13/08/22

O Alípio Morreu - Capítulo 8

 


Reli pela quarta vez as notícias que o computador me mostra. O Alípio morreu e as letras no ecrã parecem baralhar-se todas de cada vez que mergulho no rol de elogios àquela pessoa. Não consigo perceber como tanta gente entende ser tal criatura digna de afetos e elevada aos píncaros da literatura nacional.

Pois é Alípio, não consigo ser hipócrita e encontrar em mim qualquer sentimento de pesar que ilustre a tua perda. Talvez eu te conheça melhor que muita gente e as tuas trafulhices literárias sempre me tenham posto de sobreaviso. Mas pelos vistos muitos acreditavam em ti, para já não falar das mulheres que te seguiam feitas cachorrinhos e a quem te limitavas a dar esperanças, como se lhes atirasses um petisco.

Olho para Vera debruçada na janela, cabelos ao vento e aquele olhar sonhador que a caracteriza. Também eu estou mergulhada em pensamentos sem saber como dar a notícia à minha melancólica gémea, tão parecida por fora e tão diferente de mim por dentro. Enquanto Vera é toda ela serenidade, já eu sou um turbilhão de sentimentos.

Infelizmente a minha irmã é das pessoas que julgam Alípio Belmonte, um génio das letras e um benfeitor abnegado.

- Vera podes largar a janela para falarmos?

- Posso sim Clara, desde que me deixes ver primeiro o barco que está a passar no rio.

Encosto-me resignada na poltrona amarela. Sei que tenho de esperar uns quinze minutos, até que o barco faça as manobras habituais e depois siga viagem. Vera adora passar horas com os olhos na água até quase se confundirem com ela. Enquanto o faz alheia-se das coisas mundanas e dos desgostos da vida.

Ai mana, há coisas que tu não sabes e até as que sabes, finges ignorar como se o fingimento as fizesse desaparecer. Nunca percebi o que vias no Alípio. À altura que o fazia parecer meio desengonçado, juntava-se um rosto sem queixo, decorado com uma pera fina. A juntar-se a voz de desenho animado e as gargalhadas histriónicas, estava o pacote completo. No entanto, isso era apenas um exterior que usava para se passar por uma pessoa aceitável. O pior era mesmo tudo o resto: as mentiras, as falsas promessas, os plágios, os roubos intelectuais e coisas mais graves, de uma das quais sou testemunha principal.

- Clara, afinal não querias falar comigo? Estou aqui há minutos a chamar-te, mas parece que estás noutra dimensão. E depois a sonhadora sou eu!

- Desculpa, Vera mas às vezes há coisas que preferimos não recordar e agora vais também ter de o fazer porque tenho algo para te contar. Mana, o Alípio Belmonte morreu.

- Como? Morreu? Mas morreu como.? O que aconteceu?

Fico assustada com o estado em que a minha irmã está e arrependo-me de imediato de ter dado a notícia tão de repente, mas sinceramente não sei como o fazer de outra maneira. Foi melhor ter sido eu a dizê-lo em vez de Vera o descobrir por outros ou pelas notícias.

- Estava doente? - Perguntou Vera pesarosa com um vestígio de uma lágrima a querer espreitar.

- Não sei se estava ou se o mataram. Ainda não se sabe ao certo.

- Mataram? Quem quereria matar uma pessoa tão boa e cheia de predicados.

- Vera desculpa lá, mas não sei onde foste buscar essa ideia romântica daquele estafermo. Um aldrabão de todo o tamanho que até os teus poemas roubou.

- Ele meteu-os no livro dele porque achou que ficavam bem naquele capítulo final e disse-me que era um favor porque gostava de mim. E enfim, não tinham estrutura para irem em frente se os quisesse publicar.

- Ah não tinham? Por isso foram tão elogiados e ele nunca teve a coragem de te citar fosse de que modo fosse. Um crápula! E gostava de ti? De ti e de outras tantas mais.

