16/07/22

O Alípio Morreu - Capítulo 4

 


Pois, meu irmão João, sensivelmente da mesma idade, relacionava-se bem com Alípio Belmonte. Amizade que se estendia dos bancos de escola até à data. E uma forte característica comum os unia: ambos se dedicavam às letras. João estudou poesia e sobre ela leccionava; Alípio enveredou pela escrita, propriamente dita. Participavam juntos, com outros apaixonados da escrita, imensas vezes, em deliciosas tertúlias.

Agora estou receosa de contar a meu irmão o desfecho dramático que teve a vida do amigo. Estou a preparar-me para o fazer, mas também já me ocorreu que o tenha sabido, talvez pelos jornais portugueses que circulam em Paris, onde se encontra a leccionar. Até na própria Universidade, no sector cultural, porventura se saberá, já que Alípio frequentava o meio, sempre que ia á cidade da luz. Actualmente as comunicações correm velozes, mesmo em sítios ermos, ou não fosse o mundo uma "ervilhinha” …

Na minha cabeça, giram velozes como um filme episódios da nossa juventude, principalmente nas festas do liceu. Sou um pouco mais nova que os dois amigos, mas quase sempre os acompanhava às ditas festas. Alípio cumprimentava-me com um sorriso doce, fraterno. Atitude que me deixava muito lisonjeada. E vaidosa, contava de imediato às minhas colegas de turma, acrescentando também um pouco mais de "açúcar”, o que as encantava sobremaneira!... Também eu percebia, já nessa altura, a aura que rodeava Alípio Belmonte.

Tive conhecimento do estrelato de Alípio, agora ainda mais, por se ter constado, sobre seus actos, mais recentemente, de altruísmo. Certamente que o Padre Teotónio iria frisar esta notória aquisição de Alípio, que aliás tanto beneficiou a Igreja onde pontificava. Também o Clube Literário que Alípio e meu irmão frequentavam com certa regularidade, que ergueu o "ser filantropo". Meu irmão era-lhe devoto. Um forte admirador de Alípio, de quem nunca ouviu um elogio, ainda que breve, sobre a sua poesia também publicada... Quando, certa vez, e um pouco receosa, falei ao João nesta minha constatação, ele simplesmente minimizou, dizendo-me que ele próprio se sentia uma "formiga" perante o amigo de sempre! Já eu amadurecida na idade e quando se proporcionava este tipo de conversa, percebi que o Alípio se achava no direito de se evidenciar, relativamente a outros possíveis concorrentes na área da escrita. E confesso que não simpatizava nada com este tipo de atitude. Assim, dei por mim a afastar-me aos poucos, de alguém que sempre julguei um bom amigo, que me desencantara, e que a todos usava para se endeusar!

...

João telefonou-me há pouco, ao final da tarde. Ouvira a triste notícia através da Rádio Portuguesa, em Paris. Tendo a Faculdade de Letras emitido um comunicado, de imediato, a referir o passamento de Alípio, com palavras honrosas e beneméritas, ao seu trabalho e pessoa.

Pois, João, meu irmão, pedia-me que levasse um lindo ramo de rosas (o melhor que encontrasse) às exéquias do amigo, porque infelizmente ele não poderia ausentar-se devido aos compromissos tidos com o seu trabalho nos exames que decorriam na Faculdade. Ele preferira rosas, pois percebera que eram as flores que Alípio sempre oferecia quando visitava a campa de sua mãe. Pedia também que marcasse presença por nós dois. Pois, mas decidi entretanto que não participarei na cerimónia a acontecer. Discretamente deixarei um bonito arranjo floral, no local de velório, na sua igreja de sempre, só para satisfazer o pedido de João e nada mais.

Percebi finalmente que o mundo falso urdido por Alípio Belmonte durante sua vida, para bem se evidenciar, se rodear e se promover, acabara de fechar seu ciclo. Demorei certamente a perceber o que era óbvio em Alípio Belmonte. Meu percurso de vida levou-me a entender certas situações ocorridas, com alguma tristeza. Já nada sinto pelo Alípio, porém estou ainda em choque pela forma como sua vida terminou.

Continua um mistério que me deprime e assusta, o seu brusco fim.... Mesmo sabendo-o um individuo dúbio, não lhe conhecia inimigos. Os que se moviam no seu círculo, eram-lhe gratos de alguma forma. E os beneficiados, muito mais ainda! Cheguei a ver sua mãe algumas vezes, achando-os parecidos fisicamente. Uma doce senhora de modos simpáticos, suaves, cativantes... Talvez fosse a esta postura que Alípio se agarrara para buscar o que lhe interessava no jogo de manipulação do "outro".

Aguardo com alguma ânsia o que se venha a apurar sobre este homicídio. Acredito haver uma razão móbil do crime, embora, de modo algum concorde com tal acto de violência. Como todos que o conheciam, aguardo os resultados da pesquisa, da Polícia

 Judiciária, que é tida como isenta criteriosa, eficaz.

Acredito que muita conversa no Ciclo Cultural e não só, irá desenrolar-se sobre as possibilidades do infeliz acontecimento. Quero acreditar que não há crime perfeito. Logo, haverá culpados.

 

                                                                            Fernanda Simões

 

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