Pois, meu irmão João, sensivelmente da
mesma idade, relacionava-se bem com Alípio Belmonte. Amizade que se estendia
dos bancos de escola até à data. E uma forte característica comum os unia:
ambos se dedicavam às letras. João estudou poesia e sobre ela leccionava; Alípio
enveredou pela escrita, propriamente dita. Participavam juntos, com outros
apaixonados da escrita, imensas vezes, em deliciosas tertúlias.
Agora estou receosa de contar a meu irmão
o desfecho dramático que teve a vida do amigo. Estou a preparar-me para o
fazer, mas também já me ocorreu que o tenha sabido, talvez pelos jornais
portugueses que circulam em Paris, onde se encontra a leccionar. Até na própria
Universidade, no sector cultural, porventura se saberá, já que Alípio
frequentava o meio, sempre que ia á cidade da luz. Actualmente as comunicações
correm velozes, mesmo em sítios ermos, ou não fosse o mundo uma "ervilhinha”
…
Na minha cabeça, giram velozes como um
filme episódios da nossa juventude, principalmente nas festas do liceu. Sou um
pouco mais nova que os dois amigos, mas quase sempre os acompanhava às ditas
festas. Alípio cumprimentava-me com um sorriso doce, fraterno. Atitude que me
deixava muito lisonjeada. E vaidosa, contava de imediato às minhas colegas de
turma, acrescentando também um pouco mais de "açúcar”, o que as encantava
sobremaneira!... Também eu percebia, já nessa altura, a aura que rodeava Alípio
Belmonte.
Tive conhecimento do estrelato de Alípio,
agora ainda mais, por se ter constado, sobre seus actos, mais recentemente, de altruísmo.
Certamente que o Padre Teotónio iria frisar esta notória aquisição de Alípio,
que aliás tanto beneficiou a Igreja onde pontificava. Também o Clube Literário
que Alípio e meu irmão frequentavam com certa regularidade, que ergueu o
"ser filantropo". Meu irmão era-lhe devoto. Um forte admirador de
Alípio, de quem nunca ouviu um elogio, ainda que breve, sobre a sua poesia
também publicada... Quando, certa vez, e um pouco receosa, falei ao João nesta
minha constatação, ele simplesmente minimizou, dizendo-me que ele próprio se
sentia uma "formiga" perante o amigo de sempre! Já eu amadurecida na
idade e quando se proporcionava este tipo de conversa, percebi que o Alípio se
achava no direito de se evidenciar, relativamente a outros possíveis
concorrentes na área da escrita. E confesso que não simpatizava nada com este
tipo de atitude. Assim, dei por mim a afastar-me aos poucos, de alguém que
sempre julguei um bom amigo, que me desencantara, e que a todos usava para se
endeusar!
...
João telefonou-me há pouco, ao final da
tarde. Ouvira a triste notícia através da Rádio Portuguesa, em Paris. Tendo a
Faculdade de Letras emitido um comunicado, de imediato, a referir o passamento
de Alípio, com palavras honrosas e beneméritas, ao seu trabalho e pessoa.
Pois, João, meu irmão, pedia-me que
levasse um lindo ramo de rosas (o melhor que encontrasse) às exéquias do amigo,
porque infelizmente ele não poderia ausentar-se devido aos compromissos tidos
com o seu trabalho nos exames que decorriam na Faculdade. Ele preferira rosas,
pois percebera que eram as flores que Alípio sempre oferecia quando visitava a
campa de sua mãe. Pedia também que marcasse presença por nós dois. Pois, mas
decidi entretanto que não participarei na cerimónia a acontecer. Discretamente
deixarei um bonito arranjo floral, no local de velório, na sua igreja de
sempre, só para satisfazer o pedido de João e nada mais.
Percebi finalmente que o mundo falso
urdido por Alípio Belmonte durante sua vida, para bem se evidenciar, se rodear
e se promover, acabara de fechar seu ciclo. Demorei certamente a perceber o que
era óbvio em Alípio Belmonte. Meu percurso de vida levou-me a entender certas
situações ocorridas, com alguma tristeza. Já nada sinto pelo Alípio, porém
estou ainda em choque pela forma como sua vida terminou.
Continua um mistério que me deprime e
assusta, o seu brusco fim.... Mesmo sabendo-o um individuo dúbio, não lhe
conhecia inimigos. Os que se moviam no seu círculo, eram-lhe gratos de alguma
forma. E os beneficiados, muito mais ainda! Cheguei a ver sua mãe algumas
vezes, achando-os parecidos fisicamente. Uma doce senhora de modos simpáticos,
suaves, cativantes... Talvez fosse a esta postura que Alípio se agarrara para
buscar o que lhe interessava no jogo de manipulação do "outro".
Aguardo com alguma ânsia o que se venha a
apurar sobre este homicídio. Acredito haver uma razão móbil do crime, embora,
de modo algum concorde com tal acto de violência. Como todos que o conheciam,
aguardo os resultados da pesquisa, da Polícia
Judiciária, que é tida como isenta criteriosa,
eficaz.
Acredito que muita conversa no Ciclo Cultural
e não só, irá desenrolar-se sobre as possibilidades do infeliz acontecimento.
Quero acreditar que não há crime perfeito. Logo, haverá culpados.
Fernanda
Simões
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