Reli pela quarta vez as notícias que
o computador me mostra. O Alípio morreu e as letras no ecrã parecem baralhar-se
todas de cada vez que mergulho no rol de elogios àquela pessoa. Não consigo
perceber como tanta gente entende ser tal criatura digna de afetos e elevada
aos píncaros da literatura nacional.
Pois é Alípio, não consigo ser
hipócrita e encontrar em mim qualquer sentimento de pesar que ilustre a tua
perda. Talvez eu te conheça melhor que muita gente e as tuas trafulhices
literárias sempre me tenham posto de sobreaviso. Mas pelos vistos muitos
acreditavam em ti, para já não falar das mulheres que te seguiam feitas
cachorrinhos e a quem te limitavas a dar esperanças, como se lhes atirasses um
petisco.
Olho para Vera debruçada na janela,
cabelos ao vento e aquele olhar sonhador que a caracteriza. Também eu estou
mergulhada em pensamentos sem saber como dar a notícia à minha melancólica
gémea, tão parecida por fora e tão diferente de mim por dentro. Enquanto Vera é
toda ela serenidade, já eu sou um turbilhão de sentimentos.
Infelizmente a minha irmã é das
pessoas que julgam Alípio Belmonte, um génio das letras e um benfeitor
abnegado.
- Vera podes largar a janela para
falarmos?
- Posso sim Clara, desde que me deixes
ver primeiro o barco que está a passar no rio.
Encosto-me resignada na poltrona
amarela. Sei que tenho de esperar uns quinze minutos, até que o barco faça as
manobras habituais e depois siga viagem. Vera adora passar horas com os olhos
na água até quase se confundirem com ela. Enquanto o faz alheia-se das coisas
mundanas e dos desgostos da vida.
Ai mana, há coisas que tu não sabes e
até as que sabes, finges ignorar como se o fingimento as fizesse desaparecer.
Nunca percebi o que vias no Alípio. À altura que o fazia parecer meio
desengonçado, juntava-se um rosto sem queixo, decorado com uma pera fina. A
juntar-se a voz de desenho animado e as gargalhadas histriónicas, estava o
pacote completo. No entanto, isso era apenas um exterior que usava para se
passar por uma pessoa aceitável. O pior era mesmo tudo o resto: as mentiras, as
falsas promessas, os plágios, os roubos intelectuais e coisas mais graves, de
uma das quais sou testemunha principal.
- Clara, afinal não querias falar
comigo? Estou aqui há minutos a chamar-te, mas parece que estás noutra
dimensão. E depois a sonhadora sou eu!
- Desculpa, Vera mas às vezes há
coisas que preferimos não recordar e agora vais também ter de o fazer porque
tenho algo para te contar. Mana, o Alípio Belmonte morreu.
- Como? Morreu? Mas morreu como.? O
que aconteceu?
Fico assustada com o estado em que a
minha irmã está e arrependo-me de imediato de ter dado a notícia tão de
repente, mas sinceramente não sei como o fazer de outra maneira. Foi melhor ter
sido eu a dizê-lo em vez de Vera o descobrir por outros ou pelas notícias.
- Estava doente? - Perguntou Vera
pesarosa com um vestígio de uma lágrima a querer espreitar.
- Não sei se estava ou se o mataram.
Ainda não se sabe ao certo.
- Mataram? Quem quereria matar uma
pessoa tão boa e cheia de predicados.
- Vera desculpa lá, mas não sei onde
foste buscar essa ideia romântica daquele estafermo. Um aldrabão de todo o
tamanho que até os teus poemas roubou.
- Ele meteu-os no livro dele porque
achou que ficavam bem naquele capítulo final e disse-me que era um favor porque
gostava de mim. E enfim, não tinham estrutura para irem em frente se os
quisesse publicar.
- Ah não tinham? Por isso foram tão
elogiados e ele nunca teve a coragem de te citar fosse de que modo fosse. Um
crápula! E gostava de ti? De ti e de outras tantas mais.
