29/07/22

O Alípio Morreu - Capítulo 6

 


Chaves cruzadas

 

Adília entrou em casa lavada em lágrimas. A face afogueada e os gestos descontrolados, denunciavam um estado de ansiedade e nervosismo intensos.

"Que tragédia Adolfo (balbuciou)! Já sabes o que aconteceu?"

"Onde?!"

"Aqui na rua, homem!!! Não te apercebeste de nada?"

"Ah! O Alípio apareceu morto à porta de casa, não foi?!"

Adília ficou siderada perante a aparente indiferença do marido que, sentado no sofá, de mini na mão, assistia impávido ao desafio Portugal-Suíça.

"Ainda agora começou o jogo e já estamos a perder por 1-0!"

Adília descontrolou-se (histérica) e dirigindo-se ao marido, gritou-lhe.

"Não sei como podes ser tão insensível e cruel, caraças. Morre um vizinho quase à nossa porta e tu, que ainda para mais és agente da judiciária, borrifas-te para o assunto!"

"Morreu... ou mataram-no?!"

"Sei lá eu, porra! Tu é que deves saber e se não sabes, tens obrigação de investigar!"

"Tenho obrigação? Mas agora és minha chefe?"

Adília começou a perder a paciência para manter aquele diálogo parvo e opressivo e só conseguiu voltar a perguntar.

"Mas afinal, tu já sabias da morte do Sr. Alípio, ou não?"

"E isso que te importa? Porque estás tão interessada em saber se sabia ou não sabia? Por acaso és familiar do Alípio? Ou... amiga próxima, ou... amante?!"

Dito isto, Adolfo desviou o olhar do televisor e fitou Adília. Esta, mostrou-se mais nervosa do que estava antes, o seu rosto ruboresceu e alguns segundos depois, a sua voz saiu num fio.

"A... amante? Onde foste tu buscar essa ideia estapafúrdia?"

"Já te esqueceste que sou agente da Judiciária?”

"Não! Mas o que tem isso a ver comigo e com a insinuação que acabas de fazer?"

Lentamente, Adolfo poisou a garrafa da cerveja na mesinha de apoio ao lado do sofá e levantou-se. Depois, fingindo não ver Adília aproximou-se e num tom de voz ciciada revelou-lhe.

"Sei que desde há vários anos tens mantido uma relação íntima, adúltera e secreta com o Alípio, até me admiro como é que ainda consigo entrar a porta da rua sem partir pelo menos um corno."

"Só podes estar a gozar... só podes! Não vejo onde foste buscar essas ideias malucas. Eu, amante do Sr. Alípio?"

"Não só amante mas, prostituta também!"

Adília encrespou-se, num repente assumiu a postura de fera ferida e numa atitude agressiva, lançou-se num salto prodigioso que a deixou em frente ao marido, de indicador apontado ao seu nariz.

"Não te admito meu sacana! Prostituta, não!"

"Prostituta, sim! Vendias-te ao Alípio enquanto me encornavas. Sei de tudo ao pormenor minha linda e sei também as tramoias em que o teu "lobo com pele de cordeiro" andava metido.

Adília amochou, deixou o corpo desabar no sofá como lebre ferida, soluçando, enrolada sobre si mesma.

"Ainda não consigo acreditar; como é que tu me podes acusar de me prostituir com o Sr. Alípio? Passados 15 anos de casamento, ouvir isso da boca do meu marido, é como um golpe de punhal direto ao coração."

"Adília... deixa-te de cenas. Já te disse que sei de tudo o que se passava entre ti e o Alípio, não vale a pena estares para aí a verter lágrimas de crocodilo e a armar-te em vítima injustiçada."

Adquirindo novas energias, Adília endireitou-se no sofá disposta a mudar de tática.

Ao mesmo tempo, Adolfo, erguendo os punhos gritava: -ladrões! filhos da mãe, sacanas, roubaram-nos um penalti"!!! É sempre a mesma coisa, tudo a carregar no tuga. O árbitro deve ser ceguinho, está visto! Está tudo armado para os suíços ganharem o jogo. Porra para isto, é tudo uma máfia, tanto no futebol nacional como no mundial, uma máfia completa.

"Mas olha lá Adolfo, tu afinal estás-me a acusar de alguma coisa, ou estás só para aí a atirar bitaites pró ar? Voltando á nossa conversa... porque carga de água me acusaste de me prostituir para o Sr. Alípio?"

"Porquê?"

Adolfo fitou-a, olhos semicerrados como que a querer penetrar-lhe a mente e ao fim de alguns momentos começou a desfiar um rosário que causou engulhos a Adília.

"Então, diz-me lá minha linda; quem é que pagou as prestações do BMW, o plasma, as roupas, sapatos e malas de marca que enchem o teu roupeiro, as joias, os perfumes caríssimos, hmmmm? Foi o meu ordenado da treta, ou essa racha que tens no meio das pernas e que tornava o Alípio teu banqueiro pessoal?!"

Adília suspirou fundo e, num gesto estudado atirou os cabelos para trás. Em seguida, tão cinicamente quanto foi capaz respondeu-lhe:

"Então Sr. Sabichão, diga-me cá; uma vez que era sabedor de tantos segredos, porque razão manteve a nossa relação como se nada se passasse?"

"Isso agora já é outro assunto."

"Outro assunto? Como assim?"

"Assunto de polícia, ainda em processo de investigação!"

