-o nos olhos, a testar a sua reação.
O Alípio fingiu, com a maior das
naturalidades, não me conhecer! Perguntou mesmo qual era o meu nome, para a
dedicatória. Passados quase trinta anos sobre o nosso namorico, tornei a sentir
vontade de o esganar. Merecia, pelo menos, uma resposta à altura, mas, com todos
aqueles famosos à volta dele e a fila atrás de mim, cheia de gente a venerá-lo,
passaria por mentirosa, antipática, rancorosa. Tal como acontecera no dia em
que ele me acusara de ter copiado, à frente de toda a turma.
Mais uma vez, o Alípio me obrigava a
engolir em seco. Limitei-me a dizer o meu nome (ele continuava à espera, como
se não fizesse mesmo ideia), a agradecer e a fugir dali. Chegada a casa, abri o
livro e comecei a ler. Li-o de uma vez, pela noite dentro. Já o sol rompia,
quando o lancei com toda a minha força contra a parede. O Alípio roubara-me a
ideia! Admito que escrevera melhor do que eu. Mas o enredo era o mesmo, alguns
diálogos também. E nem se dera ao trabalho de mudar o nome a certas
personagens.
Eram sete da manhã, quando lhe telefonei,
a insultá-lo, ameacei levá-lo a tribunal. E ameacei várias vezes matá-lo. O
Alípio não disse nada. Nem desligou. Aturou todos os meus berros e, quando se
me acabou o latim, até tive de ser eu a desligar, perante o silêncio que se
instalou.
Agora, perante a sua morte, pergunto-me se
ele terá gravado aquilo tudo, a fim de alegar eu sofrer de um transtorno
psicológico, caso o acusasse de plágio. Nunca arranjei coragem para dar esse
passo, com receio de novamente fazer figura triste, perante o grande Alípio
Belmonte. Mas, se realmente existe essa gravação e ela cair nas mãos da
polícia, não faço ideia do que lhes vou dizer.
Cristina
Torrão
Um pormenor: por algum motivo, a primeira frase saiu truncada. Era a citação da frase do capítulo introdutório, de autoria de José Bessa: “Acarinhado homem de letras e venerado filantropo”.
ResponderEliminarQue texto, Cristina!!! Que belo texto!!! Tenho ainda mais ganas de esganar o Alípio, aquele aldrabão desalmado!
ResponderEliminarRealmente melhor afastar-se desse tipo de personagem!
ResponderEliminarum bom texto bem conduzido, e acreditamos que essas pessoas nunca mudam a sua vivência egoísta em relação aos outros:)
Gostei muito!!! Parabéns
ResponderEliminarUma pessoa encantadora esse refinado fdp
ResponderEliminarBoa semana