- Clara não digas isso. Os nossos
caminhos afastaram-se, mas ele era muito carinhoso.
- Era, era, um manipulador dos
piores, um narcisista, um borderline. Como ele enganou tudo e todos ou quase
todos, demonstra bem como conseguiu subir à conta de outros como ele.
- Olha Clara, eu quero ir ao funeral
digas tu o que disseres. Até parece que o querias morto!
Eu ia responder quando a campainha me
impediu. Talvez fosse melhor assim porque não íamos chegar a acordo e não valia
a pena ficarmos zangadas, mas não suporto aquele feitio da minha irmã que acha
que o mundo é um paraíso e as pessoas são todas cheias de boas intenções.
- Bem, não digo mais nada.
Abro a porta e deparo-me com o Paulo.
Somos muito amigos há imensos anos e ele é uma espécie de irmão a quem me
confesso quando os assuntos são demasiado cruéis para os ouvidos de Vera.
- Olá, Clarinha, já viste as
notícias?
- Já e acabei agora de contar à Vera
que ficou inconsolável com a perda de uma pessoa tão fantástica, raios o
partam!
- Realmente é incompreensível como as
pessoas se deixam enganar - disse o Paulo abraçando-me ao ver como rolo os olhos
com um sentimento de desânimo e raiva por não ter convencido a minha irmã.
- Clara não achas que lhe devias
contar tudo?
- O quê? Estás louco. Ela não iria
acreditar e ficaria demasiado magoada comigo. Não vale a pena.
- Mas era a maneira de ela ver quem
era o pulha.
- Não, Paulo. Na altura não lhe disse
e agora é tarde. E o desgraçado está morto, teve o merecido.
- Achas que o mataram? Aposto que há
uma lista de candidatos a tal.
- Não sei, mas eu mesma quis fazê-lo.
Paulo olha-me surpreendido com a
minha explosão, mas sabe como sou, vibrante e apaixonada.
- Olha Clara vou-me embora e tu
acalma-te e vai descansar que, entretanto, saberemos mais.
Agora que o Paulo saiu, sento-me no
parapeito da janela tentando respirar fundo. A minha irmã, entretanto, foi-se
deitar e aqui estou eu a tentar erradicar da memória o famigerado episódio que
a notícia da morte do Alípio espoletou.
Morreste Alípio e se não foi de
doença, agradeço a quem o fez. Não devia? Paciência! Não posso fingir que a tua
morte não me enche com uma certa dose de paz. Vejo tanta gente boa morrer, que
quando calha a quem merece...enfim não se perde grande coisa
O teu nome nauseia-me quando me
lembro do que fizeste. Para além de enganares meio mundo meteste-te connosco e
de certo modo ambas pagámos o preço.
Vem-me fel à boca e fogo aos olhos
quando me lembro daquela tarde na biblioteca. Tu já andavas metido com a minha
irmã e naquele dia confundiste-me com ela e tentaste dar-me um beijo viscoso e
cheio de saliva. Disse-te que era eu. Primeiro tentaste negar, mas vi nos teus
olhos que tinhas percebido que não era a Vera que agarravas. Empurrei-te,
bati-te, gritei-te não várias vezes, mas tapaste-me a boca e com a tua
envergadura submeteste-me e violaste-me.
Depois arranjaste uma desculpa
esfarrapada para justificares a tua atitude e chantageaste-me para não fazer
queixa ou dizer o que quer que fosse. Naquela altura era difícil ir para a
frente com uma queixa, sobretudo por teres tantos apoios e eu não ter
testemunhas. Segui o meu caminho e tu ficaste isento de culpas e de certeza de
remorsos.
Confesso que matar-te de algum modo
nunca esteve fora de questão. Agora já está, morreste finalmente.
Margarida Piloto Garcia
Continuo a dizer que este personagem tinha os defeitos TODOS.
ResponderEliminarBoa semana
Merecido fim, Pedro Coimbra! Mais que merecido!
ResponderEliminarEsta história está cada vez mais forte e misteriosa!