- Clara não digas isso. Os nossos caminhos afastaram-se, mas ele era muito carinhoso.

- Era, era, um manipulador dos piores, um narcisista, um borderline. Como ele enganou tudo e todos ou quase todos, demonstra bem como conseguiu subir à conta de outros como ele.

- Olha Clara, eu quero ir ao funeral digas tu o que disseres. Até parece que o querias morto!

Eu ia responder quando a campainha me impediu. Talvez fosse melhor assim porque não íamos chegar a acordo e não valia a pena ficarmos zangadas, mas não suporto aquele feitio da minha irmã que acha que o mundo é um paraíso e as pessoas são todas cheias de boas intenções.

- Bem, não digo mais nada.

Abro a porta e deparo-me com o Paulo. Somos muito amigos há imensos anos e ele é uma espécie de irmão a quem me confesso quando os assuntos são demasiado cruéis para os ouvidos de Vera.

- Olá, Clarinha, já viste as notícias?

- Já e acabei agora de contar à Vera que ficou inconsolável com a perda de uma pessoa tão fantástica, raios o partam!

- Realmente é incompreensível como as pessoas se deixam enganar - disse o Paulo abraçando-me ao ver como rolo os olhos com um sentimento de desânimo e raiva por não ter convencido a minha irmã.

- Clara não achas que lhe devias contar tudo?

- O quê? Estás louco. Ela não iria acreditar e ficaria demasiado magoada comigo. Não vale a pena.

- Mas era a maneira de ela ver quem era o pulha.

- Não, Paulo. Na altura não lhe disse e agora é tarde. E o desgraçado está morto, teve o merecido.

- Achas que o mataram? Aposto que há uma lista de candidatos a tal.

- Não sei, mas eu mesma quis fazê-lo.

Paulo olha-me surpreendido com a minha explosão, mas sabe como sou, vibrante e apaixonada.

- Olha Clara vou-me embora e tu acalma-te e vai descansar que, entretanto, saberemos mais.

Agora que o Paulo saiu, sento-me no parapeito da janela tentando respirar fundo. A minha irmã, entretanto, foi-se deitar e aqui estou eu a tentar erradicar da memória o famigerado episódio que a notícia da morte do Alípio espoletou.

Morreste Alípio e se não foi de doença, agradeço a quem o fez. Não devia? Paciência! Não posso fingir que a tua morte não me enche com uma certa dose de paz. Vejo tanta gente boa morrer, que quando calha a quem merece...enfim não se perde grande coisa

O teu nome nauseia-me quando me lembro do que fizeste. Para além de enganares meio mundo meteste-te connosco e de certo modo ambas pagámos o preço.

Vem-me fel à boca e fogo aos olhos quando me lembro daquela tarde na biblioteca. Tu já andavas metido com a minha irmã e naquele dia confundiste-me com ela e tentaste dar-me um beijo viscoso e cheio de saliva. Disse-te que era eu. Primeiro tentaste negar, mas vi nos teus olhos que tinhas percebido que não era a Vera que agarravas. Empurrei-te, bati-te, gritei-te não várias vezes, mas tapaste-me a boca e com a tua envergadura submeteste-me e violaste-me.

Depois arranjaste uma desculpa esfarrapada para justificares a tua atitude e chantageaste-me para não fazer queixa ou dizer o que quer que fosse. Naquela altura era difícil ir para a frente com uma queixa, sobretudo por teres tantos apoios e eu não ter testemunhas. Segui o meu caminho e tu ficaste isento de culpas e de certeza de remorsos.

Confesso que matar-te de algum modo nunca esteve fora de questão. Agora já está, morreste finalmente.

 

Margarida Piloto Garcia

2 comentários:

  1. Continuo a dizer que este personagem tinha os defeitos TODOS.
    Boa semana

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  2. Merecido fim, Pedro Coimbra! Mais que merecido!
    Esta história está cada vez mais forte e misteriosa!

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