Chaves cruzadas
Adília entrou em casa lavada em lágrimas.
A face afogueada e os gestos descontrolados, denunciavam um estado de ansiedade
e nervosismo intensos.
"Que tragédia Adolfo (balbuciou)! Já
sabes o que aconteceu?"
"Onde?!"
"Aqui na rua, homem!!! Não te
apercebeste de nada?"
"Ah! O Alípio apareceu morto à porta
de casa, não foi?!"
Adília ficou siderada perante a aparente
indiferença do marido que, sentado no sofá, de mini na mão, assistia impávido
ao desafio Portugal-Suíça.
"Ainda agora começou o jogo e já
estamos a perder por 1-0!"
Adília descontrolou-se (histérica) e
dirigindo-se ao marido, gritou-lhe.
"Não sei como podes ser tão
insensível e cruel, caraças. Morre um vizinho quase à nossa porta e tu, que
ainda para mais és agente da judiciária, borrifas-te para o assunto!"
"Morreu... ou mataram-no?!"
"Sei lá eu, porra! Tu é que deves
saber e se não sabes, tens obrigação de investigar!"
"Tenho obrigação? Mas agora és minha
chefe?"
Adília começou a perder a paciência para
manter aquele diálogo parvo e opressivo e só conseguiu voltar a perguntar.
"Mas afinal, tu já sabias da morte do
Sr. Alípio, ou não?"
"E isso que te importa? Porque estás
tão interessada em saber se sabia ou não sabia? Por acaso és familiar do
Alípio? Ou... amiga próxima, ou... amante?!"
Dito isto, Adolfo desviou o olhar do
televisor e fitou Adília. Esta, mostrou-se mais nervosa do que estava antes, o
seu rosto ruboresceu e alguns segundos depois, a sua voz saiu num fio.
"A... amante? Onde foste tu buscar
essa ideia estapafúrdia?"
"Já te esqueceste que sou agente da
Judiciária?”
"Não! Mas o que tem isso a ver comigo
e com a insinuação que acabas de fazer?"
Lentamente, Adolfo poisou a garrafa da
cerveja na mesinha de apoio ao lado do sofá e levantou-se. Depois, fingindo não
ver Adília aproximou-se e num tom de voz ciciada revelou-lhe.
"Sei que desde há vários anos tens
mantido uma relação íntima, adúltera e secreta com o Alípio, até me admiro como
é que ainda consigo entrar a porta da rua sem partir pelo menos um corno."
"Só podes estar a gozar... só podes!
Não vejo onde foste buscar essas ideias malucas. Eu, amante do Sr.
Alípio?"
"Não só amante mas, prostituta
também!"
Adília encrespou-se, num repente assumiu a
postura de fera ferida e numa atitude agressiva, lançou-se num salto prodigioso
que a deixou em frente ao marido, de indicador apontado ao seu nariz.
"Não te admito meu sacana!
Prostituta, não!"
"Prostituta, sim! Vendias-te ao
Alípio enquanto me encornavas. Sei de tudo ao pormenor minha linda e sei também
as tramoias em que o teu "lobo com pele de cordeiro" andava metido.
Adília amochou, deixou o corpo desabar no
sofá como lebre ferida, soluçando, enrolada sobre si mesma.
"Ainda não consigo acreditar; como é
que tu me podes acusar de me prostituir com o Sr. Alípio? Passados 15 anos de
casamento, ouvir isso da boca do meu marido, é como um golpe de punhal direto
ao coração."
"Adília... deixa-te de cenas. Já te
disse que sei de tudo o que se passava entre ti e o Alípio, não vale a pena
estares para aí a verter lágrimas de crocodilo e a armar-te em vítima
injustiçada."
Adquirindo novas energias, Adília
endireitou-se no sofá disposta a mudar de tática.
Ao mesmo tempo, Adolfo, erguendo os punhos
gritava: -ladrões! filhos da mãe, sacanas, roubaram-nos um penalti"!!! É
sempre a mesma coisa, tudo a carregar no tuga. O árbitro deve ser ceguinho,
está visto! Está tudo armado para os suíços ganharem o jogo. Porra para isto, é
tudo uma máfia, tanto no futebol nacional como no mundial, uma máfia completa.
"Mas olha lá Adolfo, tu afinal
estás-me a acusar de alguma coisa, ou estás só para aí a atirar bitaites pró
ar? Voltando á nossa conversa... porque carga de água me acusaste de me
prostituir para o Sr. Alípio?"
"Porquê?"
Adolfo fitou-a, olhos semicerrados como
que a querer penetrar-lhe a mente e ao fim de alguns momentos começou a desfiar
um rosário que causou engulhos a Adília.
"Então, diz-me lá minha linda; quem é
que pagou as prestações do BMW, o plasma, as roupas, sapatos e malas de marca
que enchem o teu roupeiro, as joias, os perfumes caríssimos, hmmmm? Foi o meu
ordenado da treta, ou essa racha que tens no meio das pernas e que tornava o
Alípio teu banqueiro pessoal?!"
Adília suspirou fundo e, num gesto
estudado atirou os cabelos para trás. Em seguida, tão cinicamente quanto foi
capaz respondeu-lhe:
"Então Sr. Sabichão, diga-me cá; uma
vez que era sabedor de tantos segredos, porque razão manteve a nossa relação
como se nada se passasse?"
"Isso agora já é outro assunto."
"Outro assunto? Como assim?"
"Assunto de polícia, ainda em
processo de investigação!"