"E que assunto de polícia é esse em que, pelo visto, me queres incluir?"

"Os assuntos de polícia mantêm-se em segredo, até seres detida para interrogatório, acusada de suspeita de cumplicidade com o Alípio, coisa para que a judiciária te irá notificar muito em breve."

"Deves estar a gozar Adolfo. Eu, interrogada? E acusada de que crime?"

"Por enquanto não serás acusada, serás simplesmente suspeita, mas se não estiver enganado, é um instante até seres acusada de fazer parte dos crimes que o Alípio cometia."

"Tu estás doido, só podes estar doido! O Sr. Alípio criminoso?! Só me faltava ouvir essa. Para tua informação, o Sr. Alípio era uma pessoa íntegra, honesta, sempre pronto para ajudar quem necessitava. A vida dele era trabalho/casa, casa/trabalho. Nem na cervejaria do Jorge ele parava!"

"Alto lá! Entre trabalho e a casa, nas noites em que me encontrava de serviço, passava pela nossa cama, outras vezes, passavas tu pela cama dele. Por isso, tu tinhas a chave da casa dele e ele da nossa, é mentira?"

Adília gaguejou, congelou, sentiu-se a desfalecer.

"Como sabes que o Sr. Alípio tinha a chave da nossa casa?"

Adolfo fitou-a de novo. Bailava-lhe nos lábios um sorriso malicioso, entre o matreiro, o cínico e o provocador. Lentamente, levou a mão direita ao bolso das calças, de onde retirou um pequeno saco de plástico transparente, contendo uma chave dourada que exibiu para a mulher.

"Conheces? A chave da porta da nossa casa... em ouro, que luxo hein?"

A mulher, atónita, não despregava os olhos da chave que refulgia iluminada pela luz do candeeiro de teto.

"Onde arranjaste essa chave Adolfo? Dá-ma por favor."

Adolfo fechou fortemente a mão que segurava a chave e de forma displicente retorquiu.

"Não, não te posso dar esta chave porque, ou muito me engano, ou ela virá a ser uma prova importante para desvendar o crime. Onde a encontrei? Na mão do Alípio. Segurava-a quando o encontrei sem vida estendido no passeio, rodeado já por meia dúzia de coscuvilheiras e coscuvilheiros que trocavam suposições uns com os outros. Momentos depois de lhe ter retirado e guardado a chave, chegaram os agentes policiais e afastei-me. Ao chegar a casa e porque sabia o que se passava entre vocês os dois, confirmei... a porta da nossa casa abriu-se usando esta chave. Depois, procurei no teu guarda-joias e encontrei esta outra, também em ouro e que, suponho, abre a porta da casa do Alípio."

"Adolfo, estás a cometer um grave erro. Não tenho rigorosamente nada a ver com a morte do Sr. Alípio. Eu confesso; nós tínhamos um caso e o Sr. Alípio presenteou-me várias vezes com objetos de muito valor, mas a nossa relação não ia além de encontros sexuais. E quanto a possuir a chave da sua casa, deve-se ao facto de me ter contratado para lhe fazer as limpezas domésticas. O Sr. Alípio era uma pessoa muito generosa, pacata e introvertida, na intimidade era um perfeito cavalheiro e um excelente amante. E tu sabes perfeitamente que se não fossem as ajudas que dele recebia, se vivêssemos somente com o teu ordenado, a nossa vida seria uma miséria completa. Mas peço-te que acredites em mim; nada tenho a ver com a morte do Sr. Alípio!"

"Sabias que o Alípio era testa-de-ferro de uns tipos que tinham negócios escuros? Entre políticos e empresários corruptos, mafiosos e dealers, era ele que tratava de lhes meter milhões de euros em paraísos fiscais? Fazia-se passar por uma coisa que não era na realidade; escritor. Embora a pasta preta que normalmente carregava servisse para transportar folhas de papel escritas com projetos de livros, ele não era escritor coisa nenhuma."

"O Sr. Alípio, metido nessas tramoias? Não posso imaginar uma coisa dessas. Achas que podem ter sido esses mafiosos que mataram ou mandaram matar o Sr. Alípio...?"

"São essas ligações e o que delas decorria que ainda estamos a investigar. A rede é vasta e intrincada... e nada me garante que tu não desempenhes nela algum papel. Portanto, e para teu bem, aconselho-te a dizeres-me nomes de gente com quem o Alípio se costumava encontrar e para quem o Alípio fazia "trabalhinhos". Se o fizeres, isso irá contar a teu favor quando fores presente a juiz."

Ao escutar as palavras do marido, Adília desatou num pranto.

"Mas eu não conheço nada da vida particular do Sr. Alípio. Acredita em mim! Estás-me a ver com capacidade para fazer parte de uma rede, ou participar de atos criminosos a soldo de alguém? Nem eu tinha coragem para isso... aliás, não és tu que constantemente me chamas parvinha, burrinha, que não sirvo para nada?! E agora, achas-me competente para fazer parte de uma rede mafiosa? Ora, vai-te catar, pá, tu, mais as tuas investigações e suposições académicas. Investiga filho, investiga e fica com a certeza de que a única confissão que irás obter aqui da "je" é que mantinha relações sexuais com o Sr. Alípio. Mais do que isso, só na presença de provas conclusivas e... ainda assim, assiste-me o direito de permanecer em silêncio.

 

                                                                                     Bartolomeu

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