"E que assunto de polícia é esse em
que, pelo visto, me queres incluir?"
"Os assuntos de polícia mantêm-se em
segredo, até seres detida para interrogatório, acusada de suspeita de
cumplicidade com o Alípio, coisa para que a judiciária te irá notificar muito
em breve."
"Deves estar a gozar Adolfo. Eu,
interrogada? E acusada de que crime?"
"Por enquanto não serás acusada,
serás simplesmente suspeita, mas se não estiver enganado, é um instante até
seres acusada de fazer parte dos crimes que o Alípio cometia."
"Tu estás doido, só podes estar
doido! O Sr. Alípio criminoso?! Só me faltava ouvir essa. Para tua informação,
o Sr. Alípio era uma pessoa íntegra, honesta, sempre pronto para ajudar quem
necessitava. A vida dele era trabalho/casa, casa/trabalho. Nem na cervejaria do
Jorge ele parava!"
"Alto lá! Entre trabalho e a casa,
nas noites em que me encontrava de serviço, passava pela nossa cama, outras
vezes, passavas tu pela cama dele. Por isso, tu tinhas a chave da casa dele e
ele da nossa, é mentira?"
Adília gaguejou, congelou, sentiu-se a
desfalecer.
"Como sabes que o Sr. Alípio tinha a
chave da nossa casa?"
Adolfo fitou-a de novo. Bailava-lhe nos
lábios um sorriso malicioso, entre o matreiro, o cínico e o provocador.
Lentamente, levou a mão direita ao bolso das calças, de onde retirou um pequeno
saco de plástico transparente, contendo uma chave dourada que exibiu para a
mulher.
"Conheces? A chave da porta da nossa
casa... em ouro, que luxo hein?"
A mulher, atónita, não despregava os olhos
da chave que refulgia iluminada pela luz do candeeiro de teto.
"Onde arranjaste essa chave Adolfo?
Dá-ma por favor."
Adolfo fechou fortemente a mão que
segurava a chave e de forma displicente retorquiu.
"Não, não te posso dar esta chave
porque, ou muito me engano, ou ela virá a ser uma prova importante para
desvendar o crime. Onde a encontrei? Na mão do Alípio. Segurava-a quando o
encontrei sem vida estendido no passeio, rodeado já por meia dúzia de
coscuvilheiras e coscuvilheiros que trocavam suposições uns com os outros.
Momentos depois de lhe ter retirado e guardado a chave, chegaram os agentes
policiais e afastei-me. Ao chegar a casa e porque sabia o que se passava entre
vocês os dois, confirmei... a porta da nossa casa abriu-se usando esta chave. Depois,
procurei no teu guarda-joias e encontrei esta outra, também em ouro e que,
suponho, abre a porta da casa do Alípio."
"Adolfo, estás a cometer um grave
erro. Não tenho rigorosamente nada a ver com a morte do Sr. Alípio. Eu
confesso; nós tínhamos um caso e o Sr. Alípio presenteou-me várias vezes com
objetos de muito valor, mas a nossa relação não ia além de encontros sexuais. E
quanto a possuir a chave da sua casa, deve-se ao facto de me ter contratado
para lhe fazer as limpezas domésticas. O Sr. Alípio era uma pessoa muito
generosa, pacata e introvertida, na intimidade era um perfeito cavalheiro e um
excelente amante. E tu sabes perfeitamente que se não fossem as ajudas que dele
recebia, se vivêssemos somente com o teu ordenado, a nossa vida seria uma miséria
completa. Mas peço-te que acredites em mim; nada tenho a ver com a morte do Sr.
Alípio!"
"Sabias que o Alípio era
testa-de-ferro de uns tipos que tinham negócios escuros? Entre políticos e
empresários corruptos, mafiosos e dealers, era ele que tratava de lhes meter
milhões de euros em paraísos fiscais? Fazia-se passar por uma coisa que não era
na realidade; escritor. Embora a pasta preta que normalmente carregava servisse
para transportar folhas de papel escritas com projetos de livros, ele não era escritor
coisa nenhuma."
"O Sr. Alípio, metido nessas
tramoias? Não posso imaginar uma coisa dessas. Achas que podem ter sido esses
mafiosos que mataram ou mandaram matar o Sr. Alípio...?"
"São essas ligações e o que delas
decorria que ainda estamos a investigar. A rede é vasta e intrincada... e nada
me garante que tu não desempenhes nela algum papel. Portanto, e para teu bem,
aconselho-te a dizeres-me nomes de gente com quem o Alípio se costumava
encontrar e para quem o Alípio fazia "trabalhinhos". Se o fizeres,
isso irá contar a teu favor quando fores presente a juiz."
Ao escutar as palavras do marido, Adília
desatou num pranto.
"Mas eu não conheço nada da vida
particular do Sr. Alípio. Acredita em mim! Estás-me a ver com capacidade para
fazer parte de uma rede, ou participar de atos criminosos a soldo de alguém?
Nem eu tinha coragem para isso... aliás, não és tu que constantemente me chamas
parvinha, burrinha, que não sirvo para nada?! E agora, achas-me competente para
fazer parte de uma rede mafiosa? Ora, vai-te catar, pá, tu, mais as tuas
investigações e suposições académicas. Investiga filho, investiga e fica com a
certeza de que a única confissão que irás obter aqui da "je" é que
mantinha relações sexuais com o Sr. Alípio. Mais do que isso, só na presença de
provas conclusivas e... ainda assim, assiste-me o direito de permanecer em
silêncio.
Bartolomeu
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